Por Naiara Bertão | A indústria têxtil no Brasil produz, por ano, mais de 5 bilhões de peças, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit). São mais de 2 milhões de toneladas de produtos. O volume colossal também traz desafios grandes.
Cada vez aumenta mais a pressão por ações de circularidade, que inclui utilização de material reciclado e resíduos da própria indústria têxtil, pela substituição de matérias-primas de origem fóssil por outras menos agressivas ao meio ambiente, além do acompanhamento da longa cadeia para garantir que nenhum elo deixe de seguir a legislação trabalhista e ambiental.
Foi sobre esse último desafio que a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) se debruçou nos últimos anos. Depois de três anos de erros e acertos, foi lançado, em meados de 2021, o programa SouABR, que usa blockchain para acompanhar as peças de roupa do pé de algodão ao cabide. O piloto deu certo e agora a associação se prepara para disseminar a mais empresas boa prática.
“O programa nasceu com a demanda da indústria e do varejo por transparência e também se propõe a oferecer ao público consumidor um ‘raio-X’ da peça”, diz Silmara Ferraresi, diretora de Relações Institucionais da Abrapa.
Por um QR Code presente na etiqueta da roupa rastreada na loja, o consumidor pode ver informações sobre qual a fazenda que produziu o algodão, onde ela está localizada, a imagem de satélite do lugar, se essa propriedade rural tem certificações socioambientais e até visualizar esses documentos e o ano da safra do algodão. Consta ainda a identificação do número do fardo e da prensa, e os nomes das empresas intermediárias da cadeia (beneficiadoras, fiação, malharias e tecelagens e confecções).
Para ela, já há um potencial grande de escalar o projeto. “Por safra são produzidos 15 milhões de fardos de algodão no Brasil. Por enquanto, conseguimos rastrear quase 27 mil, muito pouco perto do potencial.”
O principal obstáculo, diz, é a mudança de mentalidade das empresas da cadeia de produção. Mas, lembra que com a sustentabilidade e a rastreabilidade ganhando destaque no mundo empresarial e também na regulamentação de alguns mercados, há quem puxe a agenda.
A varejista C&A é uma das cinco marcas que aderiram – e investiram tempo e dinheiro – na ideia. Nesta terça-feira (27), a empresa apresentou ao público sua segunda coleção de roupa 100% rastreada. Foram produzidas 2.500 peças de dois modelos de calças jeans. Com isso, a empresa soma 10.330 peças rastreadas desde maio de 2023.
Neste segundo ano, foram usados 243 fardos de cinco fazendas: Valdir Roque Jacowski, Marcelino Flores e Oliveira, Agropecuária Três Estrelas, Grupo Serrana e Franciosi Agro. A fiação cearense Santana Textiles produziu, para o projeto, 2207, 23 quilos de fios, que posteriormente resultaram em 3.313 metros de tecido pela própria Santana, sendo confeccionada as 2.500 peças pela paulista Emphasis.
“Foram quase três anos para entender como toda a cadeia operava para nos sentirmos confortáveis em lançar as peças rastreadas”, comenta Cynthia Watanabe Kasai, gerente-executiva de ESG da C&A no Brasil. “É uma mudança tanto na cultura da empresa quanto na do fornecedor”, completa.
Ela explica que muitas empresas da cadeia não tinham informações sobre a origem da matéria-prima. Outro desafio foi garantir que os fardos e fios não fossem misturados a outros não rastreados, o que prejudicaria todo o trabalho.
Kasai conta ainda que a confeção também precisou desenhar um modelo que cumprisse todos os requisitos do programa, inclusive os sustentáveis, ou seja, não poderia ter nada de poliéster, que é de derivado do petróleo, e o botão ou zíper não poderia conter níquel. Para que isso dê certo e a marca consiga escala, uma vez que só no Brasil tem hoje mais de 300 lojas -, ela reitera que é preciso estimular a colaboração e ter o fornecedor próximo à varejista. O processo para a fabricação das peças rastreadas não é patenteado, justamente para poder servir de referência para a indústria evoluir, segundo Kasai.
“O investimento na construção de toda essa infraestrutura é alto, mas optamos por nos adiantar e evoluir e não esperar que o consumidor peça”, diz a executiva da C&A. Kasai conta que a C&A, por ser uma empresa familiar centenária – fundada em 1841 pelos irmãos holandeses Clemens e August – e ter lojas em 24 países, a governança sempre foi um foco importante do grupo.
Ela dá como exemplo o próprio acompanhamento dos fornecedores, inclusive no Brasil, que começou a ser feito em 2006. “Exigimos que a cadeia siga critérios mínimos de compliance trabalhista e só compramos de quem tem certificação reconhecida de boas práticas”, conta a executiva, acrescentando que a verificação do cumprimento dos critérios “é rigorosa”.
No algodão, por exemplo, uma das certificações mais conhecidas é a da Better Cotton Iniciative (BCI), organização presente em 26 países que promove melhores padrões e práticas no cultivo do algodão. Mas, o Brasil, como segundo maior exportador de algodão do mundo, só atrás dos Estados Unidos e com pretensões viáveis de ser o líder em breve, também conta com certificação própria, o Algodão Brasileiro Responsável (ABR), desenvolvido pela própria Abrapa em 2012.
Para conseguir o selo, as propriedades rurais devem atender a 183 itens, incluindo os 51 exigidos pela BCI. Silmara Ferraresi, diretora de Relações Institucionais da Abrapa, conta que, além da legislação trabalhista e ambiental nacional, também considerada a Norma Regulamentadora (NR) 31, que elenca diretrizes da segurança e saúde do trabalhador especificamente na agricultura, e as diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Também abrange o pilar econômico, com pontos sobre gestão sustentável do processo agrícola e de beneficiamento, desempenho e eficiência operacional e retorno financeiro.
“Quem participa do programa, precisa evoluir a cada safra até alcançar o patamar mínimo de 90% de conformidade”, explica Ferraresi. Na última safra (22/23), foram certificadas pelo ABR 2,55 milhões de toneladas, vindas de 374 unidades produtivas, a maioria (233) no Mato Grosso e o restante (79) na Bahia. Com isso, 82% da safra foi certificada – em 2012 era 37%. “Os produtores percebem que é importante, sabem que é um diferencial para vender para grandes empresas e exportar”, diz Ferraresi.
O preço da matéria-prima não muda. Os produtores não repassam eventuais custos extras com as adaptações para se certificarem por entenderem que é um diferencial competitivo e, eventualmente, até poderão reduzir despesas com menos uso de agrotóxicos, pesticidas e outros produtos químicos, a partir de técnicas mais sustentáveis no campo. Isso permite que as peças feitas com algodão certificado, incluindo as já rastreadas, não sejam mais caras ao consumidor final, o que é um dos grandes obstáculos para a popularização de produtos mais sustentáveis.
Só pode participar do programa de rastreabilidade da entidade – o Sou ABR – se tiver tudo em dia com esta certificação. Por enquanto, três certificadoras foram credenciadas – Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), Genesis Certificações e QIMAWQS. As auditorias nas fazendas e unidades de beneficiamento são feitas todo ano e em visitas individuais.
“Acreditamos que iniciativas como esta são cruciais para nos mantermos de pé como uma marca adequada ao nosso tempo, em que os consumidores se mostram mais conscientes sobre os impactos das suas decisões de compra e a demanda por transparência é cada vez maior”, comenta Jayme Nigri, diretor de Operações (Chief Operating Officer ou COO) da Reserva.
Segundo ele, a parceria com a Abrapa no lançamento do Programa SouABR “foi um divisor de águas” para a rastreabilidade dos produtos. O executivo destaca ainda que, além da mitigação de possíveis riscos socioambientais na produção, a rastreabilidade também chancela a transparência e permite que o cliente tenha acesso de forma muito simples e segura a informações confiáveis sobre aquela roupa.
Pelo programa SouABR, já foram produzidas para a Reserva aproximadamente 161 mil camisetas rastreáveis desde outubro de 2021. Nigri explica ao Valor que os principais desafios para a implementação do programa de rastreabilidade envolveram a integração de sistemas (API) com os fornecedores homologados, além da comunicação assertiva e didática sobre a iniciativa para o nosso público.
A Abrapa mantém ainda o programa Sou de Algodão, para incentivar o uso da matéria-prima natural, e com alto grau de certificação no campo. Atualmente, são 1473 empresas aderentes, entre elas as marcas, estão a própria C&A e a Reserva, MMartan, Renner, Riachuelo, Calvin Klein, Marisa, You com e Dafiti. Em 2020, eram 400 participantes. Só em 2023, foram 313 novas adesões, o que faz a base crescer 27%. O projeto começou em 2016.
Além da C&A e da Reserva, também já aderiram ao SouABR a Renner e a marca Youcom, também do grupo, que, juntas, somam 8.336 peças rastreadas desde maio de 2022; e a Almagrino, com 6.231 peças desde março de 2023.
A Lojas Renner, conta Eduardo Ferlauto, gerente de Sustentabilidade da varejista, estabeleceu uma meta de chegar a 100% de rastreabilidade de algodão de maneira digital até 2030. “A rastreabilidade amplia a nossa conexão com a cadeia. E esse acompanhamento da cadeia, de forma organizada, digital, traz uma capacidade maior de entendermos as oportunidades dentro do tema de sustentabilidade e qualidade”, comenta Ferlauto. Para ele, com dados, é possível tomar melhores decisões e, em parceria com os elos da cadeia, visualizar o que precisa ser feito e definir metas, além de levar transparência e informação ao consumidor.
O executivo explica ainda que a empresa só compra produtos de fornecedores que usam algodão certificado pela Abrapa ou BCI. A viscose, feita a partir de fibra celulósica grande parte importada, também caminha pelo mesmo caminho de certificação e, futuramente, da rastreabilidade.
“Atingir 100% de algodão certificado não é trivial para nós. Somos a maior varejista brasileira de moda e, por não termos fabricação própria, certamente, a maior compradora individual de peças que levam algodão. Por isso, queremos ser agentes de transformação do ecossistema da moda”, pontua Ferlauto
Em 2022 (último dado público disponível), a varejista utilizou nos seus produtos 24,5 toneladas de algodão, sendo 98% desta matéria-prima certificada. Os fornecedores nacionais conectados à sua plataforma de rastreabilidade já representam quase metade do volume de itens de vestuário que é produzido para a varejista no Brasil (neste caso, este volume não se refere apenas às peças confeccionadas com algodão).
Para o executivo da Renner, o principal desafio ainda é o engajamento dos elos da cadeia e de interligar todos os elos por sistemas de gestão e transparência de dados. Por isso, a empresa está evoluindo de forma segmentada. “Continua sendo relevante o trabalho de engajamento da cadeia e adensamento tecnológico junto a fornecedores para conseguirmos escalar”, conta.
A empresa firmou em 2022 um compromisso público de ter, até 2030, 100% das roupas de suas marcas próprias mais sustentáveis. Para isso, investe em matérias-primas circulares e regenerativas, redução do consumo de água e transição energética da cadeia de fornecimento (hoje este patamar já passa dos 80%). Tem tem a meta de implementar sistemas de rastreabilidade em 100% dos produtos de vestuário feitos com algodão.
“Quando falamos de metas climáticas, é importante entender com precisão os dados. No nosso projeto de sustentabilidade, por exemplo, os dados vão nos ajudar a entender o fator de emissão para as matérias-prima e fazer uma melhor organização da gestão”, diz. Ele adiciona que medir as pegadas de carbono e hídrica dos produtos está no radar.
Fonte: Valor Econômico