Por Adriana Mattos | O atacarejo enfrenta a sua fase mais dura desde o “boom” do setor no país, após 2015, e parte do problema está na velocidade acelerada de aberturas e conversão de lojas, que vêm sustentando o forte crescimento do mercado por anos.
A canibalização entre as lojas das próprias atacadistas – após a onda recorde de aquisições de unidades – além da menor inflação nos preços de alimentos, já faz analistas alertarem sobre os riscos desse cenário em seus relatórios. Ainda há efeito de consumidores trocando marcas e comprando quantidades menores de mercadorias.
Pela primeira vez desde o início das pesquisas da NIQ Ebit, o mercado de São Paulo registrou, no primeiro quadrimestre, queda nas vendas “mesmas lojas” (com mais de um ano de operação), e em maio, o recuo se aprofundou, segundo dados obtidos pelo Valor, e enviados às redes nesta semana.
Ao considerar abril e maio, até o último dia 7, a retração na capital paulista e região metropolitana atingiu 4,8%. No acumulado do ano, de janeiro a 7 de maio, há recuo de 1,5% frente a 2022.
Segmento, que atende empresas e pessoas físicas, é o mais resiliente do setor, mas passou a sentir demanda mais retraída
Na análise de Brasil, que inclui o desempenho do Nordeste, onde a disputa das redes e a canibalização entre lojas das próprias empresas é menor, os dados são mais animadores (veja abaixo), mas ainda é sentido o peso do Sudeste.
No país, de janeiro a 7 de maio, o avanço nas vendas dessas lojas mais maduras foi de 3,9%, abaixo dos níveis de 2022 – em 10%, na média trimestral.
Houve uma deterioração do cenário ao longo dos meses. Até março, apenas capital e região metropolitana de São Paulo encolhiam. Mas ao se considerar o período de abril a 7 de maio, já eram quatro áreas nessa situação – além de São Paulo, também o Rio, o Centro-Oeste e interior de São Paulo.
Ao se considerar lojas mais antigas e novas, o faturamento do atacarejo avançou no Brasil 19,9% no ano, até 7 de maio – de janeiro a março, o setor crescia mais, quase 21%. No ano passado, o ritmo era ainda maior, com expansão de pouco mais de 25%.
“Na verdade, não esperávamos que viesse isso [queda em São Paulo]. É uma surpresa, apesar de sabermos que há justificativas”, diz Jonathas Rosa, responsável pela área de sucesso de clientes e varejo na América Latina da NIQ Ebit.
“Atacarejo continua a ser o setor que mais cresce no alimentar, mas, apesar de sua resiliência, ele passou a sentir também, como se viu em outros canais de venda, uma demanda mais retraída, e a alta no endividamento das famílias, além da aceleração de aberturas e a queda da inflação”, afirma o executivo.
Sobre o Sudeste, há efeito direto das conversões avançando sobre as lojas antigas. Em 2022, houve o início do plano de migração de 70 pontos do Extra, comprados pelo Assaí, e a transformação de 28 lojas de Makro e de 27 Big em Atacadão, de dois anos para cá. Essas conversões se espalharam rapidamente por áreas urbanas e periféricas, como Rio e de São Paulo, maior bolsão de consumo do país e onde a competição é mais acirrada.
Nas conversões, unidades adquiridas são fechadas por semanas ou meses, e quando reabrem, acabam disputando a venda com unidades vizinhas da própria cadeia. Para sair na frente, podem passar a “roubar” a venda da loja “irmã”, por causa das ações comerciais mais agressivas.
É uma tática comum nesse mercado, porque melhora a receita da loja recém-aberta, mas afeta o desempenho da loja madura. Muitas vezes, essa é uma opção consciente, porque o foco é ganhar tráfego e vendas na unidade nova, para ajudar a pagar o investimento.
A questão central, é que há especialistas e executivos que veem hoje um desequilíbrio nessa equação – amplificada pela deterioração do cenário “macro” do país. Há lojas novas sendo abertas na capital paulista a menos de cinco quilômetros de unidades antigas.
Segundo Rosa, da NIQ Ebit, no último um ano, 400 lojas novas de atacarejo foram inauguradas, incluindo pontos de hipermercados convertidos pelas cadeias.
“A desconfiança hoje, olhando o tamanho do tombo das lojas maduras, é que a perda delas está grande porque essa disputa interna não está saudável. A madura vem perdendo muito”, diz um diretor de uma rede média de São Paulo. “O risco é isso estar afetando margens, se a loja nova estiver sendo agressiva demais em preço para conseguir venda”, diz ele.
Aos analistas, dias atrás, Belmiro Gomes, CEO do Assaí, confirmou que há um aumento de competição com rivais e dentro da rede, mas prevê uma normalização desse processo. “Tem uma canibalização contra o setor e com nossas lojas mesmo, algumas antigas que também prestavam até um desserviço, lojas com R$ 7 mil, R$ 8 mil de venda por m2, e que eram muito desconfortáveis para o cliente”, afirmou em teleconferência.
“Calculamos um efeito de canibalização hoje em torno de 2% a 3% dentro desse parque de lojas do que abrimos em 2022. Mas isso fazia parte do projeto. É preferível estarmos nesse ponto do que um concorrente nosso estar”, disse ele.
Essa é uma percepção comum no mercado – a ideia de defender terreno -, e a dificuldade é atingir um equilíbrio nessas expansões. O Assaí tem dito a analistas que não perdeu margem, apesar dessa competição interna. A margem bruta da rede ficou estável de janeiro a março, em 16,1%.
O Carrefour, dono do Atacadão, também vê efeitos da competição nesse processo de reaberturas, e crê que haverá impacto nas “mesmas lojas” até fim do ano.
“Nós abrimos cerca de 100 novas lojas do Atacadão, inclusive asconvertidas do Maxxi [do grupo Big], nos últimos 18 meses. O nosso competidor principal [Assaí] também abriu e converteu muitas lojas, e outros operadores regionais também. Então, entramos num período de digerir isso”, disse a analistas, neste mês, Stéphane Maquaire, CEO do Carrefour.
“Temos um impacto nas lojas que já tínhamos e também entre nossas lojas. Acho que isso vai impactar a nossa performance até o último ‘tri’ de 2023. Mas seguimos firmes com nossos posicionamentos sobre preços, não mudamos nada”. A margem bruta do Atacadão também ficou estável, em 15,4%, de janeiro a março.
Em São Paulo e no Rio, que puxam a queda, Assaí e Atacadão são líderes – no estado paulista, concorrentes estimam que eles sejam donos de 60% das vendas. Por isso, tendem a sentir mais essa desaceleração, o que tem feito o mercado atualizar, em seus cálculos, os efeitos da competição acirrada.
Parte da queda de valor de Assaí e Atacadão na bolsa no ano – 41% e 30% de recuo, respectivamente – já é o mercado precificando esse cenário nas últimas semanas, dizem gestores ouvidos ontem. “Esperamos que os investidores se concentrem nos potenciais efeitos de canibalização entre as lojas de atacarejo, não apenas no Atacadão, mas também para o Assaí”, escreveu em relatório de abril Irma Sgarz, analista do Goldman Sachs.
Mesmo unidades recém-abertas sentem efeito do excesso de inaugurações. Segundo a NIQ Ebit, cerca de 45% das lojas inauguradas de um ano para cá registraram, no primeiro trimestre, vendas semanais abaixo de R$ 2 milhões, em média. Só 19% ficaram acima de R$ 4 milhões. “Não é exatamente o desempenho que se espera de uma loja nova. Quase 45% não têm desempenho ideal”, diz Rosa.
Fontes próximas ao Assaí e Atacadão dizem que, nas reaberturas, têm conseguido, em média, resultados na faixa maior (acima de R$ 4 milhões por semana).
Consultores não veem sinais de uma crise mais séria, de ordem estrutural, relacionada ao modelo em si, mas acreditam que vai ser preciso lidar com desafios no formato. “A questão é, se eu tenho uma loja nova perto de casa, e outra maior, mais distante, e mais madura, por que eu vou nessa antiga? Como as lojas maduras, tradicionais de atacado e em locais periféricos, vão sobreviver com tanta loja sendo aberta nas capitais?”, afirma Manoel Araujo, diretor da consultoria Martinez de Araujo.
Para especialistas, a base de comparação elevada, de 2022, pode ter algum efeito sobre a desaceleração em 2023, mas há outros fatores mais relevantes.
Há um recuo no preço nos alimentos que impacta a receita, mas que não tem sido suficiente para acelerar o volume vendido. Nos 12 meses até abril, o recuo na inflação atinge 4,53%, segundo IPA-M, que mede preços praticados entre produtores e empresas agrícolas, antes de chegar ao varejo. Nas redes de atacarejo, especificamente, a estimativa é que essa desinflação já esteja em 7%, em 12 meses, com queda em itens relevantes, como óleo e café.
Como não há recuperação no volume, no fim das contas, a receita nominal das empresas perde fôlego. “Há produtos caindo 10%, 12% e a gente vê fila nas lojas no fim de semana, mas não há volume que compense isso, até porque já temos sentido um ‘trade down’ de marcas também no atacarejo. As pessoas estão levando menos produtos para casa mesmo”, diz um executivo de uma grande rede.
Fonte: Valor Econômico