Uma peça nunca está fora de moda aos olhos de Gabriela Mazepa, 35. A estilista faz daquilo que seria considerado lixo uma potência de mudança em cadeia. Com a Re-roupa, cujo lema é “roupa feita de roupa”, ela cria roupas novas a partir de matérias primas que eram consideradas resíduo (ou lixo mesmo!), como fins de rolo de tecido, retalhos, e peças com pequenos defeitos. E, além de impedir que o material vá para algum aterro sanitário, ela ainda qualifica mão-de-obra.
O grande ponto é sua própria metodologia de transformar algo que ninguém queria em um item desejável. Com isso, a Re-roupa atua produzindo pequena coleções, de 15 a 45 itens, que abastecem sua loja online, além de oferecer oficinas, consultoria, palestras, e realizar projetos com outras marcas. Atualmente, o foco está na coleção que sai, ainda este mês, em parceria com a Farm. Serão 300 peças refeitas, num processo industrial pioneiro. Ele conta:
“Entender o sintoma do excesso de consumo já é um grande passo. Fazer coleções a partir de resíduos em parceria com grandes marcas serve para falar com o público sobre este assunto”
E prossegue: “Quem faz a oficina do Re-roupa, já sacou, agora a menina que é ‘farmete’, talvez não. Então, na hora que ela compra e lê na etiqueta ‘esta peça foi feita de resíduo’, talvez impacte. É nisso que eu aposto”.
As peças da Re-Roupa são feitas da transformação de outras, garimpadas em brechós.
As peças da Re-Roupa são feitas da transformação de outras, garimpadas em brechós.
Criada entre as máquinas de costura da pequena confecção da mãe, em Curitiba, para ela trabalho justo sempre foi algo presente. A estilista lembra que ficava durante o dia com os filhos da costureira-chefe. “Todo mundo hoje fala de produção local e de tratar bem a costureira, mas para mim sempre foi assim que funcionou”. Preocupada com a questão social, seus projetos são feitos com cooperativas e todo o orçamento é transparente. Além disso, a cada palestra paga, ela faz uma gratuita para garantir a popularização dos conceitos.
ENTRE BRASIL E EUROPA, A DESCOBERTA DO PRÓPRIO CAMINHO
Gabriela gosta de dizer que teve sorte e as coisas em sua vida foram acontecendo, mesmo que seja inegável sua capacidade de agarrar oportunidades. Após a morte de sua mãe, quando ela tinha 17 anos, veio aquele momento de decidir a carreira. Bailarina desde os 7, ela sentia que seu caminho era na área criativa, mas teve que ser prática no vestibular. Decidiu cursar arquitetura e, no terceiro ano, ganhou uma bolsa para estudar na França. Lá, abriu os olhos para a possibilidade de uma carreira artística. Descobriu uma escola de arte, conseguiu uma bolsa e ligou para o pai dizendo que ficaria mais quatro anos.
“Meu projeto de graduação é muito parecido com o que é o Re-roupa hoje: eu pedia para as pessoas a roupa que elas não usavam mais, perguntava a história daquela roupa e a transformava. Todo mundo tinha uma roupa com histórias. Hoje, isso não é relevante”, diz.
Era 2007, por lá crescia o debate sobre moda consciente e ela percebeu que o que fazia era o chamado upcycling. A mudança de chave de deixar de ser um trabalho artístico para um negócio veio quando ela conheceu sua ex-sócia. As duas criaram uma marca, a By Mutation. Ela fala sobre o conceito, que consiste em criar peças e produtos a partir de materiais já usados uma vez: “O que chamam de upcycling é gambiarra. E, no Brasil, a gente é muito bom nisso”.
Durante o dia, ela servia cafés para ter grana para investir na marca. Mas a falta de mão-de-obra seria uma grande barreira, que a faria se desentender com a amiga ao decidir voltar para casa, em 2009. De volta ao país, porém, ela se sentiu em um verdadeiro limbo. Estar em Curitiba, uma cidade progressista na questão ambiental, não foi o suficiente para, naquela época, ver uma forma de seu projeto rodar:
“Ninguém entendia como eu ia fazer dinheiro e, às vezes, você tem uma ideia boa, mas o mundo não está preparado”
O destino acabou levando-a para fora do Brasil novamente. Ela inscreveu-se e ganhou para uma bolsa do British Council que reuniu estilistas jovens de todo mundo, em Londres, e assim estava de volta à Europa. Com isso, fez uma rede de contatos que acabou a levando para o Sri Lanka. Criou duas coleções trabalhando com estoques de empresas de grande porte, com 25 mil funcionários.
“O problema é que nós éramos atores muito pequenos para mudar uma coisa que não mudou até hoje, que é o sistema. A sensação que eu tenho é que ficamos apagando um incêndio muito grande”, conta. Durante dois anos entre Inglaterra e Sri Lanka, “foi muito carreira solo”, fazendo projetos, dando aula e fazendo outros trabalhos para conseguir se sustentar. Decidida a voltar para o Brasil, de vez, ela entendeu que criar sua própria marca seria o meio de sobreviver. E foi na trilha de todo pequeno estilista: com loja online e muitas feirinhas.
UM NOME, UM CONCEITO E O AJUSTE NA ESCOLHA DE PARCEIROS
Há quatro anos, ela fundou o que hoje é a sua marca. Para ficar conhecida por aqui, Gabriela fechou uma parceria com o Enjoei, um site para venda de produtos, essencialmente roupas, usados (geralmente vendidos por seus proprietários). O projeto de Gabriela com o Enjoei consistia em garimpar em brechós e fazer uma coleção com 100 peças. Em uma reunião, veio o batismo da marca: Re-roupa. A divulgação cresceu e tudo o que ela fazia como carreira solo passou a ser realizado, agora, sob guarda-chuva da marca — caso das oficinas onde as pessoas levavam sua peça para ser transformada. Logo, elas passaram a fazer exposições do conceito (e das peças) em espaços como Instituto Europeo di Design, Senac e Sesc.
Este processo ajudou a consolidar a metodologia, que viria a atrair parceria com outras empresas. Com a Rede Asta, Gabriela fez um projeto em que uniformes (que normalmente têm vida útil de seis meses) seriam transformados em bolsas, como um brinde corporativo.
Ela conta, no entanto, que já recusou ofertas por ver mais uma intenção de greenwashing (quando uma empresa usa o discurso da sustentabilidade sem, no entanto, ter atitudes efetivas nesse sentido) do que vontade de fazer diferente.
Esta semana, divulgou uma carta aberta listando os motivos pelos quais saiu da parceria com a Malha e a C&A, em que cita um “abismo” entre discurso e prática. O “textão” no Facebook gerou uma discussão interessante e respeitosa com os demais envolvidos (o que é raro nos dias de hoje e deve ser comemorado). As discordâncias ficaram evidentes e o desafio que é fazer moda sustentável está bem colocado. E é enorme. “Eu tenho medo de aparecerem mais marcas sustentáveis, mais produto e pouco processo“, diz Gabriela. E faz uma reflexão sobre o seu modelo de negócio:
“Hoje, produzir coleções não é o carro-chefe da Re-Roupa porque eu teria de investir em quantidade e vivo falando que já existe roupa suficiente no mundo. O que a gente precisa são de novos processos”
Ainda que desconfiada de algumas intenções, a Re-roupa entende que consultoria e projetos com grandes empresas, assim como cursos e palestras são mais importantes até do que a produção própria de coleção. Não só como viabilidade financeira, mas justamente por ter em seu DNA a missão de reduzir os resíduos. Por isso, fechou a parceria com a Farm.
MUDANÇA PARA SÃO PAULO
Por causa de um relacionamento amoroso, Gabriela está de mudança para São Paulo, onde vai viver uma nova aventura. Apesar de amar o Rio, está animada com a busca de um espaço para ser seu primeiro endereço comercial. Até aqui, foi tudo conduzido no ateliê montado dentro de casa. Com a mudança, ela espera atrair novos parceiros.
“A Re-roupa já conseguiu ser um case de que é possível falar destes assuntos. A cada dois dias, eu recebo entrevista de alunos da faculdade”, diz ela, que acredita no poder da capital paulista para expandir este diálogo:
“Mesmo falando de moda sustentável há dez anos, a gente ainda tem que falar muito porque é uma bolha”
No último ano, as palestras e consultorias representaram a maior fatia no faturamento da Re-Roupa (que foi de 72 mil reais no ano passado), e a venda da coleção própria representou um percentual baixo desse total. Apesar de não querer ser “refém” da produção de roupas, como já dito acima, ela sonha em expandir, mas com uma ambição comedida. “Vai depender do que eu preciso para ser feliz. Gostaria de ter uma sala com quatro costureiras trabalhando, mas não preciso de 40. Acho que temos que investir mais em educação, então eu me sinto realizada de viver mais do que eu falo”, diz
Fonte: Projeto Draft