Por Adriana Mattos | Anunciado com estardalhaço pelo governo federal e pelas empresas um ano atrás, o acordo de produção entre a chinesa Shein e a Coteminas, no Estado do Rio Grande do Norte (RN), não saiu do papel como o planejado. As fabricantes locais de têxteis, apresentadas como as primeiras parceiras do projeto, num suposto movimento de maior nacionalização da Shein, dizem que as conversas pararam entre setembro e outubro de 2023.
Empresas ouvidas pelo Valor relatam mudanças no contrato pela Shein, após o anúncio do plano, em Brasília, e que inviabilizaram a venda. Ainda citam a piora da crise financeira da Coteminas, que já vinha antes da apresentação do projeto. Segundo memorando assinado entre as companhias em junho de 2023, duas mil confecções que são clientes da Coteminas passariam a ser fornecedoras da Shein para atender o Brasil e a América Latina.
“Isso [o acordo] nem começou. Estamos na mesma situação em que estávamos”, diz Ronaldo Lacerda, sócio-diretor da Cabugi Confecções, de Tangará (RN), localizada no semiárido nordestino.
“Mandamos as amostras para as empresas, elas até foram aprovadas na China, tínhamos uma expectativa, mas em outubro nos falaram que os custos para produção no Estado eram altos e não valia a pena ir adiante”, afirmou.
A Cabugi era uma das fabricantes que integravam o primeiro grupo de participantes do projeto, que significava “mais cidadania e mais oportunidades de emprego para as diversas regiões do Estado”, afirmava Fatima Bezerra, governadora petista do Rio Grande do Norte, em postagens nas redes sociais, ao comemorar o anúncio, com fotos ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em junho de 2023.
Influenciadores e políticos do PT reproduziram as mensagens e mencionaram, inclusive, a criação de uma fábrica da Shein no país. Ainda estiveram no encontro com o presidente, o empresário Josué Gomes, presidente da Coteminas, e Marcelo Claure principal executivo da Shein na América Latina. Gomes é filho de José Alencar, vice-presidente da República na chapa de Lula entre 2003 e 2010.
Procurada pelo Valor, a Coteminas diz que etapas do plano não foram concluídas, mas ainda buscará retomar o projeto. A secretaria de desenvolvimento econômico do Rio Grande do Norte confirma que o plano não avançou como o previsto, mas que trabalha para que volte a ganhar força. A governadora do RN e a Presidência da República não se manifestaram. A Shein decidiu não comentar.
A Cabugi Confecções fechou um acordo inicial, em meados de 2023, com a Coteminas, que fazia a ponte junto à Shein. O último contato com a empresa se deu em outubro do ano passado, quando o retorno para uma parceria foi negativo.
Tábua de salvação
Um ano atrás, Lacerda disse, em entrevista, que acreditava que a Shein poderia ser a “tábua de salvação” do negócio, considerando a alta ociosidade fabril do setor. “Hoje, a venda para a Guararapes é que nos tem ajudado”, diz.
A Guararapes é dona da Riachuelo, do empresário Flávio Rocha, um dos nomes do varejo nacional contrários à isenção de impostos de importação concedida às plataformas estrangeiras, como Shein e AliExpress, entre 2023 e julho de 2024, nos envios de até US$ 50.
Em outra fabricante local, a Zaja Confecções, sediada em Cerro Corá (RN), também no grupo dos primeiros fornecedores integrantes do projeto, houve conversas com a Coteminas e diretamente com a Shein, mas a plataforma asiática teria mudado as condições comerciais relacionadas à compra dos produtos, e isso inviabilizou o negócio.
Outra empresa ouvida, a Nobre Confecções, de Jardim Seridó (RN), também relata alterações no modelo de compra dos produtos pela Shein após início das tratativas. Janúncio de Azevedo, diretor da empresa, acionou de forma direta a plataforma chinesa.
“Chegamos a fornecer alguma coisa no ano passado, e então parou. Até queremos retomar, mas quando estávamos começando, eles nos ligaram mudando o ‘deadline’ de entrega de 60 dias para 30 dias. E tendo ainda que arcar com custos da matéria-prima e da logística do produto, aí fica inviável”, diz.
Fabricantes desse setor têm dificuldade de fazer todas as entregas dentro de determinados prazos, considerando o fluxo atual de compras de insumos e pagamentos, por conta das limitações de caixa e crédito.
Calça jeans a R$ 35
De acordo com José Medeiros de Araújo, fundador da Zaja Confecções, a empresa chegou a produzir cerca de 60 amostras de peças para envio, para avaliação inicial, mas também foi informada, semanas depois, sobre a mudança de prazo para 30 dias.
A entrega ainda teria que acontecer em São Paulo, com preços de calça jeans, por exemplo, entre R$ 35 e R$ 50 por peça.
Segundo ele, isso ficava muito abaixo do que preciso para pagar custos e manter a rentabilidade da operação.
“A sensação que temos é que eles anunciaram esse acordo só para dizer que estavam produzindo aqui, aí [a Shein] mudou as condições sabendo que não íamos conseguir atender”, disse o empresário.
A Zaja Confecções fica em Cerro Corá uma das cidades foco desse projeto de ampliação de emprego, na região do Seridó, com 24 municípios, onde há fábricas instaladas com capacidade ociosa girando entre 30% e 40% em determinados períodos do ano.
O projeto foi anunciado dentro do Programa de Industrialização do Interior (Pró-Sertão), criado em 2013 por meio de parcerias entre o governo do Estado do Rio Grande do Norte, Fecomércio, Senai e prefeituras.
Na época do anúncio a Fiern, a federação das indústrias do Estado, chegou a anunciar uma parceria com o Senai local para capacitar dois mil profissionais de costura para atender a esta demanda específica. Disse que isso levaria “crescimento das oficinas de costura do Pró-Sertão”, com a entrada de “uma das maiores empresas do segmento no mundo” no Estado.
No entanto, não houve finalização deste acordo com o Senai, disse a federação, após ter sido questionada pela reportagem, “e consequentemente não houve contratação do Senai para tal finalidade”. Mas ressaltou que quatro mil pessoas foram capacitadas até o momento, em contratos com outras companhias.
Acordo pré-portaria
A parceria entre Shein e Coteminas foi anunciada num período de forte pressão das plataformas contra a “taxação das blusinhas”, que era defendida pelos varejistas nacionais. Os marketplaces asiáticos eram contra o imposto de importação de 60% em envios de até US$ 50 de empresas para pessoas físicas.
O acordo entre Shein e Coteminas e o fim da alíquota de 60% pegou o varejo nacional de surpresa. O anúncio, em Brasília, ocorreu no dia 29 de junho de 2023, e a portaria do Ministério da Fazenda com a isenção de imposto, que beneficiou as empresas estrangeiras (habilitadas no programa “Remessa Conforme”) foi publicada um dia depois, em 30 de junho.
Na época, a isenção foi mantida pelo presidente Lula, apesar das divergências entre Lula e Fernando Haddad (Fazenda), este favorável a uma alíquota intermediária.
Há um entendimento entre as empresas que a crise na Coteminas influenciou na parada do projeto.
Uma empresa controlada da Coteminas obteve empréstimo de US$ 20 milhões com a Shein em 2023 (cerca de R$ 100 milhões na época), após o fechamento da parceria. Os recursos teriam ido para pagamento de dívidas, segundo fontes.
A busca dos recursos e do acordo entre as empresas ocorreu antes do auge da crise na Coteminas, cuja recuperação judicial foi protocolada junto à Justiça em maio de 2024, mas num período em que a empresa já estava alavancada e com vendas em queda, segundo balanços da Coteminas.
Perguntada sobre o projeto no RN, a Coteminas informa que desenvolveu com algumas confecções do Pró-Sertão itens para fornecimento à Shein. Diz que os itens atenderam aos parâmetros de qualidade e custo da varejista global. Mas afirma que a etapa de lavação e acabamento final das peças não foi concluída por problemas internos da Coteminas. “Assim que a companhia superar o atual momento de recuperação financeira, a empresa voltará a destinar esforços para o desenvolvimento e fornecimento de itens para a Shein.”
Neste momento, segundo relata o processo de recuperação judicial da Coteminas, a companhia está em negociações com fundo de investimento Odernes relativo às obrigações de uma emissão de debêntures de R$ 175 milhões que não foram cumpridas.
A Justiça deu novo prazo para que as partes busquem um entendimento até a data de hoje (10).
Estado quer opção à Shein
O secretário de desenvolvimento econômico do RN, Silvio Torquato, diz que a parceria entre Shein e Coteminas “não evoluiu, como se esperava”. Torquato fez três visitas às fábricas e confecções, inclusive com executivos das duas empresas, e colocou o Estado à disposição de algum apoio em termos de dados e informações.
“Há um problema de custo. A nossa dificuldade não é só fazer peças mais competitivas, mas ter fábricas locais de botão, ziper etc, que forneçam localmente. No fim, muita coisa acaba vindo da China mesmo”, afirma.
Questionado se, antes do acordo, a Shein já sabia das questões locais menos competitivas do Estado, o secretário evitou comentários, e disse que o Rio Grande do Norte ainda buscará acordos com outros marketplaces estrangeiros, no lugar da Shein.
Em 2023, o acordo foi apresentado dentro do plano inicial de isenção de impostos para as plataformas estrangeiras, que começou poucas semanas depois, em agosto, até que a produção nacional ganhasse força.
O anúncio em Brasília ocorreu em paralelo a um plano da Shein de geração de 100 mil empregos indiretos no país em três anos — e considerando este primeiro ano, teriam que ter sido gerados cerca de 30 mil novas vagas.
Sobre a geração de emprego, todas confecções ouvidas pelo Valor não fizeram contratações por conta desse projeto. “Temos 50 funcionários hoje, e o que a gente tem contratado é por causa do aumento de venda para a Guararapes, que está a todo vapor, graças a Deus”, diz Lacerda, da Cabugi.
Fonte: Valor Econômico