Maria da Paz Trefeut | O empresário carioca Rony Meisler, sócio-fundador da marca de moda Reserva, durante muito tempo achou que o principal problema do Brasil era educacional. Essa visão mudou numa conversa na distante Pentecoste, no Ceará, onde tinha ido fazer uma entrega para uma ONG numa escola de empreendedorismo agrícola, em 2014. Na volta para Fortaleza deu carona para um menino da região, o Neto, e decidiu dizer a ele que estava pensando em reverter parte do valor de cada venda para um projeto ligado à educação. O rumo da conversa mudou seu ponto de vista.
“O Neto me perguntou se quando eu estava com fome conseguia trabalhar. E disse bem assim: ‘Eu sempre fui pra escola, mas você sabe por quê? Ia pra comer! Você pode montar a melhor escola do mundo, mas se o moleque estiver com fome, não vai prestar atenção em nada. O maior problema do Brasil é a fome e vocês, lá na bolha que vocês vivem, não percebem isso’. Ele me deu uma surra moral! Foi daí que criamos nosso maior projeto social, que nasceu em 2016”, conta Meisler.
O projeto é o 1P5P, que significa 1 peça = 5 pratos de comida. E que nestes anos já totalizou mais de 90 milhões de pratos entregues complementados por bancos de alimentos parceiros, deduzidos apenas do lucro da empresa, sem qualquer incentivo fiscal. “Você não sabe a quantidade de mensagens que eu recebo dizendo: olha, doei tantos pratos. E tem gente que diz que se inspirou e tá fazendo a mesma coisa com a venda de apartamentos. Talvez o impacto indireto seja até maior do que o direto. Nós somos uma empresa só, né? Quantas empresas tem no país?”, pergunta ele.
Estamos no restaurante Parigi, no bairro do Itaim, em São Paulo, e Meisler veste a roupa de sempre. Camiseta, calça jeans preta e tênis da Reserva. “Nunca estou muito diferente disso. Às vezes, a calça é cáqui. Pego a mesma roupa sempre, é mais simples.” Logo ao chegar, conta que está de dieta e perdeu nove quilos de um ano pra cá. Ele mora no Rio e vem semanalmente a São Paulo depois de a Reserva ter sido comprada pela Arezzo&Co, em 2020, por R$ 715 milhões.
Com isso, Meisler se tornou CEO da AR&Co, o negócio de moda e lifestyle dentro do conglomerado originalmente calçadista, e ficou com cerca de 2% das ações. Hoje, a AR&Co tem 2.500 funcionários, 200 lojas e mais da metade são próprias. Há sete marcas: Reserva, Reversa, Reserva Mini, Oficina, Reserva Go, Simples e Baw, para vários públicos e diferentes faixas de renda. A marca mais cara é a Oficina, destinada ao público A+, e a mais acessível é a Simples, como diz o nome. Em termos de comparação, uma camiseta da Oficina feita em algodão peruano pima custa R$ 350, enquanto a camiseta de entrada da Simples sai por R$ 69.
“Eu falo demais, viu? Pode me cortar e dizer: cala a boca, você já disse isso, está repetindo!”, diz em tom de brincadeira meio séria, logo no início da conversa. Meisler tem 42 anos, é formado em engenharia de produção na PUC-Rio e era um analista da multinacional Accenture até decidir entrar na moda como um outsider, acompanhado pelo amigo de infância, o publicitário Fernando Sigal, com quem frequentava a mesma academia. Isso foi em 2004. O discurso deles era antimoda, algo insustentável hoje. “Não posso mais falar que sou antimoda. Esse era nosso statement, mas tudo mudou, né? Eu diria que nossa cabeça tem que continuar curiosa como a de um outsider. Assim, você fica aberto ao novo.”
Inicialmente, sua relação com moda era apenas a de um espectador que viaja e gosta de ver as coleções como consumidor e de observar a maneira como as pessoas se vestem. “Acho que isso foi uma desvantagem, mas também uma vantagem. Porque a gente não conhecia nada, não sabia nada e tinha tudo a aprender. A gente não tinha pré-conceito nenhum. Foi um mergulho no escuro.”
O tempo transformou Meisler num empresário que tem como meta fazer a diferença. Além de projetos para combater a fome, lançou coleções inclusivas para pessoas com deficiência (PcD) e roupas para quem está acima do peso, de tamanho GGG. Foi, também, fundador no Brasil e presidente durante três anos do movimento Capitalismo Consciente. Sua adesão ao movimento se deu por volta de 2010, quando leu “Capitalismo consciente: Como libertar o espírito heroico dos negócios”, de John Mackey e Raj Sisodia.
“A gente se conhece desde que ela tinha 13 anos”, diz sobre a mulher, Anny — Foto: Arquivo pessoal
De uma forma bastante resumida, aprendeu que quando se usa uma empresa como veículo para transformar uma rua, um bairro ou uma cidade, ela consegue uma fidelidade muito maior do que aquelas que só têm como objetivo a compra e venda. “Obviamente que você tem que ter um produto legal, uma marca bacana, não adianta só a boa intenção”, completa.
Por isso, hoje, entende os negócios como um instrumento para construir uma sociedade melhor. “Pode parecer, pelo que estou dizendo, que essa sociedade melhor seria socialista. Não! É capitalista consciente, porque quando você tem uma sociedade melhor e mais forte, se você trabalha para combater a pobreza e tem uma economia mais pujante, você vai vender mais”, explica.
E diz que todos os dias acorda “para botar um tijolinho na construção de um negócio que permitirá entregar o mundo um pouquinho melhor” para os filhos do que aquele que recebeu dos pais. “Agora, a gente muda o país através dos bons exemplos e iniciativas da sociedade civil, mas fundamentalmente através dos nossos governantes. De quem a gente escolhe para estar lá e nos representar, tá certo? Não tem jeito! Até pensando do ponto de vista do estímulo que esses governantes podem dar para iniciativa privada pensar dessa maneira mais construtiva.”
No fundo, acredita que por mais que um empresário possa fazer – e tem por obrigação fazer muito -, são as políticas públicas que mudam tudo. “É só isso que muda de verdade a desigualdade financeira. Só com políticas públicas você consegue chegar no Brasil profundo, um país muito complexo, muito grande, muito desigual.”
Usando uma palavra da moda no mundo empresarial – “propósito” -, ele diz que demorou para encontrar o seu e que nem pensava nisso quando se aventurou no ramo da moda. De um modo geral, credita os seus valores pessoais e os da empresa à formação judaica que teve. Os avós paternos são poloneses, os maternos, romenos e russos. “Meus avós paternos são refugiados do Holocausto, chegaram aqui em 1946, praticamente indigentes, só com a roupa do corpo.” Aqui, o avô Benjamin começou como mascate e, depois, abriu uma loja no Saara, centro de comércio popular no Rio.
“Ele era um supervendedor, mas um mau administrador. Chegou a ter cinco lojas no Saara. Vendia tudo. Foi o primeiro importador de calça jeans Lee e de relógio Seiko no Brasil. Eles tinham uma vida excelente, eram ricos até, mas quando meu pai tinha 18 anos, meu avô quebrou”, lembra. Depois, o avô voltou para Israel com a família toda e, mais tarde, passou a se realizar através do neto, que, pouco a pouco, construía a Reserva.
Além de visitar Israel com muita frequência, os laços com o judaísmo não param aí. Até a faculdade, ele estudou na escola judaica Liessin, onde conheceu a mulher, Anny. “A gente se conhece desde que ela tinha 13 anos, só que a gente não começou a namorar, viramos melhores amigos. Meu, melhores amigos mesmo! Assim, sem um abraço ou um beijinho, nada.” Casaram há 15 anos e tiveram três filhos: Nick, de 10 anos, Tom, de 8, e Chiara, de 6. Os filhos estudam na mesma escola onde ele estudou e são criados na mesma tradição e de acordo com os mesmos rituais segundo os quais se faz jejum, se comemora o Yom Kipur e a Pessach.
À Anny ele credita uma ajuda intangível na construção de sua marca, embora ela tenha sua própria empresa, a LZ Mobiliário e Decoração, com várias lojas no Rio e que, em breve, abrirá em São Paulo. Ao falar dos filhos, derrama-se num sorriso: “Sou paizão! A vida é família, família, família, família e, depois, trabalho para dar orgulho para a família. Tudo isso que a gente está falando tem a ver com o judaísmo”.
Os outros dois fundadores da Reserva, além dele, são judeus. Fernando Sigal e Jayme Nigri, amigos de infância. Mais tarde, veio José Alberto da Silva, o mais velho, que não é. “Ele tem 64 anos e é disparado o mais jovem, cuida do digital.” O sucesso dessa parceria, ele credita à sorte: “ Empreender com dois amigos de infância é a receita pra tragédia, né? E deu supercerto!”.
Ao longe, Almir, o maître do Parigi, carrega o cardápio e pede licença para se aproximar. Meisler diz que não está bebendo álcool em função da dieta, mas oferece um vinho. “Gente, fiquem à vontade, pelo amor de Deus.” A conversa segue apenas com água. Ele está acompanhado pela assessora de imprensa que trouxe seu livro “Rebeldes têm asas”, com prefácio de Luiza Helena Trajano, no qual ele compartilha sua biografia, sua filosofia e a história do nascimento da empresa. No total, a obra vendeu mais de 100 mil cópias.
Meisler escolhe o steak tartare acompanhado por uma saladinha em vez das tradicionais batatas fritas. Quando Almir traz a mesa de preparo para misturar os ingredientes diante de nós, ele acompanha passo a passo. “Sou viciado em steak tartare e vou te falar: o teu está absolutamente perfeito. Acertar o ponto é difícil, você foi cirúrgico, cara.” Fazer churrasco na pandemia foi uma maneira de aliviar o estresse. “Gosto de churrasco e sushi, mas não sou muito sofisticado no paladar.”
Ele retoma a conversa e brinca ao dizer que pegou o último barco dos millennials (que abarca quem nasceu de 81 a 95). “Sou de março de 81, o barco já tinha desancorado, mas saí correndo e subi, posso dizer que sou um millennial. Acho que a nossa geração começou a ficar próxima das consequências dos problemas do planeta. Temos um sentimento de urgência. Somos mais conscientes porque os problemas estão mais perto dos nossos filhos e netos.” Ao contrário do que acontecia com a geração de seus pais e avós, para quem as consequências do estilo de vida ainda pareciam estar muito distantes.
No ano passado, a receita operacional bruta da AR&Co foi de R$ 1,2 bilhão, em 2021 havia sido de R$ 770 milhões. Com esses números a divisão passou a ter uma representatividade de 23% na receita do grupo Arezzo&Co. A quantidade de peças produzidas saltou de 4,1 milhões em 2021 para 6,1 milhões em 2022. Mesmo assim, ele conta que, apesar do gigantismo atual, tudo sempre começa pequeno e a partir de algo pessoal. “Não tem certo ou errado, é só o nosso jeito.”
Assim foi com a coleção GGG que teve como garoto-propaganda o cantor Leo Jaime. Ela nasceu durante um jantar com um de seus melhores amigos, que havia feito uma cirurgia bariátrica e lhe perguntou por que a Reserva não fazia tamanhos maiores. “Nessa noite, ele me contou que todas as vezes que comprava nas lojas de tamanhos grandes saía chorando com sacolas na mão e que todo mundo olhava com reprovação. Era como se fosse um apartheid. Aquela confissão me sensibilizou de tal maneira, que resolvi fazer. E escolhemos o Leo Jaime, que sempre atuou como advogado [do combate à] gordofobia.”
Para fazer tamanhos grandes ou roupas para PcD é preciso todo um projeto industrial, às vezes complicado. “A gente foi fazendo de pouquinho e se descobrindo com isso também, entendeu? Fomos a primeira marca de moda do Brasil a ter o tamanho 3G.” O que ele descobriu com esse segmento do negócio foi muito além do que imaginava, no início, quando pensava que iria entregar autoestima para as pessoas. “Não, a gente estava entregando dignidade! Você imagina o que é para uma pessoa que tem uma deficiência na mão, por exemplo, não conseguir abotoar uma blusa?”
Nesse caso, explica, a camisa é fechada por imãs e os botões são falsos. O que requer toda uma adaptação no processo de produção. O mesmo ocorre com as calças compridas para cadeirantes, que só conseguem se vestir com um zíper que passa pela parte interna da perna. Todos esses moldes foram desenvolvidos com o apoio da ONG Equal, que ensinava as costureiras a fazer roupas adaptáveis para esse público.
Demorou para ele ceder à insistência da CEO da Equal, Silvana Louro, que procurava a Reserva havia vários anos para fazer um projeto conjunto. “Só fomos perceber a importância disso em 2018/19. Imagina que são mais de 45 milhões de brasileiros portadores de algum tipo de deficiência. Aí botamos um boneco cadeirante na vitrine e foi um sucesso de vendas.”
Ao fazer um retrospecto e perceber como sua visão mudou nos últimos anos, pondera: “Adoraria dizer aqui que lá em 2006 eu falei assim: olha, a gente vai ser uma marca preocupada com a fome, com a questão dos corpos e a inclusão da diversidade. Mas não era assim. A gente começou fazendo de pouquinho em pouquinho e foi vendo que essas coisas, além de trazerem orgulho, traziam mais consumidores. É isso que prega o capitalismo consciente. Quanto melhor você faz, mais volta pro negócio.”
Embora a Reserva tenha nascido numa academia, ela se tornou uma tradução do Rio e Meisler gosta de dizer que as marcas ali nascem na praia. “Porque o Rio é um ambiente muito solar e muito democrático nesse sentido.” Todo mundo vai à praia, independentemente de raça, credo ou quantidade de dinheiro que tem na carteira. “A praia é de graça e tudo tem a ver com esse lifestyle praiano.”
A moda brasileira, em sua opinião, deveria ter um lugar de destaque no mundo, o que ainda não acontece. “Somos um país rico culturalmente, com uma economia criativa tão latente… poxa, é um pecado que a gente não possa exportar em volume, em escala, o que se cria aqui em termos de moda.” O que falta para isso? “O brasileiro tem um certo complexo de vira-lata. Quando você conversa com o empresário brasileiro e pergunta por que não expandiu internacionalmente, ele responde: ‘Porque para mim tá bom, o Brasil é muito grande, né?’.”
Quando olha de fora, Meisler diz que vê, talvez, um dos lugares mais hostis para empreender no mundo. “O Brasil é muito complexo em termos de burocracia logística, acesso a crédito, segurança e com altos e baixos no que diz respeito à economia o tempo todo. Portanto, quem vence aqui é aquele jogador de futebol que treina com a bola de areia, sabe? E que quando vai para o campo jogar com a bola normal, putz, onde a bola é um pouquinho mais leve, tem tudo para dar certo.”
Com a associação com a Arezzo&Co, que já começou uma expansão internacional, ele pretende utilizar essa estrutura para alavancar as marcas da AR&Co. “Nosso foco inicial é nos Estados Unidos e a ideia é escalar para que a gente possa colocar mais marcas nessa plataforma tanto no ambiente online como no ambiente off-line.”
Produzir principalmente no Brasil foi uma das opções da Reserva, que fabrica 97% das peças aqui. A maioria dos outros 3% são na América Latina, especialmente Peru, um pouco no Paraguai e menos de 1% na China. “Essa tese da nacionalização da produção se comprovou a mais acertada durante a pandemia. Foi uma decisão ideológica, digamos assim filosófica a princípio, que acabou por ser o melhor negócio.”
A conversa já se estende por mais de duas horas. Meisler deixou o celular de lado o tempo todo e diz que diariamente faz check-in e check-out para iniciar e finalizar o trabalho. Daí em diante fica com a mulher, vê filmes ou lê. Declara-se um leitor ávido, que consome em média dois livros por mês, especialmente biografias. No final, insiste para pagar a conta mesmo sabendo que não seria de sua responsabilidade.
Fonte: Valor Econômico