26/11/2014 às 05h00
Por Angela Klinke
Mesmo sem loja própria no país, a estilista britânica Stella McCartney pode ser alcançada pelo público brasileiro em diferentes frentes: na C&A, onde assinou uma coleção para a rede de fast fashion; no e-commerce Farfetch com a coleção Resort 15; no site de peças seminovas Etiqueta Única ou na exclusiva butique paulistana NKStore. A realidade omnichannel se impôs à indústria do luxo. As grifes circulam por araras nunca antes imaginadas. E, em muitos casos, sequer planejadas. A pressão dos consumidores é, antes de tudo, por acessibilidade.
Pelos dados de um estudo sobre o setor feito pela Bain & Company em parceria com a Fundação Altagamma e apresentado no último mês, há um “twist interessante” no mercado. Os consumidores mais maduros têm exigido “um maior valor percebido de luxo pelo seu dinheiro” e estão até fazendo um “downgrade” para etiquetas intermediárias, enquanto os aspiracionais conseguem seu “upgrade” por meio dos outlets e dos itens de segunda mão. Por sinal, com a facilidade da plataforma on-line, os brechós de luxo devem alcançar os 16 bilhões este ano. E o modelo de negócio virou até série de tevê que no Brasil é transmitida no Discovery Home & Health.
“Por um lado o crescimento do luxo de segunda mão canibaliza as vendas de novos produtos. Os consumidores estão mais propensos a comprar marcas de luxo com o menor custo possível – provavelmente mais baixo do que nas monomarcas ou lojas de departamento, reduzindo o crescimento do mercado”, avalia Cláudia D’Arpizio, sócia da consultoria e coordenadora do estudo. “Por outro, as marcas mais oportunistas veem o lado positivo dessa tendência. Varejistas de segunda mão estão transformando artigos de luxo em bens duráv eis, com preço de revenda cada vez mais definido, o que aumenta o valor percebido do produto”, completa.
As irmãs Daniela e Gabriela Carvalho começaram o Peguei Bode há três anos “na brincadeira” com dois pares de Louboutin e um iPad. Hoje, o e-commerce de luxo de segunda mão tem mais de 50 mil clientes cadastradas no Brasil. Cresceu no boca a boca, no círculo social ao qual pertencem, com as amigas querendo se desfazer de peças do guarda-roupa. Uma delas abriu mão de 20 bolsas Chanel num mesmo dia. “No começo tinha um pouco de preconceito. Mas hoje as mais ricas compram e vendem no site direto. Tudo é feito na base do relacionamento”, conta Daniela que cuida do marketing.
A dupla ficou conhecida por ter acesso à maior “oferta” de bolsas Hermès do mercado. No começo do mês, por exemplo, um exemplar Kelly “novinho, ainda na caixa e com etiqueta” durou exatos cinco minutos no site. Valor da peça: R$ 35 mil. “Nosso principal canal de divulgação é o Instagram, onde temos 70 mil seguidoras. Foi só publicar a bolsa lá que recebemos 50 e-mails imediatamente”, conta Daniela. E como para ter acesso a um exemplar desses é preciso entrar numa lista de espera em qualquer butique do mundo, o site se tornou um atalho para a mulherada suprir seu desejo instantâneo pela marca.
As bodetes, como são chamadas as clientes, fazem a foto do que querem vender. E estabelecem o preço que desejam – claro, com uma ajuda das meninas. Quando a venda é realizada, a equipe do Peguei Bode manda recolher e entregar a encomenda para que a privacidade das participantes seja preservada. “Por isso não tenho uma margem única nos produtos. Cada venda é uma negociação diferente”, diz. O e-commerce, que parcela em até quatro vezes, é um termômetro do desejo pelas marcas. “As peruas tops vendem, mas não compram Louis Vuitton. São as peruas mais normais que gostam de LV. Marc Jacobs também não é muito desejado. Em compensação, Chanel e Hermès não duram.” As moças passaram também a fazer caravanas pelo país. Organizam eventos em suítes de luxo no Rio, São Paulo, Recife, Salvador etc. Levam só bolsas. “Carregamos umas 500 e vendemos em média umas 300”, diz Daniela.
Para entrar neste mercado, Patrícia Sardenberg e mais três sócios criaram o Etiqueta Única com outro posicionamento. “Somos autenticadores de produtos de luxo seminovos”, diz. Ela começou fazendo bazares com as amigas, mas logo viu que havia espaço para profissionalizar e trabalhou durante nove meses no plano de negócios. “Nossa equipe de avaliadores estuda a evolução de cada marca. No mundo todo este mercado cresceu muito, assim como as réplicas”, diz ela, que se deparou com falsificações só no “comecinho da empresa”.
Mesmo sendo um site de itens usados, a idade média das peças tem diminuído cada vez mais. São itens da Gucci, Celine, Prada, Hermès que se aproximam das coleções que estão nas lojas. “Por consequência, as peças já não são tão mais baratas. Mas mesmo que seja R$ 500 a menos que a loja, ela vende.” A procura por itens vintage também tem crescido. “Por nossa expertise de avaliação, temos atraído cada vez clientes interessados em peças deste tipo.” O Etiqueta Única fez um ano em agosto, tem 14 mil clientes cadastrados, 26 mil seguidores no Instagram e 1,8 mil produtos em consignação no acervo de 140 marcas. A taxa de recompra é de 48%. “O tempo máximo de venda de uma peça é uma semana.”
Os públicos também se misturam nas lojas “off-price”, e as grandes marcas recorrem cada vez mais ao varejo de produtos com desconto, em especial com unidades em outlets bacanudos: a penetração dobrou nos últimos três anos, segundo o estudo da Bain. Com a inauguração em outubro do shopping Catarina, do grupo JHSF, a 60 quilômetros de São Paulo, muitas grifes internacionais estão estreando no canal outlet no país, como Burberry, Carolina Herrera, Michael Kors, Tory Burch, Kate Spade. Outras como Armani e Hugo Boss, que também estão lá, já têm unidades no Outlet Premium, em Vinhedo (SP).
“As grifes são muito rígidas, exigentes e a uniformização das lojas vem da matriz. O shopping Cidade Jardim nos permitiu um relacionamento muito bom com elas e por isso conseguimos ter tantas representantes do setor no Catarina, mesmo não sendo exclusivamente um outlet de luxo”, diz Robert Harley, CEO da unidade de negócios shopping da JHSF. E como estas marcas andam sempre em bando, outras “representantes do luxo estão na lista de espera da expansão que pode até ser antecipada.”
As grifes de luxo não fazem o menor esforço, contudo, em comunicar sua presença em outlets. Sequer querem informar o que vendem (podem ser coleções passadas ou itens específicos para o canal), nem os descontos oferecidos – no Catarina, por contrato, a redução deve variar entre 30% a 80%. Ao mesmo tempo que precisam desovar estoques ou ganhar escala, temem a canibalização e desgaste de imagem? “Não acredito nisso. Acho que para o consumidor é mais uma opção de entretenimento. Tenho visto muitos clientes do Cidade Jardim que também têm frequentado o Catarina. Um outlet é um lugar de oportunidades. Com o câmbio atual, os brasileiros que já tinham esse hábito quando viajavam vão fazer o mesmo aqui.”
Pelo estudo da Bain & Co, as vendas no varejo físico continuam em alta. Metade dos consumidores que acessam este canal prefere as lojas monomarcas. Ao mesmo tempo, no e-commerce, que cresceu 28% comparado a 2011, o desejo é pela variedade de etiquetas, ou seja, pelas multimarcas.
“Havia uma crença de que luxo não se vendia pela internet por causa da exigência de exclusividade e necessidade de experiência de compra. Mas luxo também é tempo e conveniência e havia uma demanda reprimida onde estas marcas não chegavam”, diz Daniel Funis, diretor do site Farfetch no Brasil. Com a resistência das empresas de luxo pelo canal, a Farfetch começou em 2008 reunindo as multimarcas conceituais da Europa que revendiam etiquetas icônicas. “Foi muito inovador porque as lojas podiam se arriscar mais nas compras e, ao mesmo tempo, ampliar suas vendas num canal complementar. E os consumidores passaram a ter a seleção de produtos das grifes montando os looks mais diversos.” O Brasil hoje é o terceiro mercado da empresa, que tem Estados Unidos em primeiro e Inglaterra em segundo lugar. No próximo ano, abre escritórios na Rússia, Japão e China. Este ano a empresa deve faturar US$ 300 milhões, 90% a mais que 2014.
O Shop2gether nasceu com o desejo de ser uma “plataforma para atender consumidores de luxo”. É um marketplace que hospeda lojas oficiais de marcas como as nacionais Lilly Sarti, Cris Barros, Isolda, Ricardo Almeida. Mas a sócia-fundadora e diretora de marketing Ana Isabel Carvalho Pinto também faz a curadoria de grifes internacionais. Não sem dificuldades no início, revela. Hoje, ela tem itens da Balmain, por exemplo, que, por sinal, adiou sua abertura de loja no Brasil. “As marcas têm uma política de restrição de venda digital muito séria. Até hoje a Balmain aprova minha página antes que eu possa publicá-la. Mas faz parte e o resultado é tão positivo que conseguimos atrair outras grifes. Acabei de fechar, por exemplo, com a Alexander McQueen.” A empresa oferece serviços que a sintonizam com o setor como o acompanhamento de concierge, personal stylist, personal shopper, além de um programa de recompensas, que inclui até massagens. Neste ano o Shop2gether deve alcançar o faturamento de R$ 40 milhões, 130% a mais que no ano passado. E a meta para 2015 é bater os R$ 70 milhões.
A advogada especialista em fusões e aquisições, Isabel Humberg, tinha na cabeça o modelo Net-a-porter quando se juntou às amigas para experimentar vender roupas premium pela internet em 2009. Em 2011, OQvestir conseguiu atrair o investimento do Tiger Global, o mesmo fundo do Facebook. “Naquele momento o sócio queria que trabalhássemos com marcas internacionais. Mas achamos melhor primeiro tornar a operação impecável e ganhar volume antes de partir para uma etapa como essa. Não podemos frustrar nunca nossos clientes.” Hoje reúne 180 marcas, tem dois milhões de pageviews por mês e espera “bater os R$ 100 milhões de faturamento no próximo ano”. Com o slogan “compre moda com conteúdo”, Isabel se preocupa em ter um blog próprio com dicas de estilo, sugestões de looks e tendências.
O luxo ganha corpo no seu negócio que tem como missão “criar o lugar em que consumidor gostaria de estar no mundo virtual”. Isabel faz questão, desde o início, que os produtos cheguem às casas como se fossem pacotes de presente, embalados cuidadosamente. Detalhes como esses, e também um big data considerável, atraíram a grife Emilio Pucci. Com loja no Brasil operada pelo grupo JHSF, a marca italiana de luxo fará no OQvestir sua estreia num e-commerce nacional. “Trata-se de uma venda one shot. Vamos oferecer primeiro para um grupo seleto de clientes do site, numa ação segmentada, e depois abrimos para o público com data determinada para acabar”, explica Martin Gutierrez, diretor da divisão de retail da JHSF.
O mix de produto é reduzido, mas com as peças emblemáticas com as famosas estampas da marca. Para ele, a internet é um caminho estratégico para dar capilaridade a uma grife de nicho como a Pucci num país continental como o Brasil. Também constitui um importante instrumento para torná-la mais conhecida e desejada. Mas isso significa que a Pucci passa a ter uma operação on-line definitiva no país? “Ah, não é tão simples assim. A matriz vai avaliar e retomar a discussão.” Só o consumidor não espera.
Valor Econômico – SP