Por Francisco Aldaya | O mercado de e-commerce da América Latina enfrenta uma disrupção sem precedentes.
A tecnologia causa impacto cada vez maior, associada mais recentemente ao avanço de IA, enquanto estratégias antes eficazes eventualmente se mostram insuficientes diante de gigantes asiáticas como Shein, Temu e Shopee. Grandes players da região enfrentam desafios para se manter competitivos.
Para Mariano Gomide, cofundador e co-CEO da VTEX, uma das empresas líderes em soluções de tecnologia para o comércio eletrônico com presença internacional, companhias do setor devem se adaptar rapidamente à onda de Inteligência Artificial e adotar modelos verticais e integrados globais, inspirados no sucesso das corporações chinesas, ou podem colocar em xeque sua sobrevivência.
Em entrevista à Bloomberg Línea à margem do 2024 COA Symposium e do 29º BRAVO Business Awards, organizados pelo Conselho das Américas em Miami, Gomide falou sobre os desafios que sua empresa enfrenta, os erros que ele acredita que os investidores cometem ao avaliar a VTEX e os fatores que acredita serem fundamentais para competir em uma era de inovação cada vez mais rápida.
Empresas como Pinduoduo, dona da Temu, Shein, AliExpress, do Alibaba, Shopee e Tmall transformaram a estrutura do comércio internacional ao implementar modelos de negócios ultraleves e otimizar suas cadeias de suprimentos para atingir níveis de eficiência sem precedentes.
“Vemos diariamente falências no varejo dos EUA e da Europa.” Acrescente a isso a gestão eficiente dos canais de distribuição por empresas chinesas e estamos diante de “dois ventos contrários” para o varejo ocidental, disse Gomide, que comanda a VTEX ao lado do cofundador e co-CEO Geraldo Thomaz.
A empresa fundada em 2000 é considerada por especialistas um case do setor de tecnologia do país que abriu capital na NYSE em 2021 e está presente em quase 40 países prestando soluções justamente para plataformas de e-commerce, com a integração de sistemas e clientes globais como Sony, Coca-Cola, Nestlé e Walmart, entre outras – são mais de 3.800 lojas online sob sua operação.
Veja a seguir os principais trechos da entrevista, divididos por tópicos para fins de clareza e compreensão:
Perspectivas da VTEX
A VTEX tem entregado crescimento em dois dígitos em receitas, geração de caixa livre, lucro e GMV (volume bruto transacionado), além de ampliar as margens, mas o valor de suas ações não seguiu o mesmo ritmo: está relativamente estagnado neste ano e ainda abaixo do preço de seu IPO em julho de 2021.
Para Gomide, esse fenômeno é representativo de uma crise mais ampla que afeta as empresas de tecnologia de médio porte nos Estados Unidos.
“Isso não é exclusivo da VTEX. A maioria das ações de tecnologia de médio porte perdeu de 70% a 90% de seu valor”, disse Gomide na entrevista.
Mas o tempo tem mostrado diferenças importantes, segundo ele, entre empresas com valor real das que se sustentavam apenas com financiamento de capital de risco.
“O que prometemos no IPO, nós cumprimos e, em alguns casos, até excedemos essas promessas”, disse.
Esse compromisso de longo prazo tem como base em uma abordagem de lucratividade equilibrada e sustentável, alinhada com a Regra dos 40, que a VTEX espera entregar até 2026 ou 2028.
Segundo essa regra, válida para empresas de software, aquelas cuja soma das taxas do crescimento das receitas e de margem de lucro superam o patamar de 40 estão em nível que indica tanto boa performance atual como o potencial de expansão em níveis que justificam investimentos.
Para Gomide, essa estratégia de lucratividade está associada ao que classifica como um planejamento meticuloso ao longo dos 24 anos de história da VTEX.
“Não viemos de uma cultura que exige a queima de capital para crescer. Sempre fomos muito cautelosos com relação à aplicação de capital”, disse o CEO, ao diferenciar a VTEX de outras empresas que priorizam o crescimento rápido e desenfreado, muitas vezes às custas da estabilidade financeira.
Impacto das techs chinesas
Um dos pontos críticos abordados por Gomide é o impacto que as gigantes chinesas de tecnologia exercem no comércio eletrônico latino-americano e global.
Empresas como Pinduoduo, dona da Temu, Shein, AliExpress, do Alibaba, Shopee e Tmall transformaram a estrutura do comércio internacional ao implementar modelos de negócios ultraleves e otimizar suas cadeias de suprimentos para atingir níveis de eficiência sem precedentes.
“Vemos diariamente falências no varejo dos EUA e da Europa.” Acrescente a isso a gestão eficiente dos canais de distribuição por empresas chinesas, como a Shein e a Shopee, e estaremos diante de “dois ventos contrários” para o varejo ocidental, disse Gomide.
Para o co-CEO da VTEX, um dos desafios fundamentais está na falta de eficiência – em linhas gerais – de empresas ocidentais de comércio eletrônico.
Segundo ele, a maioria não otimizou suficientemente suas operações nos últimos anos, pois foram apoiadas por um ambiente de baixas taxas de juros e fácil acesso ao crédito.
Em um cenário financeiro mais desafiador com taxas de juros ainda elevadas em muitos países, essas empresas enfrentam dificuldades para se adaptar às novas demandas do mercado.
Além disso, Gomide enfatizou que ainda percebe o que classificou como certa relutância de líderes do e-commerce em parar de olhar apenas para seus mercados locais e, em vez disso, adotar uma estratégia mais global ou, pelo menos, regional. Isso tem sido um grande sucesso para as empresas chinesas, segundo ele.
A VTEX, por sua vez, tem executado uma mudança para canais de vendas globais e orgânicos, com o objetivo de expandir as oportunidades de comércio internacional de forma econômica.
Atualmente a empresa ajuda a operar mais de 3.400 lojas online em perto de 40 países, tem operações em quase 20 localidades e conta com mais de 1.400 funcionários no mundo.
De acordo com Gomide, a integração de canais automatizados será um aspecto fundamental nos próximos cinco a dez anos, e ele está convencido de que “a inovação virá da exploração de canais orgânicos”.
Simplicidade para sobreviver
Nesse contexto de desafios e concorrência, Gomide propõe uma estratégia que, segundo ele, embora simples na teoria, é difícil de implementar na prática: a simplicidade.
“Simplicidade é a palavra que vai devorar todos os varejistas”, afirmou. Para ele, a chave para enfrentar a concorrência chinesa e se adaptar às demandas do mercado global está na simplificação das operações, eliminando os processos burocráticos que limitam a agilidade das empresas.
Em sua opinião, muitas empresas estão sobrecarregadas com pessoal e estruturas desnecessárias, o que as torna menos eficientes e as distancia da agilidade necessária para competir em um ambiente em constante e rápida evolução.
Gomide disse que a implementação da estratégia de simplicidade pode ter um alto custo inicial, especialmente em termos de redução de pessoal e custos de tecnologia associados, mas acredita que esse é o único caminho viável para a sobrevivência em longo prazo.
“Talvez você precise abrir mão de 300 funcionários que, por inércia, criam sua própria tecnologia por uma questão de ego, sob o pretexto da necessidade de se diferenciar; mas, na realidade, o que é diferenciação hoje? No momento, é a agilidade, que permite que você tenha uma margem de lucratividade de 10% para poder comprar outras empresas”, disse ele.
“É hora de aqueles que estão fazendo o trabalho de cortar investimentos em TI, vendas e marketing serem eficientes; não se trata apenas de cortar mas de melhorar a produção depois dessas medidas”, acrescentou, observando que esse processo “será catalisado pela revolução da IA”.
Amazon e Mercado Livre
Embora a Amazon e o Mercado Livre tenham estabelecido uma posição dominante em seus respectivos mercados, os Estados Unidos e a América Latina, Gomide sugeriu que até mesmo essas empresas poderão enfrentar sérios desafios no futuro.
“A Amazon e o Mercado Livre são exceções”, argumentou, observando que, se forem excluídos, a margem de lucro média no setor de varejo público fica entre 4% e 6%, o que é insuficiente para se manter contra concorrentes mais ágeis e globalizados.
Apesar de seu tamanho e de sua capacidade de controlar o tráfego e as transações, a Amazon se esforça para consolidar sua posição global em regiões como a América Latina, a Índia e a Malásia, onde empresas locais e outros concorrentes, inclusive os chineses, ganham terreno.
Os modelos de negócios das empresas chinesas operam sob uma lógica completamente diferente, disse Gomide. Empresas como a Pinduoduo, da Temu, uma das que ele mais admira, não selecionam estrategicamente os países para onde querem se expandir.
“Elas simplesmente vão a todos os lugares”, disse Gomide, contando sua surpresa quando um executivo da Pinduoduo explicou a ele a abordagem expansiva e despreocupada da seleção de mercados.
Essa atitude reflete uma agressividade na expansão que desafia os modelos convencionais e permite que as empresas chinesas controlem a experiência do consumidor de forma abrangente em diferentes partes do mundo.
Para o co-CEO da VTEX, o modelo tradicional de franquia, predominante no Ocidente, corre o risco de se tornar obsoleto. Empresas que quiserem se manter relevantes terão que se reinventar, adotando modelos que integrem estoques e operações globalmente, em vez de depender exclusivamente de franquias locais para a distribuição de produtos.
“Para competir com eficiência, as marcas precisam pensar em integração global, o que significa um controle muito maior sobre suas operações”, afirmou.
Capital humano e protecionismo
Em um mercado de comércio eletrônico globalizado, Gomide enfatizou a importância de contar com talentos nos mercados emergentes e aproveitar a logística mais avançada do mundo.
Para ele, as empresas que conseguem aproveitar os recursos globais, incluindo o talento humano, têm mais chances de sobreviver e prosperar.
“O segredo é aproveitar os melhores ativos do mundo. Onde você precisa contratar o melhor engenheiro… pode ser na América Latina”, afirmou.
Apesar dos esforços protecionistas de vários países e dos riscos de aumento de tarifas nos próximos anos, Gomide disse que a proteção tarifária pode oferecer apenas uma solução temporária.
Como exemplo, citou o caso da China no século XIX, quando o país decidiu se isolar do comércio internacional, uma decisão que resultou no que hoje é conhecido como o “século da humilhação” da China.
“Se países como Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra ou Brasil acham que podem combater a China aumentando as tarifas, eles estão se isolando do comércio global”, disse.
Para Gomide, o livre comércio e a globalização continuam sendo essenciais para a sobrevivência e o crescimento do setor de comércio digital.
Futuro do comércio eletrônico
Gomide também disse acreditar que o comércio digital evoluirá em termos de canais de vendas e da tecnologia que os impulsiona.
Com um foco especial na América Latina, região em que aplicativos como o WhatsApp se tornaram muito importantes, ele disse que as empresas precisam diversificar sua presença nos canais de comunicação que realmente importam para os consumidores.
“Na América Latina, o WhatsApp é um canal que ultrapassa os navegadores tradicionais em importância”, afirmou.
Ele também argumentou que a IA está pronta para desempenhar um papel crucial na evolução desses canais, simplificando as transações e permitindo uma melhor personalização da experiência do usuário.
A visão de Mariano Gomide para o futuro do comércio eletrônico baseia-se, portanto, em mudanças estratégicas e operacionais que empresas ocidentais deveriam adotar com urgência.
Desde a simplificação das operações até a integração de canais globais e o aproveitamento de talentos de todo o mundo, o CEO da VTEX disse acreditar que essas serão as chaves para enfrentar a concorrência das gigantes chinesas e prosperar em um mercado digital em constante evolução.
“A disrupção virá, e aqueles que não estiverem preparados para se adaptar rapidamente serão deixados para trás, o que já está acontecendo”, disse o empreendendor e executivo.
Fonte: Bloomberg Linea