Às 8h da manhã da quarta-feira 14, um grupo composto por cerca de 70 pessoas se reuniu em frente à bolsa de valores de Nova York (Nyse), que estava com a sua fachada parcialmente coberta por uma gigantesca bandeira lilás com a logomarca da Netshoes. O entourage, composto majoritariamente por brasileiros, posou para uma foto em conjunto e, depois, entrou no centenário prédio no número 11 da Wall Street. Bem-humorados, alguns deles faziam piadas sobre o terno e a gravata do paulistano de origem armênia Marcio Kumruian, cofundador e CEO da Netshoes, que geralmente só veste roupas esportivas, como tênis e camisas de times de futebol.
O estilo contrasta com a posição de um executivo que comanda a maior loja de comércio eletrônico de vestuário esportivo da América Latina, com receita de R$ 1,74 bilhão em 2016. Descendo pelo elevador, para a sala onde aconteceria a cerimônia de abertura de capital, uma mulher diz: “acho que só vi ele vestido assim duas vezes na vida.” Um homem pergunta: “quando casou?” Ela responde: “as duas vezes foram hoje.” A brincadeira prossegue, durante a cerimônia, até no discurso do presidente da NYSE, Thomas Farley. “Conheci Kumruian há dois anos, mas ele não se vestia assim. Estava com um tênis descolado”, diz. “Mas, logo, percebi que, além de um empreendedor, ele sabia como as finanças funcionam.”
Farley comemorava uma breve e curiosa coincidência: em dois dias seguidos, Azul e Netshoes, duas empresas brasileiras, iniciavam as negociações de suas ações na bolsa de Nova York. A Azul, no entanto, está cotada em São Paulo e nos EUA. Assim, a Netshoes se tornava a primeira empresa brasileira com ações vendidas exclusivamente no mais poderoso mercado de capitais do mundo. Ou seja, a ocasião mais do que justificava a escolha de um figurino tradicional por parte de Kumruian. “Agora, a Netshoes entra numa nova fase”, diz o empresário antes de agradecer a presença dos representantes dos bancos e advogados que ajudaram no processo de IPO, e, então, o apoio da família. Quando diz a palavra “família”, a sua voz falha, e, emocionado, encerra o discurso.
A emoção é fácil de entender, já que a empresa, fundada em 2000, teve uma trajetória de desafios. Kumruian passou sete anos sofrendo com a concorrência de redes maiores até que percebeu que as vendas pela internet prometiam um futuro melhor e resolveu fechar todas as suas lojas físicas. “Quando abri com o meu primo (Hagop Chabab), uma loja de sapatos de 50 metros quadrados, não podia imaginar um IPO em Nova York”, diz Kumruian à DINHEIRO. “Mas, quando apareceu o primeiro investidor americano, o Tiger, em 2009, isso começou a ser um objetivo. E eu sou um cara de metas. Se tiver uma marca, eu chego nela. Simplifico e vou.”
A Netshoes vinha, desde 2013, perseguindo abertamente a um IPO. Mas as condições de mercado não ajudaram nem no Brasil, nem nos EUA. O momento, enfim, chegou. O IPO levantou US$ 148,5 milhões, o que avaliou a empresa em US$ 560 milhões. Apesar da abertura de capital encerrar um ciclo longo da história de ascensão da sua companhia, Kumruian sabe que os desafios estão longe do fim. Nesse novo momento, o empresário vai conviver com uma cobrança maior por parte dos novos acionistas que deve ter. Um indicativo foi dado já no primeiro dia de negociações de suas ações. Cotados com a sigla Nets, os papéis da empresa foram precificados em US$ 18, e fecharam o primeiro dia com queda de 10,5% para US$ 16,10.
É um indício de preocupação com o desempenho da empresa. Em 17 anos de operação, a companhia ainda não atingiu a sonhada cor azul no pé do balanço. No ano passado, o prejuízo foi de R$ 152 milhões. No mundo do comércio eletrônico, no entanto, é comum as empresas abdicarem de perseguir o lucro imediato, de olho num futuro promissor. A americana Amazon, referência mundial em comércio eletrônico, não dá lucro. Em grande parte, por decisão do seu fundador, Jeff Bezos, que prefere reinvestir fortemente, em busca de mais dominação dos mercados em que atua. A estratégia tem sido bem vista pelo mercado.
A Amazon atingiu um valor de mercado de US$ 430 bilhões, quase o dobro da varejista tradicional Walmart. Neste ano, a empresa, que se originou na venda de livros, também projeta ultrapassar a Macy’s como a maior varejista de roupas dos EUA. Mas a Netshoes não tem uma posição tão confortável. E pode sofrer com comparações desfavoráveis. A também brasileira Dafiti, fundada apenas em 2010 e especializada no comércio eletrônico de artigos de moda, parece mais próxima da lucratividade. “No quarto trimestre de 2016, o nosso Ebitda ficou próximo do positivo”, diz o CEO e cofundador, Philipp Povel. “Não é uma obrigação, mas, neste ano, devemos chegar ao positivo.”
O mercado brasileiro ainda traz algumas peculiaridades que dificultam a rentabilidade para os comércios eletrônicos. “Esse setor é muito competitivo. O consumidor é infiel, porque o concorrente pode ter o mesmo artigo por menor preço a apenas um clique de distância”, diz Paulo Ferezin, sócio especializado em varejo da KPMG. “E, além dos investimentos necessários para o controle de fraudes e da insatisfação do cliente, as empresas, no Brasil, gastam muito com logística, devido às dimensões continentais do país.” Como se não bastasse, a crise econômica fez o ritmo de crescimento do e-commerce cair para menos de 10%.
Mas, se a crise pode ter atrasado um pouco mais a chegada ao lucro por parte da Netshoes, não parece ser nada que assuste os fundos de investimentos que apoiam a empresa. “As nossas operações brasileiras já atuam com Ebitda positivo, e os investidores estão satisfeitos”, diz Kumruian. “Tanto que nenhum deles aproveitou o IPO para sair do negócio.” Para negociar cerca de 27% das ações, todos os principais acionistas – Kumruian, o cofundador e primo, Hagop Chabab, e os fundos Tiger, Archy, Clemenceau e Riverwood – aceitaram uma diluição de suas participações. Mas, com esse processo, algumas mudanças no conselho de administração aconteceram.
Kumruian e o representante do Riverwood permanecem em seus assentos. Mas Chabab, que já havia deixado as funções executivas da empresa em 2011, deixa o comitê. Assim como dois representantes do fundo. Suas posições serão ocupadas por dois conselheiros independentes, Frederico Brito e Abreu, CFO da Kroton Educacional, e Ricardo Knoepfelmacher, que ficou reconhecido nos últimos anos principalmente por seu trabalho na recuperação de empresas. “A Netshoes é uma companhia muito interessante, que oferece uma experiência de compra muito especial ao consumidor e que atua num setor de imenso potencial”, diz Knoepfelmacher. “Ela vai ser a Amazon brasileira.”
Para cumprir o seu potencial, a Netshoes tem um destino certo para os quase US$ 150 milhões levantados no IPO: intensificar os investimentos. “Temos diversas avenidas recém-abertas e de claro potencial de retorno”, afirma Leonardo Dib, CFO da empresa. Uma deles é a plataforma de moda e beleza, chamada Zattini, criada em dezembro de 2014, que faturou R$ 175 milhões no ano passado. Outros investimentos serão feitos no desenvolvimento de marcas próprias. A Netshoes ainda voltou a ter lojas físicas depois da compra da marca varejista de sapatos Shoestock, que vai ter também um comércio eletrônico próprio.
“Há ainda um potencial enorme a ser explorado na Argentina e no México”, diz o executivo. Esses dois países respondem por menos de R$ 200 milhões do faturamento de R$ 1,74 bilhão. Como se pode perceber, há ainda muito trabalho pela frente. Perguntado se aproveitaria para descansar depois das duas semanas de road show num ritmo de 8 reuniões por dia com investidores, que antecederam o IPO, Kumruian responde: “vou descansar só no voo para o Brasil”, que aconteceria no mesmo dia. “E amanhã estarei na empresa.” De tênis descolado nos pés e com roupas mais informais.
“Tivemos que esperar o alinhamento das luas para fazer o IPO na hora certa”
Marcio Kumruian, CEO da Netshoes
O IPO saiu como esperado?
Sim. Fizemos duas semanas de road show, com sete ou oito reuniões por dia. Mas fizemos tudo com cuidado. A gente preparou a companhia para este momento, em termos de governança, processos e sistemas. A América Latina é a região que tem mais acessos à internet, atrás dos EUA e da China. E as categorias de esportes, moda e beleza são as estrelas do comércio eletrônico.
E por que o IPO saiu só agora?
A abertura de capital não dependia única e exclusivamente de nós. Mesmo nos EUA, os IPOS não aconteceram nos últimos dois anos. Tivemos que esperar o alinhamento das luas para fazer o IPO na hora certa.
Qual é o destino para o dinheiro levantado no IPO?
Vamos impulsionar a plataforma de moda e beleza, a Zattini, e promover a expansão das marcas próprias. É o caso da Shoestock, que compramos recentemente. Vamos trazer essa marca do varejo físico para o mundo online. E há potencial enorme na Argentina e no México, que ainda não têm todas as plataformas que temos no Brasil.
O sr. está preparado para ser mais cobrado por rentabilidade?
A gente prometeu ao mercado que vamos ter consistência na entrega. Estamos a cada ano melhorando e entregando o que propomos aos investidores. Os planos acordados com os acionistas serão cumpridos.
Fonte: IstoÉ Dinheiro