Moradora da Rocinha, Valdete da Silva Oliveira, de 56 anos, passou as últimas três décadas trabalhando por conta própria como depiladora. Nas últimos meses, manteve uma clientela cativa de 20 mulheres de bairros endinheirados da zona sul do Rio de Janeiro. Há cerca de uma semana nenhuma demandou seus serviços.
“O serviço desapareceu totalmente. Todos estão com medo do coronavírus, então as clientes não me recebem em casa”, diz a depiladora, que teve a ajuda de algumas clientes dispostas a antecipar o pagamento pelo serviço a ser prestado futuramente, passado o pior momento da pandemia.
Valdete saiu de casa uma vez na semana passada, para fazer compras no mercado. As ruas da Rocinha não estavam muito diferentes das do resto da cidade: pouca circulação, comércio fechado, especialmente nas vias principais, onde circulam policiais que orientam o fechamento de lojas.
As dificuldades são compartilhadas por outros moradores e pequenos empreendedores. Levantamento do Instituto Data Favela em 262 comunidades do país, que ouviu 1.142 pessoas, mostra que 54% dos moradores de 16 anos ou mais de favelas vivem de empreitadas individuais, como autônomos ou microempreendedor, dos quais apenas 30% são formalizados.
São manicures, cabeleireiros, boleiras, vendedores ambulantes, lavador de carro, eletricistas. É exatamente o perfil de trabalhador que mais preocupa especialistas durante o período de isolamento provocado pelo novo coronavírus, por sofrer perda súbita de rendimentos e, na maioria das vezes, não ter poupança.
Um recorte do levantamento realizado de 20 a 22 de março e obtido pelo Valor mostra que 86% dos entrevistados perceberam redução das vendas ou movimento do negócio por causa dos efeitos do coronavírus. E ainda que 92% estão “muito preocupados” com os efeitos da pandemia sobre seus negócios.
“Os pequenos empreendedores de favelas ficam sem renda, não têm poupança. Em um mês, a maioria não vai ter dinheiro para se alimentar. Isso pode, lá na frente, gerar uma convulsão social”, disse Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva e fundador do Data Favela com a Central Única das Favelas (Cufa).
Meirelles alerta que romper a quarentena não seria, porém uma saída. “Criou-se uma discussão de economia versus saúde. Mas é melhor falidos do que falecidos. A economia se recupera, vidas humanas, não. Essas famílias são sustentadas, muitas vezes, por uma só pessoa. Se essa pessoa morre, a desestruturação social é muito grande”, acrescenta.
Ele defende como saída o aumento do gasto público. “O país precisa de crédito para pequenas empresas, injeção direta de recurso. É colocar dinheiro no bolso do cara. E isso de forma rápido, para não ser tarde demais”, diz Meirelles, acrescentando que as medidas anunciadas ainda não seriam suficientes.
Comandada por Celso Athayde, a Cufa é uma das organizações sem fins lucrativos que têm buscado conscientizar moradores das comunidades. Ele divulgou vídeo com artistas ressaltando a importância de lavar as mãos, colocou carro de som nas ruas e mobilizou lideranças de diversas favelas do país.
“Fazemos campanhas nas favelas há mais de 20 anos. Temos lideranças em 5 mil favelas do país. São 250 apenas em São Paulo, outras 250 no Rio de Janeiro. Sabíamos que, quando o coronavírus chegasse na favela, o espaço aglomerado era propício para propagação de qualquer desgraça”, afirma Athayde.
No Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, o coletivo Papo Reto criou um funk orientando moradores. “Vamos ter consciência e fazer toda a prevenção para nossa comunidade. Lave as mãos frequentemente, com água e sabão. Evite sair de casa para não ter aglomeração”, diz um trecho da música divulgada.
Athayde diz que as mensagens esbarram, porém, nas carências das favelas. Como pedir para pessoas das comunidades lavarem frequentemente as mãos se nas favelas falta serviço de água e esgoto? Como convencer os trabalhadores para ficarem em casa se a renda deles depende do valor faturado nas ruas?
“Mesmo os trabalhadores formais das favelas continuam saindo para trabalhar. Eles é que tornam possível a quarentena da classe média. São caixas de supermercados, atendentes de farmácia, entregadores de comida, o gari que continua recolhendo lixo”, diz o fundador da Cufa.
A ONG tem viabilizado a distribuição de doações. Na sexta-feira houve a distribuição de 20 toneladas de picanha doadas pela JBS Friboi. A Ambev doou álcool gel, assim como a Natura. A Fundação Casas Bahia fez doação de cestas básicas. Empresas como Picpay e Lello também têm apoiado.
“Temos pouco tempo de vírus e os impactos sociais são crescentes, porque a favela já era um lugar carente. Não sabemos quanto tempo vai durar, é preocupante. Precisamos de mais doações para continuar”, diz Athayde, que pela primeira vez em 20 anos abriu campanha para receber doações de dinheiro na Cufa.
Projeções do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Varga (Ibre/FGV) mostram que a renda dos informais será ainda mais afetada pela crise – neste caso, incluindo moradores de comunidades e do “asfalto”. No cenário considerado otimista, segundo as projeções, a renda desse grupo vai encolher 5% no segundo trimestre e 2% no terceiro trimestre.
Dados da Pnad Contínua, do IBGE, mostram que a renda média mensal de um trabalhador informal ou conta própria sem CNPJ está na faixa de R$ 1.300 a R$ 1.350. Metade desses trabalhadores recebe valores iguais ou superiores a um salário mínimo. O contra própria com CNPJ, ou seja, formalizado, recebe em média R$ 3.125.
“O risco de uma crise social severa no Brasil, principalmente nas grandes cidades, é elevado. E, caso não se garanta a sobrevivência dessas pessoas, também não se controlará a pandemia, pois esses trabalhadores, e seus familiares, vão para as ruas buscar renda de alguma forma”, avaliou Daniel Duque, do Ibre/FGV.
Fonte: Valor Econômico