Gargalos da etapa de produção podem representar nicho para novos negócios
Por Gabriela Cunha
Com o retorno do Brasil ao Mapa da Fome das Nações Unidas, indicador de que mais de 2,5% da população enfrentam falta crônica de comida, o percurso da doação de alimentos que não foram comercializados e que estejam dentro da validade ainda é tortuoso: apenas 37% dos estabelecimentos doam os excedentes próprios para consumo. É o que revela uma pesquisa da Ticket, marca de benefícios ao trabalhador da Edenred Brasil, a qual o Prática ESG teve acesso com exclusividade.
Em estabelecimentos como restaurantes, lanchonetes e bares, 61,5% dos locais geram sobras de comida diariamente. Ainda assim, em 31,7% a doação ocorre eventualmente e quase o mesmo percentual sequer faz isso.
“Apesar da aprovação em 2020 do Projeto de Lei que permite a doação do excedente de comida, muitos comerciantes ainda se sentem inseguros. Uma parcela afirma que a doação pode acarretar problemas para o local e alguns chegaram a questionar se é permitido doar. Isso é consequência da falta de informação e de conscientização”, comenta Felipe Gomes, diretor-geral da Ticket.
Os dados foram levantados em 175 locais em parceria com a Comida Invisível, startup social que oferece uma plataforma completa com métricas e indicadores de ESG. “Sabemos que o desperdício está fortemente ligado aos hábitos de compra, armazenamento, preparo e reaproveitamento da comida. Decidimos fazer um levantamento que nos ajudasse a assimilar quais práticas contribuem para o desperdício dentro do ecossistema da alimentação fora do lar para desenvolver ações de melhoria”, explica Jean Castro, diretor de rede de estabelecimentos da Ticket.
Segundo o levantamento, 73% consideram que um eventual incentivo fiscal a quem combate o desperdício seria muito importante para estimular a doação. Além disso, a cessão de um selo que identifique a loja como sustentável é apontado como muito importante por metade dos respondentes. “O comércio está disposto a mudar esse cenário do desperdício, mas para isso seria fundamental o investimento em iniciativas públicas que criem mecanismos que estimulem a destinação mais correta para as sobras de comida, que seria o prato de pessoas carentes e em situação de rua”, avalia Gomes.
A incipiência das doações reflete o atraso que persiste no Brasil em relação ao tratamento dos alimentos, na opinião de Cleide Moretto, economista e professora da Universidade de Passo Fundo (UPF). Gestões com uma visão unificada e ampla baseada na chamada “hierarquia de recuperação de alimentos” são determinantes para enfrentar a perda de recursos naturais escassos e horas de trabalho empregados na produção. “O conceito amplo de desenvolvimento sustentável chega para o mercado através do ESG. O desafio agora é superar o modismo e envolver o ambiente e o social conectado ao setor produtivo para uma mudança completa de comportamento. Para que as pessoas possam olhar para o cotidiano e questionar suas escolhas”, pondera.
Na Olga Ri, foodtech que entrega saladas, bowls e sopas e que recentemente levantou R$ 30 milhões em rodada de investimentos liderada pela Kaszek, doações são feitas desde o início da operação, em 2016. Mas nem sempre o processo foi fácil.
“É algo que demanda da operação interna e que depende de parceiros que tenham alguma estrutura de logística. Isso faz a diferença, especialmente para pequenos negócios ou se o volume é pequeno. Hoje fazemos doações diárias para ONG’s por meio da parceria com a Infineat [serviço de gestão que coordena o processo de doação de alimentos de ponta a ponta], que se responsabiliza pela retirada”, explica Cristina Sindicic, diretor de marketing (CMO) e co-fundadora da Olga Ri. Em 2021, 2,9 toneladas foram destinadas para quem precisa.
Gargalos na etapa de preparo podem estimular novos negócios
Lidar com insumos entregues em grande quantidade pelo fornecedor, o pré-preparo, e o armazenamento de forma incorreta estão entre os desafios citados. Os gargalos da produção podem representar um nicho para novos negócios, na leitura de Jean Castro, da Ticket. “Esses dados revelam grandes oportunidades para startups de tecnologia, por exemplo. Contar com ferramentas que auxiliem na administração de datas e cálculos de quantidades, com a geração de gráficos e relatórios em tempo real, pode ser bastante estratégico para os estabelecimentos”.
Na Olga Ri, o recebimento diário de insumos e a produção sob demanda – algo que nem sempre os restaurantes conseguem fazer -, tem sido eficaz na gestão das cinco cozinhas em São Paulo. A isso, somam-se outras estratégias. Há cerca de dois anos, o uso integral dos alimentos foi adotado, o que levou a startup a comercializar sopas feitas com talos e folhas. O eventual excedente ainda serve como caldo de legumes. Os resíduos finais orgânicos geram adubos, os rejeitos são destinados para geração de energia e o plástico vai para cadeia de reciclagem. A empresa que tem 30 mil clientes cadastrados garante que nada vai para aterros sanitários.
“Olhamos para a cadeia do começo ao fim. Tem um desafio grande dentro do tema, mas tudo deve ser feito genuinamente. Os jovens estão muito conectados às pautas ambientais e se isso não for genuíno, o cliente percebe”, avalia Cristina.2 de 3 Beatriz Samara e Bruno e Cristina Sindicic fundadores da Olga Ri — Foto: Divulgação
Beatriz Samara e Bruno e Cristina Sindicic fundadores da Olga Ri — Foto: Divulgação
Segundo a Ticket, quando os produtos chegam nas gôndolas ou nos buffets, 18% dos estabelecimentos percebem que a produção foi em excesso e quase 8% dos itens são retirados dos balcões por perda do prazo de validade. De olho nas dores dos empresários, a Food to Save replicou no Brasil um modelo de negócio europeu.
Um site e aplicativo próprios conectam estabelecimentos com produção excedente e clientes interessados em bons produtos com até 70% de desconto. Com as Sacolas Surpresas, em que o consumidor escolhe o sabor (doce, salgado ou misto), mas não os itens, já que isso depende da disponibilidade da loja, quase 500 toneladas de comida aptas para o consumo tiveram uma segunda chance desde 2021.
“O varejo, de maneira geral, se acostumou a encher as gôndolas e a ofertar alimentos de estética perfeita. As perdas sempre foram embutidas no preço final. Para quebrar essa barreira, apostamos no ciclo de ganha-ganha empresa, cliente e meio ambiente”, comenta Lucas Infante, CEO da Food to Save.
Com a proposta de um novo canal de vendas e o fluxo adicional de clientes, as lojas já tiveram lucro incremental de R$ 3 milhões, segundo Infante. Mais de 900 estabelecimentos em 16 cidades já aderiram ao serviço, como as redes Rei do Mate, Dengo Chocolates, e Starbucks.
“Estamos chegando a casas de bairros nobres e regiões periféricas. Nos últimos três meses crescemos mais de 35% no número de parceiros. Somos um movimento contra o desperdício e o ESG vai embutido na sacola para um público que está aprendendo sobre isso. Mas cada vez mais as empresas precisam pensar por que ainda estão de fora disso”, observa o executivo da startup de impacto, que se insere na chamada “Food Waste Economy”, em inglês ou Economia do Desperdício de Alimentos.
Para Cleide Moretto, há a necessidade de escopo legal consistente que preveja também a utilização destes produtos de outras formas. “Precisamos de normativas técnicas que atendam questões éticas e de segurança alimentar sobre esses alimentos para que também possam ser comercializados, ainda que não pelo preço cheio. As empresas e prestadores de serviço podem ter uma nova fonte de renda e novos negócios podem surgir atrelados a esse alimento. Essa é uma discussão nos países desenvolvidos feita há 30 anos”, observa.
Fonte: Valor Econômico