06/02/2015 às 05h00
Por Alberto Carlos Almeida | Para o Valor
Está longe o tempo em que somente os brasileiros da classe “A” iam à Disney. Há cinco anos, fui lá pela primeira vez na condição de pai. Agora, no início de 2015, acabo de retornar da terra do Mickey Mouse e a diferença, no que tange à presença brasileira, é imensa. É possível que os brasileiros sejam em torno da metade dos frequentadores dos parques da Disney durante o inverno americano. Digo isso baseado em uma evidência anedótica.
Há uma atração no parque Hollywood Studios da Disney chamada “Lights, Motors, Action. Extreme Stunt Show”, na qual é apresentado ao vivo e em cores como se faz para filmar uma perseguição automobilística. Há uma enorme arquibancada que comporta uma plateia bastante numerosa. Na primeira parte, o locutor apresenta um dos pilotos de automóvel afirmando que, além de ser um dos melhores dos Estados Unidos, ele é brasileiro. Então, o microfone é passado para ele, cujo nome é Ricardo Oliveira. Ele saúda em português os brasileiros e, diante de uma primeira reação morna, solicita que os brasileiros levantem a mão e gritem de maneira mais entusiasmada. Quando isso é feito, tem-se a impressão de se tratar de metade das pessoas que ocupavam a arquibancada.
Além disso, em algumas atrações, as indicações de segurança e decoro, tais como onde sentar, quando sair, o que fazer quando a iluminação for diminuída e coisas do gênero, são narradas em inglês, espanhol e português. Aliás, nossa língua é uma das mais ouvidas em todos os parques, nos shoppings e outlets, nas lojas do Walmart e Walgreens, nos restaurantes e hamburguerias (que não são poucas). Há livros de como falar português em algumas semanas nas livrarias que ainda restam da Barnes & Noble. Nas lojas de eletrônicos da Best Buy, o som ambiente é música brasileira. Em uma dessas lojas, há um grande cartaz, na saída, em que se lê: “Obrigado por comprar na Best Buy do Flórida Mall. Boas férias”.
As evidências anedóticas encontram apoio nos dados da Polícia Federal de emissão de passaportes. Em 2003, foram emitidos pouco mais de 713 mil passaportes. Dez anos mais tarde, esse número foi maior do que 2,1 milhões. Considerando a validade de cinco anos do passaporte padrão, e tomando 2003 como ponto de partida, em 2007 havia 5,131 milhões de passaportes válidos. Em 2013, já eram quase 9 milhões. Um aumento de 74%. O aumento na demanda por passaportes resultou no aumento do número de postos da Polícia Federal disponíveis para dar início a sua emissão e entrega. No passado distante, era preciso ir à sede da Polícia Federal em cada cidade. Atualmente, é a Polícia Federal que vai em busca dos cidadãos, com pontos de atendimento em shoppings e em locais de grande circulação. O acesso ao passaporte e, portanto, à viagem ao exterior, vem sendo democratizado.
Não surpreende que a Disney de 2015 tenha muito mais brasileiros do que a Disney de 2009. A massificação desse passeio significou a incorporação das pessoas de renda mais baixa. Antes, ir à Disney era uma viagem quase exclusiva das pessoas do topo da pirâmide social. Todos falavam inglês, a grande maioria fazia suas compras somente em shoppings e outlets, muitos utilizavam rádios walkie-talkie de última geração para que os familiares se comunicassem nos parques e alguns ainda levavam babás para cuidar de seus nenéns. Hoje, muitos não falam uma palavra sequer de inglês, a grande maioria faz suas compras no Walmart, são raros os que se utilizam dos radinhos walkie-talkie e desapareceram os que levam babás em viagem. Mudou o Brasil, mudou o perfil de quem vai para Orlando.
Quem se aventurar pelo Walmart vai ver brasileiros colocando no carrinho produtos de todas as seções: ferramentas, sapatos, roupas, jardinagem, artigos para piscina, itens para automóveis, artigos para decoração, papelaria, eletrodomésticos, eletrônicos. O shopping da classe “C” em Orlando é o Walmart, onde se lê: “Low price everyday”. O consumo transforma o espírito dos brasileiros e os deixa em casa. Há a crença, entre aqueles que não falam inglês, de que, se o português for falado bem lentamente, os caixas vão entendê-los. Tive a chance de ver mais de uma vez, em diferentes lojas, brasileiros utilizando essa estratégia e falando pausadamente para o caixa: “Eu vi que o preço era este. É este mesmo?”
O sotaque nordestino se tornou muito presente na Flórida. Afinal, um voo do Nordeste para aquele Estado dura aproximadamente cinco horas e o fuso horário é de somente duas horas e não três, como para quem sai de São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte. Tanto a viagem como o primeiro dia de compras ou passeio são menos cansativos. Pode ser que, em breve, a Flórida se torne o principal destino dos nordestinos nos feriadões.
Ora, o consumo no Brasil mudou de patamar e com isso Orlando, Magic Kingdom, Epcot, Animal Kingdom, Hollywood Studios, os parques da Universal, Seaworld e Bush Gardens foram invadidos por brasileiros. Se uma nova mudança de patamar da mesma magnitude ocorrer nos próximos dez anos, a Disney se tornará mais frequentada por brasileiros do que por americanos ao menos em alguns meses do ano. Não é difícil imaginar o dia em que, durante dezembro, janeiro e fevereiro, 80% dos frequentadores daqueles parques sejam brasileiros. A estratégia de marketing da Disney no Brasil, combinada com o aumento do poder de compra, terá funcionado. Afinal, o desfile da Disney já foi realizado mais de uma vez em várias cidades do Brasil. Em uma ocasião, na zona Norte de São Paulo, estima-se que um milhão de pessoas tenham comparecido ao evento.
Não é preciso ouvir as pessoas falando, para saber se são brasileiros. Caso você esteja dirigindo em uma rua pouco movimentada ou em um estacionamento do shopping, e se o pedestre a sua frente quiser atravessar a rua e parar para você passar de carro, então se trata de um brasileiro. Se fosse um americano, ele iria simplesmente atravessar e você teria que parar o automóvel. Inversamente, caso você seja um pedestre se aproximando para atravessar essa suposta rua e o carro que estiver próximo não parar para você atravessar, então muito provavelmente o motorista é um brasileiro. No Brasil, o mais forte, o carro, tem a preferência. Nos Estados Unidos, a preferência é do pedestre. As duas regras estão respectivamente introjetadas em cada nacionalidade.
Aliás, é muito interessante ver os brasileiros de volta ao seu país, derramando-se em elogios aos americanos, mas incapazes de se assemelharem a eles quando dirigem um carro no Brasil. Nosso motorista é impaciente, não dá a vez, pouco se importa com os pedestres, troca de faixa com frequência em busca daquela supostamente mais rápida, para muito próximo ao carro da frente, não para quando o sinal fica amarelo. Em tudo é o oposto daquele a quem admira.
É possível que, no futuro, os parques da Disney passem a dar mais atenção ao nosso país. No Epcot, na região do World Showcase, a área com os pavilhões dos países, com restaurantes, arquitetura típica e pontos turísticos de destaque devidamente representados, há o México, Marrocos, Noruega, Itália, Canadá, mas não há o Brasil. Aqueles que sofrem de complexo de vira-latas vão afirmar que isso faz sentido porque o Brasil não tem nada para mostrar. Será? O fato é que os brasileiros não ajudam, nós fazemos propaganda negativa de nosso país. Do ponto de vista comercial, porém, pode ser que se torne um bom negócio, um negócio ainda melhor, ter um caprichado pavilhão do Brasil no Epcot. Talvez não, talvez o que o brasileiro queira mesmo em Orlando é fugir do Brasil, é ter uma experiência inteiramente oposta àquela que ele considera experimentar em seu país.
Não é isso que indica o Camila’s Restaurant, de comida brasileira, em Orlando. De propriedade de dois sócios, um pernambucano e outro paraibano, nos últimos cinco anos ele dobrou de tamanho. Na região em que fica localizad há padaria brasileira, supermercado brasileiro, salão de beleza brasileiro. Lá se pode estacionar livremente em cima da grama: o lugar é tão cheio que se trata da única maneira de não perdermos nosso precioso tempo esperando por uma vaga. Ninguém é de ferro. Depois de alguns dias nos Estados Unidos, um simples arroz com feijão se torna precioso.
Sempre haverá quem diga que a comida nos Estados Unidos não é tão ruim assim. Ruim mesmo é comer em lugares sem toalha de mesa ou jogo americano, onde o talher é colocado diretamente sobre a madeira. A mão de obra é cara e o preço da alimentação seria ainda mais elevado se houvesse toalhas ou garçons que permanentemente lhe dão atenção. O garçom, nos Estados Unidos, vai a sua mesa quatro vezes: para levá-lo até ela, para tirar o pedido, para levar a comida e para levar a conta. De vez em quando, ele passa para perguntar, cheio de sorrisos, se está tudo bem. Como o salário é a gorjeta, quanto mais simpático ele for, maiores as chances de recebê-la.
Não há lugar melhor ou pior, há lugares diferentes. É óbvio que, se a régua for apenas a econômica, nenhum país do mundo vence os Estados Unidos, mas a régua não é somente econômica. É por isso que não somos todos imigrantes.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de “A Cabeça do Brasileiro”. alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
Valor Econômico – SP