A cada 15 dias, o executivo Paulo Correa, presidente da varejista de moda C&A no Brasil, se reúne com um grupo de consumidoras. Nos últimos tempos, ele esteve particularmente curioso a respeito de seus hábitos de compra. “Queria saber como elas encontram as roupas que desejam”, afirma Correa. O sistema é complexo. Geralmente, o processo se inicia com uma dica, provavelmente de alguma amiga. “Digamos que ela ouça que os vestidos longos são uma tendência”, explica o executivo. “Com isso, ela entra no Instagram e coloca a hashtag #vestidoslongos.
Vai aparecer uma série de imagens. Ela clica nas que mais gosta, vê que é de uma determinada marca, acessa o site da marca, consulta o preço e verifica onde tem uma loja no seu caminho.” Se o atendimento for bom e o valor justo, a consumidora, provavelmente, irá adquirir a peça. Mais importante do que conhecer o processo em si é a conclusão de que a moda é muito mais acessível. “Esse processo de pesquisa de estilos era restrito a poucas pessoas”, diz Correa. “Agora, a sociedade está cada vez mais imediatista.” E os clientes sabem o que procuram.
Essa percepção das mudanças na sociedade está no centro de uma grande transformação pela qual a C&A passa. Em um setor marcado por escândalos de trabalho análogo à escravidão e pela fugacidade do chamado fast fashion, conceito consagrado pela espanhola Inditex, dona da Zara, que se baseia na capacidade de entregar as últimas novidades das passarelas o mais rápido possível ao consumidor, a C&A quer ser diferente. Sua estratégia privilegia a criação de conceitos. A moda, para a companhia, deve ser atemporal. Em vez de coleções sazonais, ela aposta em linhas duradouras, bem pensadas, e confia no consumidor para fazer suas escolhas.
“Nosso papel é oferecer à sociedade opções para que cada indivíduo possa se expressar, sem tomar aquele caminho tradicional de dizer ‘a moda é essa’”, explica Correa. Por este novo modelo, o importante não é só ser rápido, é criar opções. “Se eu quero usar um blusão de manga longa, vou lá e compro”, diz Correa. “Não importa se é masculino ou feminino, o que eu penso politicamente ou a minha idade.” Inclusive, a empresa lançou coleções unissex, recentemente. Por trás dessa transformação, está um mercado desafiador no Brasil, que vem caindo nos últimos anos, e um cenário global no qual a companhia, comandada pela mesma família há mais de 170 anos, enfrenta alguns fantasmas do passado.
Segundo dados da empresa de pesquisas Euromonitor, o varejo de moda movimentou R$ 104,3 bilhões no País, em 2015, uma queda de 1,6% em relação ao ano anterior. Até 2020, a expectativa é de que essa tendência continue, reduzindo em mais 1,7% o faturamento das empresas. Este ano, segundo dados da Serasa Experian, as vendas de tecidos, vestuário e calçados acumulam um declínio de 13,5%. Alheia a essa tendência, no entanto, a C&A cresceu. Seu faturamento passou de R$ 4,4 bilhões, em 2014, para R$ 5,1 bilhões, em 2015, segundo cálculos da Euromonitor (a empresa não divulga informações financeira).
Sua participação de mercado também subiu, de 4,2% para 4,9% no período. Porém, ela terminou o ano ligeiramente atrás da líder Renner, que viu sua parcela passar dos mesmos 4,2%, para 5%. Ainda assim, sua participação é grande o suficiente para permitir que a empresa use seu tamanho para promover mudanças no mercado. “Temos de aproveitar nossa escala”, diz Correa. Nesse sentido, a proposta é de uma ruptura total com as passarelas e o fast fashion. Esse modelo balizou as ações de boa parte das varejistas na última década, globalmente.
A própria C&A ajudou a criá-lo e, diga-se de passagem, continua a se aproveitar dele ao manter uma parceria com Gisele Bündchen, a ex-rainha das passarelas. “O consumidor não aceita mais ser vítima da moda”, afirma Elio Silva, vice-presidente de operações da companhia. Isso tem profundas implicações na cadeia de produção e logística da empresa. O executivo explica que o fast fashion funciona da seguinte maneira: a empresa vê um vestido na passarela, põe toda a sua cadeia produtiva para funcionar na tentativa criar uma peça parecida com aquela e colocá-la à venda no menor espaço de tempo. “O problema é que, hoje, os consumidores têm mais referências”, diz Silva.
A C&A propõe uma inversão desse processo. No lugar de ir até a passarela encontrar inspiração para as coleções, a empresa tem se reunido frequentemente com os clientes. Dessas conversas, saem as referências que seu time de designers, gerentes de produtos e especialistas em matérias-primas usarão para desenvolver os conceitos das coleções. A ideia é que as peças durem anos nas prateleiras, não apenas aquele pequeno espaço de tempo entre os desfiles. Nessa etapa, muitas vezes a companhia faz uso de parcerias com grandes grifes – só neste ano, foram cinco, com as marcas Ateen, Replay, Alexandre Herchcovitch, Dress To e Iódice.
Segundo Silva, o parceiro é sempre convidado a trabalhar com itens icônicos do seu portfólio. A Iódice, por exemplo, se concentrou em uma linha de vestidos. A meta, tanto para os grandes estilistas, quanto para a equipe própria de designers, é a mesma: tudo precisa ser atemporal. A busca pelo preço baixo segue como um dos pilares. Porém, o objetivo é alcançado por meio da escala e do relacionamento de longo prazo. Por não ter a necessidade de fazer mudanças abruptas nas coleções, a varejista pode garantir a fornecedores uma demanda constante, por períodos superiores a um ano.
Dessa forma, o parceiro evita situações como máquinas e funcionários ociosos, conseguindo oferecer um custo de produção mais baixo para a C&A. Esse é um ponto nevrálgico do mundo da moda. Nas últimas décadas, nenhum outro mercado enfrentou tantos casos de trabalho análogo à escravidão, em várias partes do mundo. No final dos anos 1990, empresas de artigos esportivos, como a Nike, foram acusadas de explorar trabalhadores, inclusive crianças, em países asiáticos. Mais recentemente, grandes marcas que atuam no País, como Le Lis Blanc, John John e Bo.Bô, do grupo Restoque, M.Officer, e a própria Zara, estiveram envolvidas em casos semelhantes.
Oficinas que prestavam serviços a essas empresas foram fechadas por fiscais do governo, que encontraram ambientes insalubres e trabalhadores impedidos de deixar o local. A Zara foi autuada, no ano passado, e pode pagar multas de até R$ 25 milhões. A necessidade de produzir mais rápido e mais barato é apontada como uma das causas desses escândalos. “Não dá para dizer que o fast fashion resulta em trabalho escravo, mas muitas empresas desse segmento estiveram envolvidas nesse crime”, afirma Leonardo Sakamoto, fundador da ONG Repórter Brasil, cujo trabalho investigativo ajudou a trazer à tona muitos desses casos.
“Quando se tem uma demanda por grandes esforços logísticos e corte de custos, o resultado acaba sendo uma redução nos direitos trabalhistas e, em casos limítrofes, trabalho escravo.” A C&A não viu seu nome envolvido em nenhum desses escândalos. “Reconhecemos que ela é uma das empresas que mais se preocupam com essa questão”, diz Sakamoto. Firmando relacionamentos de longo prazo com fornecedores e, ao mesmo tempo, investindo na capacitação e em auditorias dessa cadeia, a varejista espera provocar um efeito positivo em cadeia por toda a indústria.
Desenvolver uma moda duradoura não significa, no entanto, deixar de atualizar as lojas. Apesar de serem atemporais, os conceitos, ou parte deles, podem ser descartados dependendo da demanda. Para isso, a C&A tira proveito de suas 170 lojas, presentes em todas as capitais do Brasil. Diariamente, passam por seus pontos de venda cerca de um milhão de pessoas. “Leva uma semana para saber se a coleção está vendendo, ou não”, diz Correa. “Se os clientes gostam, fazemos mais. Caso contrário, descartamos.”
Essa ideia de criar conceitos e deixar que os consumidores façam as escolhas, no lugar de tentar impor estilos pré-determinados, como propõe o fast fashion, é relativamente recente, mas vem conquistando adeptos. Tanto que já ganhou até um nome: “moda com propósito”. Um dos maiores defensores desse modelo é André Carvalhal, professor de moda e marketing das faculdades FGV e ESPM e ex-diretor de marketing da grife Farm. Para ele, que acaba de lançar um livro sobre o tema, a moda descartável e a busca do lucro pelo incentivo ao prazer efêmero do consumo desenfreado estão com os dias contados, mesmo em um setor tão ligado ao consumismo quanto o varejo têxtil.
“É uma tendência irreversível, uma questão de tempo”, diz Carvalhal. A moda, cada vez mais, terá de abraçar a ideia da sustentabilidade, não só na questão do controle da cadeia de trabalho, mas também nos materiais usados. Nesse sentido, a C&A estabeleceu a meta de fabricar 100% dos seus produtos com algodão orgânico até 2020. Atualmente, esse número está em 27%. Recentemente, a empresa fez parceria com a Malha, uma incubadora de empresas que reúne startups focadas em moda sustentável. O objetivo é dar suporte a esses empreendimentos para que, no futuro, possam se tornar potenciais fornecedores.
Por meio de um edital, serão selecionadas 10 marcas para participar do projeto. Em 2017, será inaugurado um polo de upcycling, nome usado para a atividade de reciclagem de roupas e tecidos, sob o comando da estilista Gabriela Mazepa. “O glamour está perdendo espaço na moda e as empresas precisam evoluir com a sociedade”, diz o presidente da C&A, Paulo Correa. Há, nesse processo todo de mudança da C&A, um contexto mais amplo. A família holandesa Brenninkmeijer, que controla a empresa há cinco gerações – a sexta já está sendo preparada, está em um processo de reconciliação com seu passado.
Maurice Brenninkmeijer, atual chairman da Cofra, holding dona da varejista, contratou um historiador para escrutinar as ligações da companhia com o partido nazista durante a Segunda Guerra Mundial. O chefe do clã considerado um dos mais ricos e mais misteriosos da Europa está às voltas, também, com um cenário adverso em mercados importantes, como Alemanha, Rússia e China. Os dados financeiros da C&A são escassos. Estima-se que sua receita global seja de US$ 10 bilhões. Mas, recentemente, a companhia teria cortado pela metade seus pedidos a fornecedores de Hong Kong.
O desafio de Maurice, que trabalhou por seis anos no País e tem um filho brasileiro, é conter o avanço, justamente, das rainhas do fast fashion Zara e H&M. O modelo da Zara pode ser questionável. Mas o fato é que a empresa fundada por Amâncio Ortega, o segundo homem mais rico do mundo, é um rolo compressor em termos de vendas. Líder mundial, a empresa registrou lucro líquido de € 702 milhões no segundo trimestre deste ano, um aumento de 8,8%, resultado que ficou acima das expectativas dos investidores.
Sua receita, no período, chegou a € 10,5 bilhões, o equivalente a R$ 36 bilhões. Segundo analistas do banco Société Générale, os fortes resultados se devem à estratégia da companhia de centralizar suas operações na Espanha. Mais de 60% dos seus produtos são fabricados no país, enquanto a média das suas concorrentes europeias é de produzir 80% das roupas na Ásia. A proximidade dos centros produtivos da matriz dá à Zara a capacidade de responder, quase que prontamente, à demanda dos consumidores. Tudo indica que o fast fashion está longe de acabar, o que torna a estratégia da C&A mais ousada ainda.
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Em paz com o passado
O mundo dos negócios tem certa dificuldade em olhar para trás. Afinal, são os resultados futuros que importam. No máximo, o passado recente, de um ou dois anos, serve para apontar uma tendência. Há exceções. Empresas familiares, fundadas a partir de grandes histórias de empreendedorismo, costumam expor esse passado glorioso, com orgulho. Mas e quando o passado é obscuro e ligado a grandes tragédias da humanidade?
Muitas companhias europeias enfrentam esse dilema em virtude de antigas associações com o nazismo. Não é segredo que Volkswagen, Daimler, BMW, Lufthansa e Siemens, entre outras, tiveram papel importante durante o governo de Hitler, tendo, inclusive, se beneficiado de laços com líderes do partido. É o caso, também, da C&A. “Nós pensávamos que conhecíamos nossa história”, afirmou Maurice Brenninkmeijer, chairman da Cofra Holding, controladora da C&A e líder da quinta geração da família fundadora da companhia, à revista The Economist. “Mas ouvi-la machuca o coração.”
Há cinco anos, a família Brenninkmeijer tomou a decisão de descobrir a verdade. O historiador alemão Mark Spoerer foi contratado para explorar esse passado. Seu trabalho revelou uma íntima ligação da antiga gestão da empresa com Hermann Goering, um dos principais líderes do partido nazista. A C&A, entre 1942 e 1945, lucrou com o uso de trabalho forçado e o confisco de bens de judeus. Os detalhes dessa tragédia foram publicados em um livro, escrito por Spoerer.
Para Maurice Brenninkmeijer, que diz ter sofrido pressão de parte da família para não tornar públicos esses fatos, encarar o passado funciona como uma terapia corporativa. “Agora, temos um entendimento da nossa história, não como um fardo a ser carregado, mas sim como uma plataforma”, diz o executivo. As próximas gerações, diz ele, devem aprender, com essa história, a manter sérias discussões sobre dilemas éticos para se comportar de maneira melhor no futuro.