Altas são as chances de você estar usando pelo menos uma peça de roupa ou acessório feitos de algodão no momento em que lê esta matéria. Seu armário, provavelmente, tem exemplares de sobra, não? Fibra natural mais popular do mundo, o algodão é indispensável para a indústria do vestuário e economias de muitos países. No entanto, o seu impacto ambiental e social é enorme, mas isso não vem descrito nas etiquetas.
Para dimensionar esse mercado – e seu passivo – vamos aos números. A cada ano, estima-se que 80 bilhões de novas peças de roupas são produzidas, 400% a mais que duas décadas atrás, e 35% disso tudo é feito de algodão. Atualmente, a produção de algodão é estimada em 26 milhões de toneladas por ano e tem o Brasil como o quinto maior produtor, atrás do Paquistão, Estados Unidos, Índia eChina (também são grandes as chances de você estar usando um “made in china”).
Seu comércio movimenta cifras poderosas — US$ 23 bilhões por ano. Em média,75% de todo algodão vai para a fabricação de roupas, 18% para fabricação de mobiliário doméstico e 7% para outros produtos industriais. Por tudo isso, e uma história de mais de sete mil anos, a indústria americana costuma dizer que o algodão é o “tecido de nossas vidas”.
Mas, por mais agradável e macio que seja o toque do algodão, uma variedade de fatores mancham seu tecido, gerando um passivo que as empresas e os consumidores precisam enfrentar.
O que não vem escrito na etiqueta da roupa
Apesar de ocupar apenas 2,5% da terra cultivada no mundo, a produção de algodão responde por cerca de assombrosos 25% do consumo mundial de inseticidas. Se a relação parece absurda é porque ela é mesmo. Os abusos químicos historicamente associados à produção algodoeira devem-se especialmente ao fato do cultivo ser voltado, na maior parte, para a fabricação de produtos não alimentícios, além de ser altamente sensível às doenças e pragas.
Acontece que os excessos no campo acabam por comprometer a saúde dos trabalhadores e do meio ambiente. A maior parte dos produtores de algodão do mundo estão em países em desenvolvimento, onde imperam baixos níveis de segurança no campo, analfabetismo, má rotulagem dos pesticidas, trabalho escravo e infantil e pobreza crônica, conjunto de fatores que tende a exacerbar os danos causados pelo uso desmedido de agrotóxicos.
Para agravar, a produção de algodão é o segmento mais sedento da indústria têxtil, e o mais vulnerável às mudanças climáticas, por ser majoritariamente cultivado em áreas áridas, mas intensamente irrigadas. Segundo dados do setor, o cultivo de algodão é responsável, em média, por 80% do consumo de água total de fabricação e por 45% das emissões de gases efeito estufa associadas ao setor têxtil.
No entanto, o algodão também é fonte de sustento para mais de 250 milhões de pessoas no mundo, que trabalham em sua produção, desde as fazendas até a logística, do descaroçamento ao processamento. Rejeitar os produtos feitos de suas fibras dificilmente resolveria o problema. Apoiar uma produção mais ética, porém, pode ajudar a reduzir os impactos negativos sobre o meio ambiente e as pessoas, além de melhorar a cadeia produtiva — e, quem sabe, mudar profundamente a própria relação dos consumidores com suas roupas.
Uma revolução silenciosa está em curso
Felizmente, cada vez mais fabricantes e varejistas reconhecem que a produção de algodão não deve ser encarada como algo fora de sua esfera de influência – muito pelo contrário – e tornam-se conscientes dos desafios que essa cultura representa para sua cadeia de fornecimento e para mundo. Não faltam exemplos de grandes marcas que adotaram atitude proativa.
A gigante multinacional do varejo de moda H&M persegue a meta de ter todo seu algodão vindo de produções mais sustentáveis até 2020, um avanço em relação aos 20% atuais. Obcecada em reduzir sua pegada hídrica, a Levi Strauss criou suaprimeira calça jeans 100% feita de tecido reciclado pós-consumo (a peça usa 98% menos água que um modelo produzido com matéria-prima “virgem”) e está comprometida em comprar apenas algodão mais sustentável dentro de cinco anos.
As gigantes do vestuário esportivo Adidas e Nike também estão trabalhando mais de perto com os seus fornecedores para garantir que seu algodão venha de empresas responsáveis. E, desde setembro do ano passado, a sueca Ikea, uma das maiores redes mundiais de móveis, só compra algodão de fornecedores certificados.
Toda essa mudança no sentido de assegurar que o algodão de fontes “mais sustentável” se torne a regra, e não a exceção, se deve em grande parte ao trabalho da Better Cotton Initiative – BCI (Iniciativa por um Algodão Melhor). Fundada em 2005 por empresas internacionais, associações de produtores e organizações da sociedade civil, a entidade busca garantir que o algodão seja produzido de forma ética e responsável. Seus esforços são vastos, mas envolvem principalmente o combate ao trabalho escravo e infantil e a melhoraria de práticas agrícolas, buscando reduzir o consumo de água e de pesticidas e aumentar a segurança do trabalhador.
Em 2014, 7,6% de todo o algodão produzido globalmente foi Better Cotton. Parece pouco, mas é muito, considerando que a primeira colheita certificada ocorreu em 2010/2011, no Brasil, Índia, Mali e Paquistão. No ano seguinte, foi a vez do algodão BCI florescer na China, cujas fazendas certificadas passaram a usar 16% menos pesticida e 16% menos água, em média, do que aquelas que não adotam o padrão (segundo a BCI, esses valores podem variar de acordo com as condições da região).
Há dez anos em atividade, o BCI tornou-se um padrão amplamente aceito no setor algodoeiro e respeitado entre as empresas, que passaram a contar com um sistema de rastreabilidade que atesta a origem responsável e o menor impacto ambiental de sua matéria-prima.
Algodão mais sustentável no Brasil — e no seu jeans
O Brasil é atualmente o maior fornecedor de algodão BCI, sendo responsável por 60% do algodão certificado no mundo.
“Na safra de 2014/2015, 239 propriedades somando 666 mil hectares de algodão produziram 1 milhão e 42 mil toneladas de algodão certificado, representando 70% da produção total de algodão do Brasil”, diz a EXAME.com Marcio Portocarrero, diretor executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (ABRAPA), entidade à frente do Programa Algodão Brasileiro Responsável, que certifica a sustentabilidade na produção de algodão no Brasil.
A similaridade dos critérios da certificação ABR (Algodão Brasileiro Responsável) e dos princípios do BCI resultou numa proposta de fusão de ambos os programas no país e, desde 2013, o cotonicultor que adere ao programa é automaticamente licenciado pela Better Cotton Initiative.
Segundo Portocarrero, as certificações promovem maior segurança jurídica ao produtor, que fica mais preparado para receber fiscalizações ambientais e trabalhistas, além de economia para o negócio, ao introduzir mais racionalidade ao uso de produtos químicos e água. A meta da entidade é ter 100% da produção de algodão brasileira certificada até 2020.
Se depender da demanda internacional, não será difícil alcançá-la. Hoje, 60% da produção nacional de algodão vai para o mercado externo e atende grandes marcas do varejo global. Em contrapartida, o apetite nacional pelo algodão certificado ainda deixa a desejar. “A indústria têxtil brasileira não tem buscado isso, nosso desafio é puxar o processo de certificação para dentro da indústria de fiação, de tecelagem e confecção, indo além do campo”, afirma o diretor da ABRAPA.
Mas isso pode mudar — principalmente quando se tem uma das maiores varejistas de moda do Brasil faminta por algodão mais sustentável, a C&A. Hoje, 15% de todos os artigos de algodão que a empresa vende no país são certificados. Dentro de quatro anos, a expectativa é atingir 100%, segundo Paulo Correa, presidente da C&A Brasil.
“No final, precisamos ter toda a cadeira certificada, não apenas o produtor do algodão. Mas isso depende de cada empresa enxergar valor na certificação e se interessar em obtê-la. Condições mais justas e seguras de trabalho e utilização mais racional da água, tudo isso tem que estar presente em todas as fases do processo de fabricação de uma peça, seja na fiação, tecelagem, confecção, lavanderia ou na própria comercialização do produto pelo varejo. Todo mundo tem que estar na mesma página para garantir que o produto foi produzido de fato de forma mais sustentável”, diz Correa a EXAME.com.
Em abril, a marca lançou uma coleção de jeans produzida de forma mais sustentável em todas as etapas da cadeia. Segundo a empresa, as peças geram 92% de economia de água no processo de tecelagem e 30% de redução de energia. Já o processo de lavanderia alcançou 30% de economia de água e 15% menos energia.
“Temos, hoje, quatro empresas fornecedoras de fiação e tecelagem que estão certificadas, além de 12 confecções com suas lavanderias certificadas. Com isso, conseguimos ter aproximadamente 15% de toda a nossa venda com algodão mais sustentável. Para chegar a 100%, o número de tecelagens e de confecção precisa aumentar radicalmente, e estamos numa jornada para atingir isso”, disse o executivo a EXAME.com durante evento de lançamento do documentário Por Amor à Moda (For the Love of Fashion), na última quarta (18) em São Paulo, que aborda o cultivo do algodão orgânico e o impacto nos produtos que chegam aos consumidores.
Produzido pela C&A e a National Geographic, o documentário estreia no Brasil no dia 25, às 17h15, no canal de aventura, e tem como apresentadora Alexandra Cousteau, conhecida mundialmente por seu trabalho sobre a água e as questões de sustentabilidade. Ela viaja pela Índia, Estados Unidos e Alemanha, mostrando os resultados do uso de métodos de produção mais sustentáveis, como o BCI e o cultivo orgânico.
A cultura do algodão BCI utiliza sementes geneticamente modificadas, obtendo ganhos de produtividade associados a um manejo de menor impacto. Liberado no Brasil em 2005, o algodão transgênico foi responsável pela retomada do crescimento da cotonicultura em todo o país.
Sua utilização aumentou a produtividade e a retomada da atividade em antigas regiões produtoras afetadas pela crise da década de 1980 — quando as plantações foram atacadas pelo bicudo, praga de maior incidência na cultura e com maior potencial de dano — que causou a retração da fabricação brasileira obrigando o país a importar algodão na década seguinte. Com a retomada da atividade, nos anos 2000, o país voltou a ser autossuficiente em algodão.
Já o algodão orgânico, com consideráveis benefícios econômicos e ambientais, ainda representa menos de 1% da colheita anual mundial. No Brasil, não chega a 0,1%. Mas, se depender do varejo, isso também pode mudar.
Em 2015, a C&A figurou em primeiro lugar no ranking mundial de uso de algodão orgânico, conduzido pela Textile Exchange, uma organização internacional sem fins lucrativos que trabalha para promover a indústria têxtil mais sustentável.
Esse mesmo estudo mostra que, em 2014, mais de 130 milhões de produtos da empresa foram confeccionados com algodão mais sustentável, a maior parte aplicada em produtos infantis. No ano seguinte, o algodão orgânico representava perto de 40% das vendas totais de produtos de algodão da C&A em todo o mundo, encontrando grande receptividade dos consumidores.
Considerando todo o universo da moda, o progresso do algodão mais sustentável é lento, mas, ainda assim, é progresso — e cada par de jeans faz diferença.