Por Adriana Mattos | Maior rede de atacarejo da América Latina, o Atacadão fez um movimento que mexeu com o mercado este ano. Com a alta no endividamento da população afetando o consumo, a empresa, pela primeira vez na história, começou a vender todos os seus produtos, inclusive básicos, como arroz, feijão e café, em três parcelas sem juros em todas as bandeiras de cartões de crédito, para tentar melhorar a venda. Só que a medida caiu mal no mercado. No fim de julho, nos dois dias após a divulgação, a ação do Carrefour, o grupo controlador, caiu mais de 10%.
Com 379 lojas e R$ 80 bilhões em vendas anuais, a rede passou sete meses estruturando o modelo, até começar a oferecê-lo nas lojas em abril, após o aval da matriz na França. Até então, o parcelamento ocorria só no cartão do Banco Carrefour, para pessoas físicas e jurídicas. Analistas e investidores torceram o nariz para a medida, pelo risco do aumento no consumo do capital de giro, e a direção teve que abrir mais dados sobre a ação.
A questão é que a empresa tem que financiar isso inicialmente, e pode ter que antecipar mais recebíveis em tempos de juros ainda altos. Mas a medida também pode elevar fluxo de clientes e acelerar receita. De janeiro a março, a venda das lojas com mais de um ano de operação subiu 1,8% e após a mudança, em abril, avançou 7,4%.
Em sua primeira entrevista desde o anúncio da estratégia, o CEO do Atacadão, Marco Oliveira, acredita que a questão está melhor esclarecida, e diz que a pressão sobre o tema, agora, se volta aos concorrentes. “O ‘canhão’ estava virado para a gente”, diz. “Fizemos muita conta. Aí, viram que o caixa do grupo não mudou, continua eficiente e perguntaram porque os outros ainda não fizeram o mesmo. Então, o ‘canhão’ mudou de direção”.
O Valor apurou que Assaí, Grupo Mateus e GPAjá foram questionados por analistas se vão copiar a estratégia e a resposta foi negativa, pelo risco financeiro. No ano, a ação do grupo Carrefour cai 24% na B3, e o Ibovespa sobe 1,6%.
Oliveira ainda comenta sobre a entrada do Atacadão em novas categorias – uma medida controversa no setor no passado – e diz que todas as lojas passarão a ter serviços, como padaria e açougue, sem que essa despesa supere 9% da venda, aspecto a que o mercado segue atento no setor. Oliveira fala também, pela primeira vez, sobre a ida do ex-CEO do Atacadão José Roberto Müssnich (seu ex-chefe) para o rival Assaí, e sobre os rumores do suposto interesse do Mateus no Assaí. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O atacarejo se expandia a 20%, 25% ao ano, mas sentiu a crise passada e desacelerou. O sr. acha que, daqui para frente, teremos crescimentos mais brandos?
Marco Oliveira: Vou explicar melhor as mudanças antes. O atacarejo evolui sempre. Antes, o cliente chegava em um balcão, pedia as mercadorias, alguém separava e trazia para ele. Aí, em algum momento, alguém teve a brilhante ideia de deixar o cliente pegar e passar no caixa. E nasceu o autosserviço em 1986. Mas era aquele modelo “hard discount” que o brasileiro não gosta. Brasileiro gosta de um pouco de serviço, porque ele pode ser pobre, mas ele não quer ser tratado como pobre. Por isso que esse modelo “hard discount” não dá certo no Brasil [formato da rede Dia, em recuperação judicial]. Tem que ter serviço, e um pouco de conforto também. Então, a primeira grande mudança que a gente fez foi aumentar sortimentos. Uma loja, em 2007, tinha 5 mil itens e hoje tem 10 mil. Antes, era muito limitada porque era destinado ao profissional. Hoje, a gente realmente é um atacarejo.
Valor: Há uma percepção de que vocês poderiam ter crescido mais após a compra do Makro e do Big. Mas, em alguns trimestres, vocês desaceleraram na venda em lojas com mais de um ano, as chamadas ‘mesmas lojas’. O que aconteceu?
Oliveira: Eu acho que a pandemia e a expansão forte no número total de lojas no Brasil explicam praticamente 90% do que aconteceu no mercado. A pandemia trouxe uma expansão do ‘like for like’ [vendas em pontos com mais de 12 meses], também ajudado pelo aumento de preços nos alimentos, e depois isso desacelerou. Além disso, todo mundo abriu muitas lojas, e nós também, porque ninguém queria ficar para trás. Foram 300 unidades abertas pelo setor em dois anos. É muita coisa. O mercado não estava preparado para isso.
Valor: Esse cenário afeta o setor, mas o Atacadão cresceu menos que os rivais em 12 meses. Um dos fatores seria ter aberto menos lojas urbanas, que cresceram mais com o fim dos hipermercados. E então, vocês aceleraram esse projeto…
Oliveira: Acontece que a venda “mesmas lojas” é impulsionada por três coisas: inflação, expansão e performance ou gestão. E o que aconteceu é que a inflação recuou e isso não nos ajuda [inflação alimentar gera maior receita nominal]. A gente está prevendo que o ano deve fechar com inflação em 3,5%. Sobre as lojas urbanas, estamos acelerando isso. Na verdade, até já vínhamos fazendo, antes da aquisição do Big, quando desenvolvemos um modelo de loja para cidades menores. São pontos com menos de três mil m2 de área. Eu tenho mais ou menos 20 lojas nesse formato menor, que vai ter serviço também, como padaria, mas adaptado. É para aquele cliente de proximidade, que pega 5 a 10 itens, paga e sai rapidinho.
Valor: Um pouco de inflação alimentar é bom para a receita, mas ela é ruim para volume…
Oliveira: Sim, e não ter inflação alta dá um outro tipo de gestão para a gente, com foco em eficiência nos custos, na administração da empresa, para ter o menor custo operacional para conseguir ser mais competitivo.
Brasileiro gosta de serviço e conforto, e não quer ser tratado como pobre”
Valor: Esse caminho é mais difícil do que por algum aumento de preços, que melhora receita.
Oliveira: Para nós, não. Na minha visão, a inflação “resolve”, mas mascara também. Os ineficientes vão crescer, ajudados pelo preço mais alto. Nós podemos fazer uma atividade comercial, como a que fazemos em abril, na data do aniversário da rede, mas não dá para fazer aniversário todo mês. Então, aí vem da dinâmica do dia a dia, o campo de batalha. O que ajuda também é que a venda para empresas voltou forte, e a venda de datas comemorativas. Casamentos, batizados, tem até festa para descobrir o sexo do bebê. Mas tem uma conta que estou falando muito ao mercado, que é não olhar só o percentual de crescimento, mas olhar o valor. Ou seja, quanto se colocou na base de vendas a mais na linha “mesmas lojas”. Aí você vai ver o valor absoluto, e depois a variação. E verá que o percentual do Atacadão é um pouquinho menor que os outros. Porque a nossa base de venda é muito maior. Tenho falado para se analisar o grupo no total, como líder de varejo e atacarejo alimentar, porque temos agora um cliente indo em vários canais ao mesmo tempo.
Valor: O supermercado grande é a próxima “vítima” do atacarejo? Vai encolher, como aconteceu com o hipermercado?
Oliveira: O que aconteceu é que o atacarejo saiu das periferias e foi para dentro das cidades, inclusive bairros nobres, e foi ocupando espaços. Mas o ‘super’ grande não vai desaparecer, porque ele tem o público dele e ainda tem a vantagem da localização. Talvez irá parar de crescer em número de lojas. Ele vai ser a nova loja de vizinhança, mas bem mais estruturado. Neste ano, nós convertemos oito lojas do Big em supermercados.
Valor: O sr. estava falando de eficiência, de gestão. O que estão fazendo para isso melhorar?
Oliveira: Nos últimos dois anos, fizemos a revisão do sortimento, e a melhoria dos ativos de loja, a iluminação, as gôndolas. Depois, os serviços para o cliente, como as balanças nos caixas, e pondo caixas automáticos. O que aconteceu é que o Extra fechou, o Walmart virou Big e foi vendido para nós, e parte virou Atacadão. Teve uma redução de número de lojas muito forte dos hipermercados. Só que para trazer os clientes dessas lojas, a gente teve que dar um banho de serviços, colocar padaria, açougue e itens fatiados [no setor, conhecido pela sigla “PAF”]. Esse pacote é para garantir crescimento nos próximos anos. Ainda vamos pôr mais serviços nas lojas em 2025 e 2026.
Valor: Mas como fica a participação da despesa operacional sobre a receita, porque se trouxer muito serviço você encarece o atacado, o preço sobe e isso vai contra a ideia do modelo do negócio.
Oliveira: Estamos controlando isso. Essa conta estava em 8,6% no segundo trimestre.
Valor: O ideal é ficar abaixo de 9%, não?
Oliveira: Sempre abaixo de 9% é o “target”. Mas se subir um pouquinho não tem problema, porque a venda cresce proporcionalmente e acaba reduzindo de novo por ganho de escala. Já temos serviços em um terço das 379 lojas e acho que cabe em todas, se for bem adaptado. E vamos colocar ainda autoatendimento em todas as lojas. Também entraremos em novas categorias. Acabei de ter um seminário estratégico sobre isso.
Valor: Em quais novas categorias estão entrando?
Oliveira: O que vai ajudar na nossa expansão nos próximos anos é um crescimento horizontal e não vertical. Isso quer dizer que eu não quero vender vários tipos de águas, só variando sabor. Quero um crescimento horizontal, entrando em categorias que nós não estávamos, como na venda de flores. Não é jardinagem, é só flores, porque não quero concorrer com especialistas. E também vender pequenos eletrodomésticos, como os portáteis. Não é geladeira, na linha branca de eletrodomésticos jamais entraríamos. Então, é tudo adaptado para o nosso negócio.
Valor: O sr. sabe que, anos atrás, isso não deu certo no atacarejo, porque as pessoas não iam atrás disso, e só enchiam as lojas de produtos.
Oliveira: Mas essas categorias que citei viraram uma oportunidade depois que o hipermercado encolheu. Eu consigo vender a mesma flor 40% mais barata que nas lojas mais caras. Por exemplo, a categoria de pneus, nós não tínhamos e agora passamos a vender. Isso tudo já está acontecendo desde janeiro. Vemos a entrada de novas categorias como oportunidade de expansão para os próximos anos.
Valor: O Atacadão passou a vender em três vezes sem juros com todos os cartões, só que o mercado não gostou muito. Depois que informaram a medida, a ação do grupo Carrefour caiu. O que aconteceu?
Oliveira: O Atacadão já vende parcelado no cartão, mas agora entraram todas as bandeiras. Começamos em abril, e o mercado perguntou muito. O Eric [Eric Alencar, responsável pela área financeira do Carrefour] passou um tempo respondendo a isso. O “canhão” estava virado para a gente. Falavam que iríamos acabar com o fluxo de caixa. Aí, viram que o caixa do grupo não mudou, continua eficiente, e perguntaram porque os outros ainda não fizeram o mesmo. Então, “o canhão” mudou de direção. Se tem algum problema, não é por causa das três vezes sem juros.
Inflação resolve, mas mascara. Os ineficientes vão crescer ajudados por preço alto”
Valor: Mas isso de financiar o cliente pode afetar o ciclo de caixa. Fizeram porque achavam que precisavam melhorar o volume vendido?
Oliveira: Por causa de volume e para aproveitar o momento. Não tem inflação, os preços estão estagnados, o mercado ainda veio desacelerando. E, principalmente, o cliente está muito endividado. E consumidor endividado precisa de fluxo de caixa. É igual empresa, quando precisa de um suporte. Então, a gente deu esse benefício ao cliente, e não teve impacto negativo no ciclo [financeiro].
Valor: O mercado se convenceu de que isso não deve afetar custo financeiro e caixa?
Oliveira: Ele se convenceu porque, no fluxo de caixa, um dos grandes componentes é a tesouraria de mercadoria. E o principal peso nisso é a dívida com fornecedores. Depois, você tem o componente de estoques. E o terceiro elemento é o valor a receber. Parece incrível, mas quanto mais eu devo ao fornecedor, é melhor, porque indica que eu já comprei, e o estoque, quanto menor, melhor. E o valor a receber, que você vendeu, quanto menor, melhor também. Então, se estou devendo, mas recebi a mercadoria e meu estoque está baixo, é sinal que eu vendi. Eu quero abrir essa equação do Atacadão ao mercado. Estamos vendo isso.
Valor: O problema é que o cliente, seja empresa ou consumidor, se endivida por três meses, e a dívida mensal vai se somando cada vez que ele retorna e parcela de novo. Vira uma ‘bola de neve’ que leva a um calote maior, não?
Oliveira: Não vimos isso. Se fosse assim, essa alta já estaria sendo sentida em atrasos, e não tem isso. O cliente voltou para a loja após pagar a dívida mensal. E você o ajudou por três meses. Isso vai gerar uma recorrência da compra. Após abril, quando entrou a opção do parcelado, conseguimos baixar um pouco o estoque. E o valor a receber aumentou. Se olhar o fluxo de caixa isolado do Atacadão, isso continua lindo. Não teve alteração. E o endividamento total, que aumentou um pouquinho, tem a ver com o grupo. O parcelado impulsiona venda de feijão, arroz, leite, os itens básicos para a população.
Valor: Quais os projetos de lojas para os próximos anos?
Oliveira: Sobre o orçamento do ano que vem, nós começamos a debater sempre em setembro. Ainda não temos aprovado os investimentos de 2025. A dificuldade que a gente tem hoje de aprovar projetos, e isso vale para todo mundo, são os 10,5% de taxa de juros ao ano. Até um carrinho de pipoca pra expandir já é difícil. As conversões têm um modelo econômico mais sustentável. É um terço do investimento de uma loja maior. Agora, o DNA do atacarejo são lojas grandes. E, já há algum tempo, nos últimos três anos, a gente desenvolveu um modelo menor, que foi fortalecido pela chegada do Maxxi Atacado [ex-rede do Big], com 46 unidades de cinco mil metros quadrados. É óbvio que ali não vamos ter 11 mil itens na loja, mas sete mil. E não deixamos o cliente órfão de nenhum formato.
Valor: Ela é mais rentável que a loja tradicional?
Oliveira: É mais rentável do ponto de vista de retorno econômico, e não de Ebitda [lucro antes de juros, impostos, amortização e depreciação]. Agora, o retorno de capital, o “payback”, a taxa interna de retorno, elas tendem a ser melhores. Porque exige um esforço muitíssimo menor de investimento.
Valor: Emprego e renda crescem, mas não vemos um nível de confiança que dá segurança para mais investimentos no varejo. Por quê?
Oliveira: Além do alto endividamento, que gera incerteza, a concorrência cresceu muito. O tamanho do bolo do setor cresce menos, e com mais concorrentes. Sobre os preços, o pacote de arroz, que já foi R$ 11, foi para R$ 32, e o preço até caiu, mas ainda é R$ 26. Até temos mais gente empregada, só que com um salário menor e preços ainda lá no alto.
Valor: Como estão os planos que anunciaram das 40 lojas que seriam transformadas em atacarejos e supermercados até 2026?
Oliveira: Na verdade, foram 11 aberturas de atacarejo em 2024, e mais 8 supermercados que viraram Atacadão. E serão mais 21 atacarejos entre 2025 e 2026.
Valor: As “bets” e os joguinhos afetam a demanda por alimentos?
Oliveira: No varejo, na Abras, na Apas [associação brasileira e paulista de supermercados, respectivamente] é o tema número um de todas as reuniões. A “bet” é um problema social, e elas estão expondo muito as marcas. Isso entra na cabeça das pessoas, e as mais humildes são mais vulneráveis. E a bet é um algoritmo. Ela primeiro te faz ganhar duas ou três vezes, depois te tira tudo. A gente percebe que isso já tem tirado uma parcela de consumo. Internamente, temos uma comunicação alertando os funcionários sobre os riscos.
Valor: As “bets” dizem que as redes estão usando isso como desculpa para não estarem crescendo tanto quanto elas poderiam.
Oliveira: Para mim, é um problema social que os governos vão ter que, em algum momento, entrar no tema. Porque isso não interfere só na saúde financeira das famílias, mas na saúde psicológica também. Lógico que não é apenas isso que está causando um menor crescimento no alimentar, abaixo do potencial. Isso é um dos fatores.
Valor: Como o sr. vê a ida do ex-CEO do Atacadão, José Roberto Mussnich, para o conselho de administração do Assaí? A concorrência fica mais reforçada.
Oliveira: É muito natural que uma empresa como o Assaí queira o Roberto como conselheiro. Ele é um executivo muito sênior. Eu trabalhei bem com os dois [no Atacadão]. E o Assaí é uma “corporation” [empresa de capital pulverizado], e precisa de nomes de referência. Então, a medida faz sentido.
Valor: O sr. crê num movimento de consolidação, com os rumores do interesse do Mateus no Assaí?
Oliveira: Sabemos que há uma movimentação de bancos buscando projetos no setor. Em termos lógicos, unir uma operação de Nordeste e Sudeste faz sentido, mas sei o que leio na imprensa.
Fonte: Valor Econômico