Marcio Milan, 69 anos, trabalhou por 44 anos no grupo Pão de Açúcar. Há dois anos, ele deixou a empresa e hoje é o superintendente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Milan é o responsável por alinhar e coordenar as políticas de um setor que movimentou R$ 358 bilhões no ano passado, em 89 mil pontos de vendas. No Brasil, 27 milhões de consumidores entram nos supermercados todos os dias. “O supermercado é a caixa registradora do agronegócio”, diz. Nos próximos 12 anos, diz ele, o setor passará por uma transformação em busca de transparência. “Todos os elos da cadeia de alimentos precisarão dar um passo pra frente e outro pra trás.” Na entrevista a seguir, Milan fala de certificação, rastreabilidade e rotulagem de produtos, etapas necessárias para que o setor de alimentos se aproxime de seu principal alvo: o consumidor que busca por um estilo de vida cada vez mais saudável.
DINHEIRO RURAL – Por que a rastreabilidade de produtos perecíveis no varejo, como são as frutas verduras e legumes, é difícil de ser implantada, como mostra a história da Instrução Normativa Conjunta nº 2 (INC 2) do Mapa, Anvisa e Abras?
MaRCIO MILAN – Os supermercados começaram a discutir esse tema em 2006. Por não ter uma legislação específica, a gente acreditava que a criação de normas poderia fazer um grande diferencial para o produtor, para mostrar as suas boas práticas, e para o consumidor interessado em produtos de qualidade. Então, depois de 12 anos temos essa instrução normativa idealizada pelo Mapa e Anvisa. E se é coincidência, ou não, estamos discutindo 2030, que é daqui a 12 anos também.
RURAL – A Abras tem o Programa de Rastreamento e Monitoramento de Alimentos, o Rama. Não é mais do mesmo?
MILAN – É bom partir do fato de que o supermercado é a caixa registradora do agronegócio. O Brasil vende 1,6 bilhão de toneladas de frutas, verduras e legumes nos supermercados, por ano. Hoje, 25% desse comércio é rastreado pelo Rama. Mas o programa, que começou a funcionar em 2008, é voluntário e colaborativo, onde todas as análises de resíduos são realizadas em laboratórios oficiais e colocadas em uma plataforma online. A certificadora Paripassu monitora as informações, recolhe produtos nos mercados e, caso haja alguma inconformidade na análises, é possível chegar ao produtor. Nesse caso, em 30 dias, é realizada outra análise em um ponto diferente de venda. O foco do programa é do mercado para o produtor. Mas o consumidor sabe o que ocorre através de um QR Code na embalagem. Basta ele aproximar o alimento de um leitor para saber quem produziu, como produziu e qual canal de distribuição foi utilizado.
RURAL – Qual o princípio que rege a INC 2?
MILAN – O programa reúne o governo com a iniciativa privada para monitorar a cadeia de frutas, verduras e legumes. Na cadeia produtiva, a INC 2 exige sempre uma posição do elo anterior. O produtor precisa mostrar como ele está produzindo. Na gôndola do supermercado, o varejo precisará mostrar para a fiscalização e os órgãos regulatórios qual a origem dos produtos.
RURAL – O que mais distancia o produtor do consumidor?
MILAN – No caso das frutas, verduras e legumes, a maior parte dos produtos sempre foi vendida a granel, em vascas. Quem é o dono do tomate, da laranja e assim por diante? Isso, aliado ao processo mais antigo que são as feiras. O consumidor não está habituado a conhecer a origem dos produtos. Indo para outro tipo, como as carnes bovina ou suína, por exemplo, elas eram vendidas sem marca e apenas nos açougues. Com a entrada do autosserviço ficou até um pouco mais difícil para o consumidor, porque ele perdeu o contato com o açougueiro, embora o processo tenha ganhado em produtividade.
RURAL – Vale também para os produtos processados e ultraprocessados?
MILAN – No caso de um produto industrializado, por exemplo biscoito, massa, feijão, óleo de soja, o consumidor consegue identificar seus atributos e diferenciais através da comunicação da empresa. É muito mais eficiente. Porque isso está na propaganda, na própria embalagem do produto industrializado. Teoricamente, nesse caso, o produtor deixou de ser relevante.
RURAL – A INC 2 atende a segurança necessária aos processos de rastreabilidade?
MILAN – A INC 2 trouxe todos para o jogo e ficou igual para todo mundo. Ela também está provocando uma discussão no setor produtivo, entre os elos da cadeia. Toda vez que se debruça sobre um tema, a discussão traz evolução. Hoje, com certeza, estamos subindo a régua. Mas há dois momentos. No atual, a instrução não exige tanta tecnologia e acho que o sistema pode ficar um pouco vulnerável. Mas, ao longo do tempo, a tecnologia vai oferecer essa segurança para o consumidor. Agora, de imediato, podemos afirmar que os processos estão muito claros. O produtor tem de usar o caderno de campo, onde deve anotar quando fez o plantio de um alimento, quais os defensivos utilizados em uma cultura, o processo de colheita, de embalamento e a expedição do produto para o elo seguinte, que pode ser um supermercado, um distribuidor ou uma Ceasa, que são as centrais de distribuição. E essa documentação deve ficar à disposição da fiscalização por seis meses, que é o tempo normal do ciclo desse tipo de cultura.
RURAL – O conjunto dos produtores está preparado para entrar nesse jogo?
MILAN – Nós sentamos com a Anvisa, o Mapa, a indústria de defensivos, o Ceagesp, que é o maior distribuidor de alimentos do País, e os produtores. Chamamos 100 produtores de folhagens, legumes e frutas, e suas associações. Foi uma grande discussão, onde todos puderam colocar as suas dificuldades, tirar dúvidas e procurar um alinhamento de como cumprir a INC 2. É um avanço histórico. O setor nunca sentou à mesa porque sempre existiu o receio do regulatório. Também passamos a listar os defensivos utilizados nos cultivos, por exemplo, para cenoura, beterraba. A pergunta era: será que um defensivo usado para cenoura pode ser usado também para beterraba? Em setembro foi criado um grupo de estudo para uniformizar a lista de quais defensivos estão sendo utilizados para determinadas cultura e aí pedir a sua extensão. Estamos trabalhando em três pilares: comunicação, educação e transparência. O supermercado tem de garantir um alimento seguro para o seu consumidor.
RURAL – Para as grandes empresas e grande produtores parece fácil, mas como ficam os pequenos e os médios?
MILAN – Pequenos, médios e grandes produtores e supermercados estão nessa mesa para acertar o passo. O que manda é o poder de negociação. Os grandes podem exigir mais, porque têm o domínio do negócio, mas também há dificuldades. Como comprar, por exemplo, 800 carretas de batata? O pequeno, no caso do supermercado, já não tem essa força, mas há outras oportunidades, como comprar quantidades menores de produtores que estão muito mais próximos. O fato
é que o processo está fazendo o seguinte: não importa ser grande ou pequeno, os dois elos terão que andar juntos para atender ao consumidor.
RURAL – Mas o pequeno produtor sempre reclamou de ser refém do varejo, sem poder de negociação.
MILAN – A saída é o fortalecimento das cooperativas. Esse é o tom do futuro. O produtor precisa estar ligado a uma associação, ou a uma entidade, e ter alguém para defendê-lo. Isso vale para o supermercado menor também. Grandes grupos, como Pão de Açúcar, Carrefour e Walmart têm estruturas para comprar diretamente do produtor, além de seus entrepostos. Já nas pequenas redes e nas médias é diferente. Hoje, o que ocorre é a junção dos menores em centrais de negócios. E as médias estão se estruturando para chegar próximo do modelo dos grandes grupos. Eles começaram, também, a ter centrais de distribuição e agora passaram a estruturar um setor específico para frutas, verduras e legumes.
RURAL – O que vai acontecer nos próximos 12 anos, até 2030?
MILAN – Haverá uma aproximação no setor. Todos os elos da cadeia terão que dar um passo à frente e outro para trás. Do consumidor, o passo para trás é saber o que está consumindo. O passo à frente é a busca por uma vida mais saudável e longeva. No comércio, o passo para trás é saber a origem do produto. O passo à frente é informar o consumidor. E para o produtor, o passo atrás é revisitar os processos de cultivo e garantir alimentos saudáveis. O passo à frente é monitorar o que o ponto de venda ou distribuidor faz com a sua produção. Outra grande mudança será no e-commerce, o comércio virtual de frutas, verduras e legumes, porque está vindo uma geração que não gosta de frequentar supermercado. Há lojas de periferia de grandes cidades que estão entrando no e-commerce e os produtos mais vendidos são os perecíveis, justamente atendendo a esse público.
RURAL – O Brasil está muito distante do que faz o grande varejo americano?
MILAN – Os Estados Unidos têm uma maneira de apresentação diferente da brasileira. Eles tratam melhor o produto. Por exemplo, nascem cenouras de tudo quanto é jeito, não há uma fôrma. Mas, com segregação, elas se tornam uniformes e isso agrega valor. Nós não temos a mesma estrutura e logística para esse processo.
RURAL – Qual a posição da Abras sobre a rotulagem de alimentos?
MILAN – Defendemos que a informação nos rótulos seja por cores. É a forma mais correta de comunicar ao consumidor, sem os extremismos dos triângulos pretos. No farol de cores a informação é clara e direta, mesmo porque a maior preocupação da sociedade está no nível de sódio, gordura e açúcar.
RURAL – Os produtos processados tendem a perder espaço?
MILAN – Há radicalismos em dizer que os produtos processados não são bons. A nova rotulagem de alimentos, que está sendo discutida no País, pode ajudar. Existe uma preocupação com a saúde e ela está aí. Mas nem tudo que é natural é saudável, porque isso também depende do processo produtivo. A preocupação deve vir da origem, do tomate que foi para dentro de uma lata, como ele foi cultivado e quais defensivos usados, por exemplo. A informação deve fluir na cadeia de alimentos e a comunicação é o único jeito de resolver isso.
Fonte: Dinheiro Rural