Por Ivan Ryngelblum | Quando assumiu o cargo de CEO do Grupo Casas Bahia (na época, a empresa ainda se chamava Via), no começo de maio, Renato Franklin estava um pouco preocupado. Desde 2022, a companhia derrapava em meio a um cenário mais difícil para o varejo, marcado por juros altos e desaceleração da economia, após a bonança vista durante a pandemia.
A situação do segmento foi agravada pela questão da fraude contábil da Americanas, além do novo cenário competitivo, com a chegada de pesos-pesados internacionais (Mercado Livre e Amazon já estavam por aqui e Shein e Shopee ganharam terreno). Ainda por cima, contava com a desconfiança dos investidores, depois de uma série de reestruturações e de falta de clareza sobre qual seria futuro da Casa Bahia.
Para enfrentar a situação, Franklin colocou em prática mais um plano de reestruturação. Em vez de seguir na tese conhecida como “the winner takes all” (o vencedor fica com tudo), o novo CEO apostou no back to basics, com uma estrutura mais enxuta e com foco naquilo que a companhia fazer melhor: vender linha branca.
O processo ainda está no começo, mas Franklin diz que a preocupação inicial que tinha acabou se transformando em empolgação diante dos primeiros resultados. “O cenário tem nos ajudado a transformar mais rápido os resultados e ficar muito mais confiantes com o que a gente tem que entregar ao longo de 2024”, diz Franklin, ao NeoFeed.
O processo ainda está no começo. E é bastante duro, pois envolve cortes profundos em gastos, com demissão de mais de 20% do quadro de funcionários, cerca de 6 mil pessoas, e fechamento de lojas, além da limpeza de estoque de produtos que não fazem mais parte dos planos.
Todo este ajuste fez com que a Casas Bahia registrasse no terceiro trimestre um dos piores resultados de sua história – prejuízo de R$ 836 milhões, aumento de quatro vezes em relação ao mesmo período do ano passado, o que resultou em uma queda de mais de 12% das ações em 9 de novembro, dia seguinte à divulgação do balanço.
Ainda será necessário realizar ajustes em 2024, mas Franklin diz que boa parte da dor ficou para trás e que já será possível começar a ver os primeiros resultados. “Quando a gente olha para a situação de caixa da companhia, a dinâmica que vem pela frente, ela está dentro do plano, com algumas iniciativas capturando benefícios mais rápido do que era planejado”, afirma.
A expectativa é de que a companhia saia mais enxuta, rentável e atuando nos segmentos em que conhece. Não apenas em linha branca, como também no lado financeiro, com o avanço do Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) anunciado em novembro para reforçar o crediário e deixar de depender dos bancos através dos chamados CDCI, linha que foi prejudicada pelos problemas que atingiram o varejo em 2023.
Resta saber se o mercado vai comprar essa nova reestruturação. A companhia testou os investidores em 2023 com notícias negativas, que foram desde a possibilidade de exercício de covenants de Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI), até o follow on de R$ 620 milhões, abaixo dos R$ 1 bilhão pretendidos. Com isto, as ações acumulam queda de 83% no ano, com valor de mercado abaixo de R$ 1 bilhão.
Sobre isso, Franklin confia em seu plano e em como ele vai retomar a confiança do mercado. “Como o plano é mostrar os números mais para o fim de 2024, a percepção do mercado só deve começar a mudar lá no fim de 2024”, diz Franklin.
Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Você chegou em maio e encontrou uma empresa que já vinha de um processo de reestruturação. Qual a companhia que você encontrou?
Ela vinha de uma reestruturação, mas completamente diferente. Em 2019, a empresa estava há cerca de três anos à venda [pelo Casino] e tinha o desafio de se recuperar no varejo tradicional. A gestão que assumiu teve o desafio de recuperar o varejo. Junto com isso, menos de um ano depois, veio a pandemia. Estava dentro da reestruturação a construção do digital, só que a pandemia trouxe uma necessidade ainda maior para avançar o digital.
O que do período pôde ser aproveitado?
Hoje mais de 50% das vendas são em canais online, foi construído um ecossistema omnicanal de verdade. Teve uma evolução muito grande na logística, que atrasou um pouco com a pandemia, mas está sendo colhida em 2023. A gente só deu continuidade. Hoje, a Casas Bahia entrega quase 50% das vendas em até 24 horas. É uma evolução grande e a antiga gestão estava investindo em outros negócios adjacentes, dentro da proposta de the winner takes all que tomou conta do mercado.
Por que então partir para uma nova reestruturação?
O cenário macro mudou desde 2021. Juros altos, economia mais desafiadora, demanda mais reprimida. Isso trouxe impactos para toda a indústria e o efeito Americanas restringiu ainda mais o crédito dos bancos. Isso deixou a estrutura de capital da companhia um pouco mais frágil. E aí veio a necessidade de fazer uma transformação também do ponto de vista financeiro.
Quais os objetivos para esta nova reestruturação?
Queremos deixar um legado de disciplina de alocação de capital, métricas de retorno, métricas financeiras. O fato de estarmos fazendo essa transformação em um momento em que o mercado não cresce, facilita o trabalho. Se estivesse crescendo, teríamos que colocar mais peso e mais foco no crescimento e aí você acaba deixando de lado algumas oportunidades de eficiência operacional. E o nível de oportunidade que ainda existe no varejo é muito alto.
Como você vê o ritmo de evolução da companhia?
O cenário tem nos ajudado a transformar mais rápido os resultados e ficar principalmente muito mais confiantes com o que a gente tem de entregar ao longo de 2024. O terceiro trimestre foi o período em que executamos iniciativas que consomem caixa, como desligamento de funcionários, fechamento de lojas, saldão de produtos pouco rentáveis. Tudo isso custou para o caixa da companhia, mas a gente conseguiu, usando entre outras alavancas o follow on, terminar com caixa estável. A gente deve ver um primeiro trimestre melhor, porque começamos a capturar boa parte das melhorias.
“Terminamos 2023 melhor do que eu achava, o que nos dá mais força para passar 2024 com um pouco mais de tranquilidade”
O que mais estão fazendo para reduzir as despesas?
Tivemos uma redução grande dos investimentos em marketing, concentrando nos produtos core. Melhoramos o investimento de marketing sobre receita em 30%, quase R$ 200 milhões por ano de economia. Enxugamos bastante os investimentos, passando de R$ 1 bilhão para quase R$ 400 milhões. Conseguimos economizar R$ 370 milhões por ano com pessoal. Tem a parte de logística, que apresenta bastante capacidade ociosa e que estamos reduzindo. Aqui tem mais R$ 100 milhões. Quando você vai somando, as despesas baixam alguns pontos percentuais, ajudando na margem Ebitda, que também melhora porque paramos de vender produtos que também eram negativos.
Quando o mercado deve começar a ver melhorias?
Devemos ver um primeiro trimestre melhor, porque a começamos a capturar boa parte dessas melhorias. Quando olhamos para a situação de caixa da companhia, a dinâmica que vem pela frente está dentro do plano, com algumas iniciativas capturando benefícios mais rápido do que era planejado. Terminamos 2023 melhor do que eu achava, o que nos dá mais força para passar 2024 com um pouco mais de tranquilidade, mas com muita coisa para executar para chegar no fluxo positivo.
E quando você entende que o fluxo de caixa começa a ficar positivo?
No fim de 2024.
Como se sustentar até lá?
O caixa é saudável e as alavancas de monetização são importantes. A redução de R$ 1,5 bilhão no estoque vai se refletir na redução da conta de fornecedores. Temos venda de alguns imóveis próprios, em processos de sale and leaseback, que esperamos concluir no curto prazo. Outra frente que continua andando bem é a monetização de créditos fiscais, de R$ 100 milhões por mês. Os gastos com a reestruturação, redução de custo pessoal, pagamos no começo e a partir do próximo mês já é um saving. Quando olhamos para 2024, a queima de caixa é muito menor que em 2023.
A expectativa é seguir por 2024 sem necessariamente acessar o mercado de capitais?
Estamos em posição de passar 2024 sem acessar o mercado de capitais, trazendo dinheiro de dentro da companhia, melhorando a eficiência operacional.
O tema da caixa acaba puxando o ponto do endividamento. O Grupo tem 50% da dívida vencendo até o final do terceiro trimestre de 2024. Com o fluxo de caixa ainda negativo, como fazer frente a essas obrigações?
Temos R$ 2,8 bilhões em caixa e R$ 1,8 bilhão em dívida vencendo no ano que vem. Temos caixa para pagar, mas não consideramos que vamos pagar todas as obrigações, porque grande parte dessas dívidas está concentrada em bancos, que têm nos apoiado. Temos hoje feedbacks muito positivos dos bancos, que nos dão um grau de confiança razoável que vamos renovar essas dívidas e seguir com tranquilidade, sem ter nenhum imprevisto.
Quanto da dívida de curto prazo está nas mãos dos bancos?
Dos R$ 1,8 bilhão, cerca de R$ 1,1 bilhão está nas mãos de dois bancos e R$ 700 milhões com o mercado. Para estes R$ 700 milhões, a gente considera pagar e pode sim captar dinheiro com os bancos, mas o fluxo de caixa considera o pagamento das dívidas com o mercado de forma normal.
Vocês passaram recentemente por uma situação de ter que renegociar covenants de CRIs, gerando um aumento no custo da dívida da empresa…
Isso gerou muito mais uma preocupação no mercado, do que vai acontecer com a companhia, do que sobre o custo de fato desse episódio, porque ele não foi tão material. Mas a percepção, no momento em que o mercado está mais desafiador e todo mundo mais preocupado, trazem preocupação quando surge um negócio desses. Mas passamos por este procedimento de uma forma bastante razoável e sem impacto maior para a companhia.
Percepção é uma palavra importante, porque a percepção do mercado em relação ao Grupo ainda é muito negativa. Dada esta nova reestruturação, como trazer os investidores para o lado da companhia, fazê-los acreditar que desta vez vai?
A companhia já passou por várias transformações e o mercado, em geral, é cético com planos de transformação. Por isso, procuramos fazer um plano bem back to basics, para ter menos risco de execução e bem rápido. Quando a gente fala de dois anos, é um plano de curto prazo. Dos feedbacks que temos recebido, praticamente todo mundo concorda com o que estamos fazendo. Mas o pessoal do mercado de capitais quer ver o efeito do plano nos números. Como o plano é mostrar os números mais para o fim de 2024, a percepção do mercado só deve começar a mudar lá no fim de 2024.
O resultado do terceiro trimestre gerou uma reação bastante negativa do mercado…
Se você olhar o fluxo de caixa da companhia, a gente mostrou o tanto que foi importante essas alavancas que conseguimos, todas essas eficiências que estamos trazendo. Conseguimos entregar a manutenção de caixa. É que muitas vezes chama atenção quando se olha para a DRE [demonstrações de resultados do exercício], olhar o lucro contábil, todos os write offs que tiveram, o efeito do saldão na margem. Coisas que afetam o balanço, mas não o fluxo de caixa.
Quando esperam voltar a ter lucro?
Por sermos uma companhia de capital aberto, não posso comentar sobre isso.
É possível passar por essa transformação sem ter que recorrer a uma recuperação judicial?
Com certeza absoluta. Recuperação judicial, para mim, não tem nenhum sentido. É um instrumento que vem para facilitar as negociações com vários stakeholders, mas nós temos uma dívida concentrada com dois bancos, que respondem por 90% do total. O resto é muito pequeno e a gente consegue pagar. E numa empresa B2C, uma recuperação judicial é muito danosa, é perda de credibilidade, seu negócio acaba. Essa ferramenta não tem nenhuma aderência à situação e ao nosso modelo de negócios e à estrutura de capital da Casas Bahia. É muita falta de profundidade quando as pessoas criam esse ruído.
“Como o plano é mostrar os números mais para o fim de 2024, a percepção do mercado só começa a mudar lá no fim de 2024”
Na Black Friday, notícias apontaram que novos nomes no e-commerce estão entrando com força em eletrodomésticos e eletrônicos, segmentos que a Casas Bahia considera core. Como competir neste cenário, considerando o tamanho que essas companhias ganharam nos últimos anos no Brasil?
Se olhar o tíquete médio deles e olhar os números de mercado, de market share, no core, eles não estão entrando em grande volume nas nossas categorias. No caso da Black Friday, muita gente aguarda pelo consumo de itens mais caros como esses. É claro que essas empresas representam uma ameaça estratégica no médio e longo prazo, mas elas tendem a focar mais em produtos mais baratos, onde a penetração do e-commerce no Brasil ainda é baixa. Elas devem fazer investimentos pontuais para testar a categoria, mas ainda vai ser mais atrativo para eles estar em outras categorias. Acreditamos que vamos conseguir nos proteger como líder nas categorias core.
Por que você acredita nisso? O que sustenta essa aposta no core?
Se você pegar mercados com marketplaces mais avançados há mais tempo e que tem players especialistas, em todos eles os especializados se mantiveram competitivos e líder das categorias. A Best Buy, um player especialista relevante nos Estados Unidos, tem um share menor que o nosso nas categorias que são core para eles e para nós, não penetra no público de baixa renda igual nós, não tem um crediário igual ao nosso. E nós ainda temos uma linha de móveis, que é muito relevante para a companhia. Somos mais fortes no relativo no Brasil para entregar algo parecido com o que ocorre lá fora.
Ainda na questão de concentração em produtos core, as linhas escolhidas são muito sensíveis a juros e ao estado da economia, tendo sofrido nas vendas neste ano. Não é um problema em médio e longo prazo se concentrar nisso, considerando a volatilidade da economia brasileira?
Por isso é tão importante reforçar a cultura de eficiência na companhia. Historicamente, o varejo cresce e incha nos ciclos de juros mais baixos e em que a demanda é maior. E nos ciclos de demanda mais reprimida e juros mais alto, ele acaba tendo que encolher e você fica nessa sanfona. O que a gente pretende neste plano de transformação é criar uma cultura de austeridade, de simplicidade, onde a gente mantenha uma companhia enxuta, sempre gerando caixa e retorno positivo, com as mudanças acontecendo na taxa de crescimento do que na rentabilidade.
Na frente financeira, a companhia está investindo em FIDC para reduzir a necessidade de buscar recursos com os bancos para oferecer seu crediário. Como esta iniciativa está andando? Pretendem lançar outros?
Ainda tem testes operacionais das lojas, o desafio foi implantar correspondente bancário em todas as lojas, mudar todo o procedimento de emissão, para permitir todos os critérios de fungibilidade, ou seja, o dinheiro que entra de um crediário feito pelo FIDC cai direto na conta do FIDC e não da companhia. Por conta da Black Friday e do Natal, a gente não coloca novas coisas, porque pode dar problema e prejudicar as vendas. Ao longo do primeiro trimestre, vamos encher o FIDC e depois avaliar se vale a pena investir mais num mesmo FIDC. A ideia é migrar todo o CDCI aos FIDCs aos poucos.
Neste ritmo, quando vocês acham que terminam a transição?
Quando começarmos a fazer 100% no FIDC, que vai dar mais ou menos R$ 400 milhões, isso vai demorar até 14 meses, que é o prazo médio do nosso crediário, para migrar todo o CDCI ao FIDC. Para migrar tudo, isso deve ir até meados de 2025.
Além de cortes de gastos para ajudar nas margens, vocês pensam também em buscar novas avenidas de crescimento?
Temos outras alavancas para gerar valor. Um exemplo é serviços. A gente deixou claro lá que podia trazer mais R$ 250 milhões de serviço. É basicamente garantia estendida, seguro de furto e roubo e instalação. Tem outros, temos um portfólio grande, de mais de dez serviços, como suporte ao usuário de tecnologia. Algo mais para 2025, mas que começa em 2024, é a monetização do nosso ecossistema, tanto offline como online. Nas lojas físicas, a indústria pagando para dar visibilidade aos seus produtos e no online começamos a trabalhar com mídia patrocinada.
No caso dos sellers do marketplace, para quem vocês transferiram uma série de produtos, a empresa está pensando em algum serviço?
Hoje, já há serviços logísticos e crédito para o cliente comprar o produto. E essa estratégia de crédito para o seller deverá vir também. Existem alavancas no lado financeiro, mas elas devem vir mais para o fim do ano, porque dependem de uma estrutura de capital mais forte. Uma demanda muito grande é por antecipação de recebíveis. Nosso prazo de pagamento padrão é de 90 dias, algumas categorias 120 dias, e a taxa de desconto é muito acima do nosso custo de capital. Faz sentido utilizar o dinheiro disponível, em vez de fazer uma aplicação, usar para antecipar esses recebíveis.
Quais os planos para 2024?
O próximo ano está se confirmando um ano mais parecido com que a gente apostou, um mercado ainda ficará comprimido do ponto de vista de demanda. Nos preparamos para isso, o que permite que a gente tenha a companhia adequada a este momento e focada no plano de transformação. Continuamos focados na execução das alavancas, porque muita coisa foi feita, mas tem muito mais a se fazer. A gente apresentou um plano de obter entre R$ 1,5 bilhão e R$ 1,6 bilhão em melhoria no lucro antes de impostos e no caixa e parte da execução também acontece no primeiro e segundo trimestre de 2024.
Quando esperam retomar a abertura de lojas?
Nessa primeira fase do plano de transformação, não vemos a abertura de novas lojas. Vemos somente o fechamento de algumas lojas que já tínhamos colocado, 38 já fechadas, das cerca de 100 que planejamos, com mais algumas que podem ser fechadas no primeiro trimestre, dependendo se ficarem rentáveis. Temos até um mapeamento de quase 200 cidades onde deveria existir uma loja Casas Bahia, mas isso é uma agenda lá para 2025 em diante, depois que o fluxo de caixa estiver positivo.
Fonte: Neofeed