A companhia não segue — nem quer seguir — a cartilha da transformação digital pela qual têm passado os grandes grupos de varejo nos últimos anos
Por Ivan Martinez-Vargas
Quem quiser comprar móveis e eletrodomésticos na rede Lojas Cem não vai conseguir fazê-lo por sites ou aplicativos. Ofertas não vão aparecer nos apps de comparação de preços. Será preciso se render ao consumo à moda antiga e ir até uma das 295 lojas da varejista, uma das maiores do país, que chega aos 70 anos ignorando os apelos do e-commerce.
Nada de internet: a companhia não segue — nem quer seguir — a cartilha da transformação digital pela qual têm passado os grandes grupos de varejo nos últimos anos.
A empresa não tem operação de comércio eletrônico e insiste em um modelo negócio calcado no crediário próprio, no qual o consumidor precisa ir até a loja com o carnê para fazer o pagamento, mesmo depois do trauma provocado pela pandemia no comércio de rua. Ainda assim, até agora “passa muito bem, obrigado”.
Sediada em Salto, no interior de São Paulo, a Cem fatura perto de R$ 6 bilhões por ano. Manteve margens de lucro altas mesmo durante a pandemia. Nas palavras de especialistas em varejo, “um espécime raro e em extinção” do setor.
José Domingos, superintendente da rede, trabalha nas Lojas Cem há 36 anos e diz que não há nenhuma pressa em implementar o e-commerce na empresa e nenhuma intenção da família Dalla Vecchia, que a fundou e administra, em mudar o que tem dado certo. O executivo conta que comprou uma plataforma de e-commerce da gigante de tecnologia SAP, mas o lançamento do serviço “não é o foco” e não há prazo para isso:
— Não somos contra o comércio digital, só não acreditamos que ele seja um bom negócio. Não dá lucro hoje. Nossos concorrentes que vendem geladeira na internet dificilmente ganham dinheiro com isso, eles queimam margem.
‘Carnezinho’ em vez de ‘app’
Iniciada como uma loja de bicicletas em 1952 por Remígio Dalla Vecchia, as Lojas Cem ganharam esse nome e se consolidaram como grande varejista nos anos 1970 e mantêm o mesmo modelo de negócio deste então. Até hoje, os irmãos Natale (84 anos), Giácomo (83) e Cícero (69), filhos do fundador, são diretores da empresa.
Com presença em quatro estados (Rio, São Paulo, Minas Gerais e Paraná), as Lojas Cem têm 70% de suas vendas realizadas pelo carnê, aquele mesmo de papel, voltado principalmente ao consumidor da classe C.
Essa modalidade clássica de vendas no comércio brasileiro é usada principalmente por clientes desbancarizados ou sem acesso a crédito. Os juros cobrados nas Lojas Cem no crediário podem chegar a 3,9% mensais.
— Nosso processo nos dias de hoje é (considerado) ultrapassado porque a maioria das vendas é feita via carnezinho. O consumidor compra e paga na nossa loja, não em banco ou lotérica. Estamos resistindo a toda essa tecnologia, como app de pagamento. Essa é uma necessidade que logo vamos ter, mas não há necessidade hoje — explica Domingos.
O maior teste de resiliência desse modelo ocorreu nos períodos mais agudos da pandemia, em 2020 e em 2021, quando as lojas fechadas ficaram sem vender e sem receber parcelas dos carnês.
— Não cobramos o carnê nessas épocas. Foram dois meses em cada ano de portas fechadas. Dissemos aos clientes que, quando fôssemos reabrir, daríamos um tempo para que eles voltassem a pagar. Isso gerou boa repercussão em quem não comprava com a gente. Quando reabrimos, as pessoas compraram mais.
Auxílio fez diferença
O pagamento do auxílio emergencial ajudou a turbinar as vendas da marca no período. Com isso, a rede manteve faturamento estável no primeiro ano da pandemia (R$ 5,7 bilhões). O lucro foi de R$ 593,4 milhões, 70,7% maior que o do ano anterior, mas influenciado pelo recebimento de R$ 252,3 milhões em receitas extraordinárias. Sem isso, o resultado de 2020 se manteve no mesmo patamar.
As Lojas Cem também estão na contramão das gigantes varejistas em sua estratégia de crescimento, baseada na abertura de lojas próprias apenas nos quatro estados em que já atua.
Tudo financiado com recursos próprios, sem discriminar cidades bem pequenas. A marca tem presença em municípios de 5 mil habitantes, por exemplo. A empresa tem um único centro de distribuição para abastecer os pontos de venda, dividido em dois galpões localizados em Salto, com área total de 224 mil metros quadrados.
— Não temos interesse em sair do nosso raio de atuação, de até 600km. Quanto mais longe, mais custo logístico — diz Domingos. — Crescemos de 10 a 12 lojas por ano e mantivemos o ritmo, nem mais nem menos. É difícil achar pontos comerciais adequados para comprar, e todas as nossas lojas têm ao menos 1.400 metros quadrados de área. Tenho loja em cidade de 15 mil habitantes que vende muito bem.
Modelo limita crescimento
André Pimentel, sócio da consultoria especializada em varejo Performa Partners, diz que, embora esse modelo de negócio limite o crescimento da Cem, tem funcionado devido à estratégia de longo prazo dos Dalla Vecchia, que reinvestem anualmente 90% do resultado na própria empresa:
— É um negócio que não pode mais ser replicado atualmente e funciona assim ainda por uma decisão dos donos. As vendas são voltadas ao público de baixa renda, que provavelmente só consegue crédito ali. A logística é desenhada para reduzir custos, a atuação geográfica também.
Para Silvio Laban, professor de varejo do Insper, as Lojas Cem podem parecer “uma empresa que não está antenada às mudanças” e no extremo de concorrentes como a Magalu, que investe pesado em tecnologia e e-commerce, mas ele diz que os dois modelos têm espaço:
— O país é diverso. Muitos consumidores têm acesso restrito à tecnologia e preferem comprar em lojas físicas. A Cem atua forte e bem em cidades onde os avanços tecnológicos são menos importantes que em grandes centros. Ainda há um longo caminho para a adoção de inovações por todos os consumidores.
Fonte: O Globo