Por Adriana Mattos | Nos últimos meses, o anúncio do acordo da plataforma chinesa Shein com a Coteminas chamou atenção do mercado para o cenário de crise vivido pela empresa têxtil, gerida por Josué Gomes da Silva. Na semana passada, a publicação do balanço de 2022, divulgado com atraso de sete meses, traz detalhes sobre a situação da companhia e aspectos do acordo com a Shein, que envolve um empréstimo de quase R$ 100 milhões a uma controlada da Coteminas.
Outra medida em andamento é a venda de dois complexos residencial e comercial do grupo, ainda sem compradores. A Coteminas fechou 2022 com prejuízo de R$ 670 milhões, quatro vezes e meia superior ao de 2021.
Com 85% de empréstimos bancários vencendo em 2023, e queda de 30% na receita no ano passado, a Coteminas abriu uma renegociação de dívidas com as instituições. Suas controladas pediram “waiver” (perdão temporário, com adiamento no pagamento) a debenturistas.
Pareceres de auditores da Coteminas e de sua controlada, a Springs Global Participações, anexados ao balanço de 2022, relatam incertezas relevantes que poderiam “levantar dúvida significativa quanto à capacidade de continuidade operacional” dos negócios.
Foi a primeira demonstração de resultado anual da Coteminas e da Springs com esse alerta dos auditores. A Companhia de Tecidos Norte de Minas-Coteminas é controladora direta da Springs Global e indireta da CSA (Coteminas S.A).
Procurada, a empresa preferiu não se manifestar.
A apresentação dos balanços do primeiro e segundo trimestres deste ano da Coteminas e da Springs está atrasada, com previsão para ocorrer até dia 14 de novembro. Os números de 2022 de ambas as empresas foram publicados após três adiamentos.
Nesse processo, uma restruturação foi implementada e houve busca por novo capital. Segundo as notas explicativas das demonstrações, uma linha de financiamento foi fechada em julho de 2023 junto à Shein no valor de US$ 20 milhões para capital de giro (cerca de R$ 96 milhões no câmbio da época). O valor não havia sido divulgado ao mercado até então.
Passivo é de R$ 1,36 bilhão, sendo R$ 874 milhões vencendo em 2023 – patrimônio é de R$ 724 milhões
Durante essas negociações, os balanços da Coteminas e suas controladas não foram publicados por causa da não conclusão de um trabalho de auditoria em uma operação da Coteminas, a Springs Global US. Inc. A companhia não informa a razão da auditoria.
Ainda segundo as notas explicativas, o contrato de empréstimos entre a TopFashion no país (empresa da Shein) e a Companhia Tecidos Santanense, controlada pela Coteminas, foi finalizado com um único vencimento para junho de 2026 e pagamento de juros anuais. Não há dados no documento da taxa de juros acertada.
Os recursos foram negociados na forma de empréstimos conversíveis em ações da empresa têxtil. Logo, a Shein teria a opção de se tornar sócia da Coteminas. Paralelo a isso, a Coteminas fechou um acordo de fornecimento de matéria-prima à Shein.
Além disso, duas mil confecções parceiras da Coteminas devem se tornar fornecedoras da Shein, na posição de fabricantes terceirizadas. A Shein poderia fechar essa parceria diretamente com as confecções, como faz no resto do país (são mais de 200 fábricas vendendo para a Shein), mas ela o fez por meio da Coteminas. A entrada do dinheiro na sua controlada Santanense, em má situação operacional, ocorreu em julho.
Em abril, o acordo chegou a ser celebrado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pelo potencial de geração de renda, após uma reunião em abril entre Josué Gomes – filho de José Alencar, ex-vice presidente da República no governo do PT – e Marcelo Claure, principal executivo da Shein no Brasil.
Não é comum plataformas on-line emprestarem dinheiro a indústrias, assim como a Shein nunca havia aceitado se tornar acionista de empresas abertas nos países onde atua. A menção à conversão de ações está nas notas explicativas das demonstrações de 2022.
O Valor apurou que, apesar de a questão ter sido discutida na época da assinatura do memorando entre Gomes e os chineses, a Shein preferiu não ter essa opção no contrato, e foi fechado o empréstimo sem a conversão em ações, por meio da Santanense e para recomposição do capital da giro. Procurada, a Shein preferiu não comentar os pontos do acordo.
Ao fim de junho, pouco antes da entrada desse dinheiro, a Santanense, já com produção em queda e salários dos empregados atrasados, acumulava prejuízo de R$ 48 milhões, nove vezes a perda de um ano antes.
A Coteminas fechou o ano passado com R$ 1,52 bilhão de receita operacional líquida, queda de pouco mais de 30% sobre 2021. O volume vendido de cama, mesa, banho e outros produtos caiu 35%.
Em julho, a CSA firmou acordo com os sindicatos dos trabalhadores de Montes Claros (MG), Blumenau (SC) e João Pessoa (PB) para a demissão de 1.709 pessoas até setembro, ou 30% da base total de empregados da CSA.
Na semana passada, a publicação relativa a 2022 ocorreu sem ressalvas pelos auditores das duas companhias, mas com uma ênfase em relação a uma emissão de dívida cujas obrigações não foram cumpridas em 2023. Ênfases são destacadas pelas auditorias quando o tema é crucial para se entender as demonstrações da empresa.
Ainda de acordo com a auditoria da Coteminas, a RSM Brasil Auditores, a administração e suas controladas vinham desenvolvendo negociações para recomposição do capital circulante líquido, que estava negativo em R$ 548 milhões no valor consolidado de 2022. Ao tratar deste tema, a RSM faz a menção à questão da capacidade de continuidade operacional.
Também no balanço da controlada Springs Global, a auditoria BDO cita o capital circulante negativo de R$ 413 milhões e a incerteza relevante relacionada com a continuidade. Esse montante inclui recursos, por exemplo, para girar estoques, comprar insumos e pagar dívidas de curto prazo.
Na Coteminas, a maior parte desse valor negativo se refere a empréstimos e financiamentos, parte deles alvo de renegociações.
A empresa já havia informado ao mercado, na publicação de resultados trimestrais de 2022, que vinha em processo de renegociação dos passivos, após descumprir cláusulas dos contratos com bancos, e havia solicitado “waiver” aos credores. Empresas precisam respeitar índices financeiros (“covenants”) definidos nos acordos, sob pena de sofrerem um vencimento antecipado de toda a dívida.
Essa reestruturação da dívida foi estendida para 2023, e segundo fontes, corria em paralelo à tentativa da Coteminas de fechar um acordo com a Shein.
Segundo notas explicativas do balanço, CSA e Springs Global não conseguiram respeitar os índices acordados com credores relativos a uma emissão de debêntures de R$ 160 milhões em 2021, por conta do aumento na taxa Selic e dos preços da matéria-prima.
Em dezembro de 2022, as empresas obtiveram o perdão dos investidores, mas não há detalhes sobre novas condições acertadas com os debenturistas.
Outra renegociação também envolveu uma debêntures de R$ 180 milhões, de junho de 2022, da empresa AMMO Varejo, controlada pela Coteminas (e dona da Artex e M.Martan), cujos “covenants” também não foram cumpridos, e cuja remuneração é de 20% ao ano.
Ao se manifestar sobre a situação operacional nas demonstrações de 2022, a Coteminas diz que suas empresas sofreram uma forte redução de capital de giro, e que a inflação de custos e o recuo do poder de compra das famílias afetaram a demanda das marcas voltadas para a menor renda, por isso a receita líquida recuou.
Medidas foram tomadas na Springs no fim de 2022, como o corte de quase 80% no número de itens à venda, para 1,5 mil, simplificando a operação e diminuindo custos e consumo de caixa.
Sobre a alavancagem, a Springs afirma que as negociações de dívidas foram concluídas e envolveram alongamento com novo prazo médio superior a três anos. E os desembolsos previstos para 2023 foram reduzidos em 80%.
Os passivos totais da Coteminas somavam pouco mais de R$ 1 bilhão ao fim de 2022, sem incluir debêntures. Incluindo esses títulos, a soma atingia R$ 1,36 bilhão.
Cerca de R$ 874 milhões vencem em 2023, uma alta concentração no curto prazo. O patrimônio era de R$ 724 milhões em 2022.
Nos vencimentos deste ano, R$ 122 milhões foram pagos e mais de R$ 500 milhões foram repactuados para após março de 2023.
Parte relevante desse passivos de 2023 está nas mãos do Banco do Brasil. São R$ 391 milhões de empréstimos para a CSA, controlada da Coteminas, com juro anual de 130% a 150% do CDI e vencimentos em janeiro passado e novembro.
Ao comentar a questão, a Coteminas diz nas notas explicativas que está “empenhada” em reduzir esse endividamento por meio da venda de ativos não operacionais.
Em abril, o Valor noticiou que esse processo já estava em andamento, e havia sido vendida fatia de 30% da Cedro Têxtil, empresa do grupo que fabrica uniformes.
Segundo as notas do balanço, a companhia também colocou um complexo comercial e residencial de São Gonçalo do Amarante (RN) à venda (com valor justo somado de R$ 430 milhões), e as conversas ainda estão em andamento. E afirma que a venda e a negociação com credores devem regularizar a situação do grupo ainda em 2023.
Pelos dados até setembro, pelo menos, a controlada CSA atrasava salários e renegociava pagamentos de demissões deste ano. A companhia diz no balanço que a CSA acertou parcelar em 12 vezes os benefícios dos 1,7 mil demitidos de julho a setembro. Serão R$ 42,9 milhões a serem pagos em um ano. Sindicalistas ainda alertam para atrasos no depósito de salários.
Na semana passada, a CUT Paraíba manifestou apoio aos trabalhadores da Coteminas no Estado, que estariam com atraso salarial de meses. A situação seria semelhante nas unidades do Rio Grande do Norte, apurou o Valor. Em Blumenau, segundo a entidade local de trabalhadores da indústria têxtil, a empresa continua atrasando salário em até três dias. (Colaborou Marina Falcão, de Recife)
Fonte: Valor Econômico