Por Adriana Mattos | O Brasil parece caminhar para uma “desglobalização” no comércio varejista físico, com anúncios repentinos de encerramento de lojas e saída de operações internacionais no Brasil. Já no varejo on-line, o caminho tem sido o oposto, após a intensificação da concorrência das plataformas digitais estrangeiras após 2020, inclusive com planos de entradas de novos grupos internacionais.
Na operação de lojas físicas, o país tem assistido a um fechamento maior de negócios do que a entrada de novas marcas nos últimos anos, especialmente no comércio alimentar. E a perspectiva, confirmada ontem, de que a rede espanhola de supermercados Dia busca soluções para sua operação local, deve aumentar a lista de empresas estrangeiras que desistiram de permanecer por aqui.
Desde o fim de 2023, como antecipou o Valor, a Lazard busca interessados no Dia, mas as negociações avançam lentamente, dizem duas fontes. A varejista mantém o plano de saída para este ano. O Dia tem 590 lojas no Brasil e fechou 18 pontos no ano passado. Uma fonte a par do tema disse que a dificuldade da negociação está na operação de franquia. “Cerca de 30% das lojas são franquias, e ninguém aqui sabe operar isso bem no Brasil.”
Ontem, ao comentar sobre decisões estratégicas para o portfólio, tema de um slide de apresentação ao mercado, o CEO global do Dia, Martín Tolcachir, disse que há um processo de “reposicionamento do core” do grupo de fechar operações em andamento. O Brasil é um país citado na apresentação, assim como Portugal. Procurada, a empresa preferiu não se manifestar.
“Nossas operações no Brasil sofreram com uma deterioração nos resultados financeiros, afetados pelo contexto de mercado altamente competitivo, o que levou a iniciativas promocionais”, afirma a companhia, em outro momento, em seu material.
A venda do Dia no país caiu 12% em 2023 (em lojas em operação há mais de um ano) e o prejuízo dobrou, e a rede tem fluxo de caixa negativo, e vem sentindo a concorrência com os atacarejos.
De forma simultânea a esse movimento, o país assiste a uma aceleração nunca antes vista da entrada de grandes plataformas de comércio eletrônico globais, especialmente os marketplaces asiáticos. Desde 2019, Shopee, de Cingapura, e Shein, da China, entraram no país – AliExpress e Wish já operavam por aqui – e este é um cenário que tende a se fortalecer.
O Valor apurou que os chineses da Temu, rival da AliExpress e Shein, aguardam maior clareza sobre as regras de importação dos marketplaces no país para avançar no plano de entrada no Brasil.
Desde agosto, é válido o imposto de importação zero para empresas listadas no programa Remessa Conforme, mas uma alíquota pode ser criada, como o governo já acenou. A ideia da Temu era anunciar a chegada em 2023, mas o projeto continua de pé, diz uma fonte.
Procurada, a empresa informa que, no momento, “não tem nada a dividir sobre esse assunto”.
Ao considerar os dois setores, enquanto o varejo físico é altamente gerador do primeiro emprego – sendo a porta de entrada no mercado de trabalho de muitos -, o digital, com uso intensivo de tecnologia e mão de obra especializada, tem vagas não preenchidas pela falta de profissionais.
“Há certos varejos, especialmente o alimentar, que não são globais. É uma frase que ouvi de um ex-CEO da Unilever, e ele tem toda a razão”, diz Eduardo Terra, diretor da BTR Educação e Consultoria. “Pode olhar pelo mundo, os grandes grupos têm saído não só de Brasil, mas de mercados da América Latina e de parte da Europa, na tentativa de se reestruturarem localmente, após desafios nas últimas crises”.
Para ele, isso se repete no varejo da construção e das farmácias – segmentos em que varejistas internacionais nunca entraram ou tiveram dificuldades no país.
A americana CVS vendeu a Onofre para a RaiaDrogasil e deixou o país em 2019. A sua rival Walgreens estudou o país entre os anos 2012 e 2014, mas após a experiência da CVS, nunca mais se ouviu falar dela por aqui. “Nos segmentos de varejo mais especializados, como moda, você vê outra coisa, com a invasão dos lojistas de roupas pelos marketplaces”, diz ele.
O consultor cita a entrada dos suecos da H&M, que já confirmaram a vinda em 2025 com abertura de lojas. Mas mesmo em moda, houve experiências recentes negativas no varejo físico, como a saída da californiana Forever 21 do país, em 2022.
Na visão de Marcos Gouvêa, da consultoria Gouvêa Ecosystem, há uma “desglobalização” do Brasil no varejo físico, principalmente em supermercados, mas concorda que isso é um fenômeno em outros países, como Chile e México. Reforça, porém, que no Brasil, a questão central é que há fatores adicionais de peso para a saída das redes.
“Os varejistas carregam passivos trabalhistas imensos no país, temos um complexo sistema tributário, com regras estaduais insanas, que melhorarão com a reforma aprovada, mas só em alguns anos. E a logística no Brasil não é para qualquer um”, diz ele.
“Para você ter uma ideia, numa rede que foi embora do Brasil, 90% dos processos trabalhistas dela no mundo estavam no Brasil”.
De cinco anos e meio para cá, além dos espanhóis da rede Dia, os americanos do Walmart e os franceses do Casino desistiram ou estão sendo obrigados a parar de operar no Brasil.
Em relação ao Casino, o alto endividamento na França obrigou o controlador a rever seu investimento com o GPA – ele já vendeu sua posição no Assaí em 2023 e deve iniciar sua saída do grupo neste ano. Haverá uma oferta de ações da rede no país e o Casino não deve acompanhar – e isso deve ser o início de sua saída, após 25 anos no país. Nesta semana, o grupo francês ainda informou que teve que fazer uma baixa contábil de € 1,85 bilhão relativo ao GPA, após uma revisão no valor recuperável do investimento no ativo brasileiro.
No Walmart, os resultados abaixo do esperado e a complexidade tributária (que tira a eficiência da operação) fizeram os americanos abrirem mão do mercado. A empresa vendeu o controle de seu negócio para a gestora Advent em 2018.
“Mesmo se você olhar hoje o líder de mercado, que é o francês Carrefour, o maior negócio deles aqui é o Atacadão, uma rede brasileira”, diz José Barral, membro de conselhos de varejo e ex-CEO do Sonda. Para ele, o comércio brasileiro é muito pulverizado e regionalizado, “com características, hábitos e preferências que os grandes grupos demoram a entender, mesmo hoje em dia, e por isso cometem mais erros na gestão.
“Obviamente que os grupos evoluem, aprendem e isso ocorreu, mas aqui há uma forte concorrência de redes como Muffato, Mateus, Grupo Pereira. É muita gente regional fazendo um bom trabalho. Basta ver como os chilenos do Cencosud [dono do Giga Atacado e Prezunic] demoraram a se acertar no país”.
Entre tantas saídas, a entrada de maior peso recente no varejo alimentar foi da mexicana Oxxo, em 2021, hoje com mais de 350 pequenas lojas de vizinhança.
Não dá para ignorar que esses desinvestimentos tornam o varejo brasileiro menos conectado com o resto do mundo. A entrada de novas cadeias internacionais, a troca de informações com grupos globais – além do óbvio aumento de concorrência – ajuda a oxigenar esse setor, diz Gouvêa. Mas o consultor lembra que há uma intensa troca hoje, com fornecedores mundiais, como Unilever, Nestlé e P&G, que também são agentes de inovação do setor.
Fonte: Valor Econômico