Por Pedro Diniz | Classificada como um dos três setores mais nocivos ao meio ambiente, com emissões anuais de gases do efeito estufa estimadas entre 4% e 8% do total mundial, a indústria da moda parece ter identificado melhor os próprios desafios para responder à emergência climática.
O consumo não diminuiu e, com ele, a emissão de gases aumentou. Estima-se que, neste século, entre 2000 e 2014, o mundo dobrou sua produção e chegou à marca de 100 bilhões de peças produzidas anualmente, de acordo com estudo da consultoria McKinsey & Company. Dados mais recentes de diferentes relatórios ampliam a base para 150 bilhões, com uma média estimada de 42 peças para cada habitante.
Do ponto de vista ambiental, segundo estudo da Fundação Ellen MacArthur, a indústria da moda já emite 1,2 bilhão de toneladas de gases e uma única pessoa usa 36% menos uma peça de roupa antes de descartá-la do que no início dos anos 2000. Ou seja, mais roupas circulam por menos tempo no guarda-roupas.
Por isso, o cerne das mudanças estaria, de acordo com autoridades no tema ouvidas pelo Valor, na capacidade do setor em coordenar boas práticas em toda a cadeia. A começar pela escolha de suprimentos menos agressivos, o uso de métodos de produção que privilegiam o planeta e o bem-estar humano e, na ponta, o estímulo à logística reversa e a destinação correta dos resíduos não recicláveis e do estoque excedente.
Exemplo da tentativa de tornar válida a equação foi a assinatura, em 2019, do pacto entre mais de 30 empresas de moda durante o encontro do G7, em Biarritz, na França. Já surte efeito o intuito inicial de estruturar pilares de sustentabilidade baseados na redução do impacto ambiental e chegar, em 2050, à marca “net zero” – a conta zerada entre os gases emitidos na atmosfera e as ações que removem esses mesmos gases, como o carbono, óxido nitroso e metano.
De acordo com relatório publicado em maio, 52% das mais de 160 marcas incluídas hoje no pacto têm estratégia formal – eram 10% há dois anos – e 69% estão implementando medidas para reduzir o impacto desde o início da cadeia, com escolha de fibras e materiais de baixo impacto na produção de vestuário.
“Existe uma distância muito grande entre entender a sustentabilidade como ‘core business’ e considerá-la um conceito de caridade, como ainda ocorre com muitas empresas”, afirma a professora Naoko Ishii, da Universidade de Tóquio, que foi vice-ministra da Fazenda do Japão.
Ela comandava o Fundo Global para o Meio Ambiente à época do “início dessa batalha”, diz, referindo-se à resistência de companhias em se comprometerem com planos claros em 2019. O fundo foi parceiro da organização Conservação Internacional na estruturação do pacto.
Em passagem por São Paulo na ocasião de um evento dos Guardiões Planetários, grupo de líderes mundiais do qual faz parte, ela conta que um dos entraves para a adesão é a concorrência.
“Honestamente, no caso das empresas japonesas, há um temor de que ser sustentável significa perder mercado. O desafio é fazer esse conceito também ser rentável. Neste momento, estamos comprometidos em fazer com que as empresas tomem a frente e passem a liderar essa discussão”, afirma Ishii.
O novo regramento da União Europeia que obriga grandes empresas instaladas no bloco a provarem a origem ética dos seus produtos desde o início da cadeia de suprimentos começará a valer a partir de 2027. Ele parece sugerir uma virada de chave para que a moda dispa a pecha de vilã da degradação ambiental e passe finalmente a encarar a sustentabilidade como um caminho sem volta.
Na prática, as companhias devem aderir à Diretiva de Devida Diligência em Sustentabilidade Corporativa, que, no caso dos produtos vinculados aos têxteis, inclui implementar um passaporte digital com informações sobre como aquela peça foi feita. Será preciso, por exemplo, provar que a origem da matéria-prima não seja fruto de áreas desmatadas.
O “empurrão” do Parlamento Europeu pressiona fornecedores da cadeia, e é nesse campo que o Brasil procura ser um benchmark possível para o mundo. Varejistas, empresários dos ramos de couro, jeans e algodão, além do horizonte vasto de grifes sustentáveis por essência, podem compor um tecido fabril mais verde para a moda – e o planeta.
O diretor de sustentabilidade das Lojas Renner, Eduardo Ferlauto, diz acreditar que sustentabilidade não pode ser mais produto, mas sim processos e estratégia de longo prazo. “Entendemos que não dá mais para entrar na armadilha de querer fazer tudo ao mesmo tempo. É importante saber o que é prioritário [na companhia] e estimular uma jornada investigativa em toda a cadeia.”
Quase 70% dos fornecedores da Renner estão no Brasil e, desses, 99% são verificados. A companhia assumiu a meta de ser “net zero” em 2030 e reduzir 75% das emissões em cada peça produzida. Atualmente, 80% das peças têm algum nível de baixo impacto. “A transformação tem de ser industrial”, diz o executivo.
Desde dezembro, a Lojas Renner ocupa o topo do ranking global do varejo de moda da Dow Jones Sustainability Index, lista que é referência para empresas ESG, sigla em inglês para o conjunto de boas práticas nos braços ambiental, social e governança.
Na busca por soluções para o produto final, a catarinense Malwee acaba de lançar na semana de moda de Londres uma malha que sequestra carbono do ambiente e, na lavagem, transforma o gás em bicarbonato de sódio. O projeto foi realizado em parceria com a startup Xinterra, de Cingapura.
Outra varejista, a Hering, do grupo Azzas 2154, aposta forte na agenda ESG. A marca conseguiu reduzir o consumo de água em 32% ao eliminar parte das costuras laterais das camisetas e já recicla 100% das sobras de têxteis da sua fábrica em Blumenau, em Santa Catarina.
O CEO da Hering, Thiago Hering, afirma que o pulo do gato tem sido transformar essa nova maneira de pensar a produção em um princípio regulador da companhia.
“O segredo está em não usar a sustentabilidade como restrição, mas sim como oportunidade. O têxtil tem um alto impacto no meio ambiente e, sabendo disso, decidimos acompanhar mês a mês toda a cadeia e ir identificando onde é possível mitigar esse impacto, inclusive premiando a nossa cadeia de fornecimento, do agricultor à confecção, pelas boas práticas [de ESG]”, diz ele.
Fora das vitrines, o Brasil já tem modelos de chão de fábrica bem estruturados na seara sustentável e que, hoje, servem a empresas do mundo inteiro. De acordo com relatório da Boston Consulting Group, o Brasil pode atrair US$ 3 trilhões de investimentos e virar um hub de inovação para liderar a transição climática. Entre as ações, a agricultura sustentável e produtos industriais de baixa emissão são apontados como norteadores.
Um dos maiores produtores de jeans do país, a Vicunha inaugurou o laboratório V. Laundry em sua planta de Maracanaú, no Ceará, para atender às demandas de marcas que procuram desenvolver, por exemplo, bases de jeans lavadas a laser. Considerado vilão do meio ambiente, a lavagem, no método padrão seguido pelas fábricas, costuma consumir mais de 5 mil litros de água numa única peça.
Na ocasião do lançamento do laboratório, o presidente do conselho de administração da Vicunha, Ricardo Steinbruch, disse ao Valor que sente os efeitos da legislação europeia nos pedidos das empresas do continente. “Aqui, ainda não tanto. Isso [a aplicação de tecidos sustentáveis na produção] depende muito da condição econômica da população, porque ainda é mais caro para uma empresa comprar [insumos menos agressivos]. Mas já há sinais, principalmente da Europa, de que o assunto da sustentabilidade não tem mais volta”, diz Steinbruch.
Para ele, as certificações de procedência serão cada vez mais essenciais nesse contexto, e a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), a qual atualmente preside, estuda formas de construir os próprios pilares para emitir um certificado para os associados.
Se na produção ainda falta muito, o Brasil se firmou como celeiro da agricultura sustentável em se tratando do algodão. A pluma que nasce naturalmente colorida no interior da Paraíba é o forte da empresária Francisca Vieira, da grife Natural Cotton Color, e a branca, a mais procurada pelos parceiros dela no projeto de estímulo aos agricultores de algodão orgânico da região, as têxteis Dalila Têxtil e Tecidos Cataguases.
Além de investir em descaroçadeira de plumas para a cooperativa, o grupo compra todo o algodão colhido ali. “Vendia-se dez toneladas de algodão, chegamos a 135 toneladas, e as plantações se expandiram para outros estados. Há contratos assinados para comprarmos toda a produção e cobrir os custos de impostos, que não vão para eles [agricultores]”, diz Vieira.
Segundo ela, que mais uma vez desfilou neste mês, durante a semana de moda de Milão, uma de suas coleções construídas com esse algodão colorido, a moda tem de aprender a não só comprar dos fornecedores, mas ter responsabilidade com eles. “A maior parte do ‘problema’ da degradação ambiental no mundo, hoje, está nesse padrão de não respeitar as pessoas que fazem parte dessa base”, diz.
De olho no mercado europeu, que já compra dela uma parte dos tecidos feitos com esse algodão, a grife está em processo de certificação para ganhar o selo GOTS (Global Orgânico Textile Standard), considerado um dos mais difíceis de conquistar e, segundo ela, um padrão para grifes do mercado de luxo.
Na mais recente feira Première Vision, de Paris, talvez o salão de maior prestígio do setor têxtil mundialmente, grifes estrangeiras mostraram interesse na sarja que combina algodão orgânico colorido e seda, criada por ela em parceria com a tecelagem paranaense O Casulo Feliz.
O mercado de luxo já reconhece a expertise brasileira em criar soluções sustentáveis para a produção dos seus artigos. O curtume fluminense Nova Kaeru é bom exemplo.
O segredo está em não usar a sustentabilidade como restrição, mas sim como oportunidade”
— Thiago Hering
Foi da fazenda do empresário Eduardo Filgueiras que partiram couros feitos a partir das peles de pirarucu pescados na Amazônia para servirem de base das peças de grifes como Loewe, Louis Vuitton, Christian Louboutin e Rick Owens. No Brasil, esse mesmo couro, de baixo impacto devido ao fato de ser curtido naturalmente, sem cromo, ou com uma combinação de químicos biodegradáveis, é consumido por marcas como Osklen, e Misci.
“Quando comecei, há 30 anos, ninguém falava em sustentabilidade e os pedidos eram isolados. Hoje, não há pirarucu suficiente para atender à demanda do mercado”, afirma ele, frisando que toda a pesca já é controlada pelo Ibama para não desestabilizar o ecossistema amazônico. Só neste ano, Filgueiras estima, deve enviar 50 mil peles curtidas à moda mundial. O beLeaf, uma base com aspecto de couro produzido a partir da folha orelha de elefante, é outro material criado por ele que tem feito sucesso no mercado.
Essas alternativas ao couro bovino ainda são assuntos marginais dentro das empresas de moda, diz ele, “porque a maior parte do negócio delas está nas peças de couro”.
“Não acho que haverá uma substituição, até porque o couro é um subproduto do boi e, do meu ponto de vista, por isso é sustentável. A discussão tem de estar no manejo do curtimento”, afirma Filgueiras. E acrescenta que “as grifes menores, que não trabalham com escala, testam mais esses novos conceitos”.
A Agência Brasileira de Promoção a Exportações e Investimentos, Apex-Brasil, exibiu neste mês, em Milão, o projeto Awake, com 20 empresas de jovens criadores de moda cuja base da confecção de suas ideias é a sustentabilidade, entre roupas e acessórios.
Um dos curadores do projeto é Jonathan Marques, brasileiro radicado em Londres e fundador do marketplace de moda sustentável ADN Reset. Para ele, o gargalo para o desenvolvimento dos pilares de sustentabilidade na moda ainda é a falta de gestão eficaz dos negócios.
“Quando criei a plataforma, 25% das marcas fecharam as portas antes do site entrar no ar. Já é difícil manter um negócio pequeno, e, como os custos para alavancar uma oferta sustentável são maiores, os novos designers ficam desestimulados”, diz Marques.
Por isso, abrir canais de venda por meio de projetos internacionais ou plataformas dedicadas à sustentabilidade pode servir de estímulo para os criadores, segundo Marques. Hoje, o marketplace fundado por ele em 2022 abriga mais de mil produtos de 28 marcas com origem verde.
O estímulo ao consumo sustentável e, por conseguinte, à própria indústria de moda é um assunto que, de acordo com a nova diretora de sustentabilidade do grupo Guararapes, Taciana Abreu, já poderia ser escalado. Pontos de coleta de roupas usadas em lojas, por exemplo, “poderiam, no curto prazo, estabelecer a logística reversa como comportamento de consumo”.
“O que temos de avançar imediatamente é como comunicar a sustentabilidade para as pessoas. As queimadas no país e a tragédia climática no Rio Grande do Sul pegaram todo mundo”, afirma a executiva e ex-head de sustentabilidade do grupo Soma.
“Sabe aquele ditado, ‘Se não é pelo amor, é pela dor’? A verdade é que o tempo do amor se esgotou, e as marcas precisam, além de tomarem consciência, mostrar para o consumidor que temos um problema real [a urgência climática]. Senão, a dor chegará para todos”, diz Abreu.
Fonte: Valor Econômico