A marca própria surgiu como uma ferramenta de fidelização de clientes e uma arma comercial para reduzir a dependência que o varejo sempre teve em relação à indústria. Cada vez mais, as marcas próprias estão ganhando em qualidade e participação no total de vendas do varejo e na sua luta constante para ampliar as margens de lucro e controlar a cadeia de suprimentos.
Quase toda a produção do que é vendido na Riachuelo, por exemplo, é do Grupo Guararapes. Segundo o vice-presidente da empresa, Flávio Rocha, 95% das vendas do varejo são via marcas próprias. “Somos uma empresa peculiar que vai do fio até a décima prestação depois da venda. Toda a cadeia têxtil e operação financeira são muito relevantes para nós”, afirma Rocha, lembrando que a empresa também tem um banco próprio, o Midway, responsável por financiar boa parte das vendas da Riachuelo.
Rocha afirma que, a partir da década passada mais aceleradamente, o varejo teve uma mudança no seu papel diante da sociedade brasileira. “Ele deixou de ser coadjuvante para ser o protagonista, e isso significou assumir a gestão de marca, a formulação estratégica e o comando da cadeia de suprimentos”, avalia.
Segundo estudo realizado pela Nielsen em 2017, as marcas próprias trabalham com preço 13% mais competitivo em 85% das categorias. Esse é um dos motivos para essas linhas serem encaradas como uma espécie de ameaça ao market share da indústria, segundo Alexandra Jakob, sócia-consultora da Step Stone. “Mas, com o tempo, ela se tornou uma oportunidade para novos negócios para a indústria também. Havendo ociosidade de produção, o aumento do volume dilui custos fixos. Desenvolver marcas próprias para os setores de varejo e serviços pode ser uma estratégia de entrada em novas categorias ou canais com baixíssimo risco e investimento”, afirma Alexandra.
Indústrias terceirizadas produzem, por exemplo, snacks servidos durante voos de companhias aéreas. A marca é da própria companhia. A Le Lis Blanc, uma marca de moda feminina de alto padrão, possui um amplo portfólio de produtos, desde vestuário até decoração para casa. Sua variada linha de cosméticos é um exemplo bem-sucedido de marca própria produzida por empresas terceirizadas, mas cuja marca pertence à varejista.
Estigma a ser superado
Walter Faria, CEO da J.Macêdo – indústria dona das marcas Dona Benta, Sol, Petybon, entre outras – afirma que, as marcas próprias surgiram no Brasil como uma espécie de segunda linha. “Os brasileiros tinham um certo receio com marca própria, porque, quando surgiu no Brasil, elas foram relacionadas com baixa qualidade e foco apenas no preço, isso criou um estigma. É preciso rever toda essa dinâmica e pensar como agregar valor”, diz Faria.
Como demonstração da capacidade de o varejo produzir marcas próprias de qualidade, a Deli Delícia, empório gourmet do Rio de Janeiro, produz em torno de 300 produtos de confeitaria de fabricação própria para vender a outros varejistas. Hoje, 40% da produção da rede é de produtos próprios. A Deli Delícia tem, inclusive, enxugado sua operação no varejo físico para colocar mais atenção sobre sua indústria própria. A rede vendeu quatro unidades para uma rede de supermercados do Rio de Janeiro, segundo o portal Giro News.
O varejo avança sobre a indústria
Ainda que seja mais difícil para o varejo criar produtos com a precisão que a indústria faz, o varejo tem maior capacidade de produzir do que a indústria tem de vender ao consumidor final. A percepção é de João Appolinário, dono da Polishop, empresa que tem uma relação muito próxima com a indústria. A Polishop passou a maior parte dos seus 20 anos vendendo exclusivamente produtos que eram encomendados por ela e feitos por parceiros da indústria.
Ele afirma que o varejo ganha ao aumentar o mix, ampliando o número de fornecedores, enquanto a indústria trabalha no sentido oposto, reduzindo o mix da loja para caber a sua produção dentro dela. Um exemplo citado por Appolinário é a venda de automóveis. O empresário, que trabalhou no setor no começo de sua carreira, afirma que era uma espécie de obsessão dos lojistas de carros se tornarem concessionários. “Eles acabavam perdendo a liberdade e margens de lucro, tendo que se submeter a metas muito altas vendendo apenas as marcas autorizadas”, lembra.
Hoje, a Polishop vê a oportunidade de colocar a indústria debaixo do seu nome num primeiro momento para, daqui a um tempo, dar liberdade às marcas próprias. “Nós temos uma fábrica que já foi adquirida há seis anos que é de equipamentos de ginástica e essa linha está sendo lançada dentro da Polishop. Nós a preparamos para ter uma cara própria”, afirma Appolinário.
O avanço da Polishop para a indústria tem acontecido também nos setores de beleza e alimentação, com marcas de cosméticos e alimentos saudáveis. O crescimento acontece sempre de maneira inorgânica, com a aquisição de outras empresas. “Essas marcas vão acabar tendo vida própria, podendo ir para o varejo como um todo”, avalia.
A Genis – marca própria de aparelhos de musculação – representa hoje menos de 5% das vendas, mas a Polishop espera que essa participação se multiplique por quatro nos próximos dois anos por conta do aumento da adesão de exercícios feitos em casa. “Isso vai depender da velocidade que a gente vai conseguir colocar no mercado os novos produtos produzidos por nós”, diz Appolinário. No total, as marcas próprias representam algo entre 15 a 25% das vendas da Polishop.
Marca própria e sustentável
Para o Carrefour, os produtos marca própria representam margem percentual maior de lucro do que as marcas líderes de mercado. Porém, o principal aspecto estratégico dessas linhas é fidelização dos clientes e o aumento do tráfego de consumidores nas lojas. Para produzir itens próprios, a varejista conta com parceiros, que passam por periódicas auditorias de qualidade.
Diretor de Marca Própria do Carrefour, Allan Gate ressalta o crescimento nesse segmento e a projeção para os próximos anos. “A marca própria é um pilar estratégico do nosso negócio e segue crescendo em sua participação na cesta de compras de nossos clientes. Em 2018, a marca própria representou 11% das vendas de alimentos no Carrefour, sendo que em 2017 esta participação era de 8%. A meta do Carrefour é que a marca própria represente 20% das vendas de alimentos até 2022”, relata.
Os produtos de marca própria que mais vendem nas lojas do Carrefour são arroz, açúcar e leite condensando para o setor de mercearia; batata frita entre os congelados; e água de coco para as bebidas.
Os produtos próprios são parte importante do projeto do varejista francês em todo o mundo para realizar a chamada transição alimentar, que é o consumo mais saudável e sustentável de alimentos. “O Carrefour tem a ambição de tornar-se referência e líder na oferta de alimentos saudáveis, sustentáveis, que atendam a demanda dos clientes por alimentos frescos e de qualidade. Além disso, a empresa quer tornar cada vez mais acessível a oferta destes alimentos”, destaca Gate.
Com esse objetivo, o grupo varejista relançou a marca Sabor & Qualidade, apostando em perecíveis. Em 2018, foram lançados cerca de 300 novos itens próprios e, para 2019, a expectativa é de alcançar 450 novos itens. O Índice GS1 Brasil de Atividade Industrial de março (obtido pela Associação Brasileira de Automação-GS1 Brasil) aponta que os lançamentos de novos produtos na indústria como um todo fecharam o primeiro trimestre deste ano em alta de 2,8% na comparação com o ano passado.
Para aumentar a participação dos itens próprios, o varejo precisa obrigatoriamente oferecer opções acessíveis a públicos de menor renda. “Os clientes que têm menor poder aquisitivo não podem errar em sua escolha. Para estes, a confiança na marca Carrefour é um fator fundamental”.
Know-how dos parceiros
O diretor executivo da bandeira Extra (do Grupo Pão de Açúcar), Marcelo Bazzali, concorda com Farias, da J.Macêdo, quando o industrial afirma que a marca própria nasceu com um conceito muito focado no preço e pouco em qualidade. “A gente do varejo teve que dar dois passos atrás e descontinuar produtos para poder rever isso”, afirma Bazzali.
O Grupo Éxito, da Colômbia, um dos acionistas do GPA, contribui com seu know-how em produção têxtil para ampliar os produtos de marcas próprias na rede Extra. Para alimentos, o grupo varejista brasileiro foi buscar referências lá fora também. O Casino, controlador da empresa, é um dos maiores grupos de varejo alimentar no mundo. “Nesses últimos 3 anos, o que o grupo fez foi pegar esse know-how de parceiros e varejistas importantes na Europa, onde a marca está mais consolidada e tem necessidades específicas, mudar embalagem, mas não abrir mão da qualidade, estruturar uma área para produção de marcas próprias”, afirma Bazzali.
Um exemplo é a marca própria Qualitá, lançada em 2008 pelo Grupo Pão de Açúcar, com o propósito de oferecer uma alternativa de produtos de boa qualidade a um preço mais acessível. Hoje, a marca conta com um portfólio de mais de 1200 produtos nas categorias de alimentos e limpeza.
Um dos desafios para a produção própria, segundo Bazzali, é que o tempo do varejo é diferente do da indústria. “O varejo é muito imediato e tudo tem que acontecer em dois meses. Tem itens que demoram nove meses para serem lançados. Lançamos mais de 500 produtos no ano passado, mas porque começamos a trabalhar dois anos atrás”, revela.
Fonte: Novarejo