Por Adriana Mattos | Um combo de medidas jurídicas negativas para as redes de comércio começou a bater no bolso do consumidor, e criou uma nova pressão de preços no mercado.
Alterações inesperadas em regras tributárias, por parte do governo e do Supremo Tribunal Federal (STF), aprovadas no fim de 2023, além do aumento do ICMS em 11 Estados a partir de janeiro, levaram as companhias a repassar parte ou a totalidade dessa conta aos clientes – e esse movimento se estende também para 2024.
Governos estaduais e federal precisam de recursos para conter perdas de receita de 2023 e reduzir rombo das contas públicas, repassando parte dessa fatura às companhias – que por sua vez, transferem parcela disso aos consumidores para defender as margens.
Com base em pesquisa da CNC, confederação nacional do comércio e turismo, o consumidor já vê o momento atual como ruim para compra de bens duráveis, como TVs e refrigeradores, devido ao preço maior e ao crédito caro. Março teve o mais baixo nível de confiança nesse setor desde outubro.
Houve duas mudanças centrais nessa discussão, ambas complexas em termos jurídicos, e aprovadas no apagar das luzes de 2023: o novo entendimento sobre o pagamento do “Difal”, o diferencial de alíquota de ICMS, e a lei das subvenções de investimentos.
Isso acaba virando uma dor de cabeça especialmente para o comércio, mais exposto às medidas. A conta do Difal, especificamente, começou a bater nas varejistas on-line já no ano passado.
Na visão de Felipe Tavares, economista-chefe da CNC, “o problema é que o varejo está na linha de frente e, se ele sofre, a ponta final, que é o cliente, vai sofrer na mesma medida” se não há espaço nos negócios para absorver o aumento dos custos tributários.
“Costumo dizer que imposto da empresa, quando aumenta, quem paga é o cliente”, diz Carla Hamada, coordenadora do Comitê Tributário da Abaas, a associação dos atacados de autosserviço.
No caso das subvenções, serão adicionados R$ 35 bilhões ao cofre do governo federal em 2024, segundo o ministério da Fazenda. Com o Difal, a conta para os grupos varia de R$ 9,5 bilhões a R$ 10 bilhões, e se referem a 2022, o ano com o valor em aberto por causa de uma discussão jurídica. Isso já vem sendo pago aos Estados.
Já a elevação da alíquota do ICMS transfere outros R$ 9,2 bilhões anuais a mais aos caixas de 11 estados. A mudança na taxa passa a valer de janeiro a abril, a depender da região do país.
Empresas como Magazine Luiza, Casas Bahia, Arezzo, Mateus e Assaí informaram a analistas, em teleconferências de resultados nas últimas semanas, que já sentiram ou repassaram aos consumidores os efeitos de uma dessas três mudanças nos últimos meses (alta do ICMS, revisão do Difal ou a limitação das subvenções).
Sobre as subvenções, trata-se de uma espécie de subsídio do governo. É um benefício tributário que reduz ou isenta as companhias de pagamento de tributo como contrapartida a investimentos. Pode ser a abertura ou expansão de fábricas, de centros de distribuição ou compras de maquinários, por exemplo.
Até 2023, as empresas abatiam esses incentivos do pagamento de imposto de renda, melhorando o lucro líquido. Mas a nova lei, sancionada em 29 de dezembro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, exclui benefícios vinculados a gastos de custeio, focando em incentivos que efetivamente promovam investimentos produtivos.
Se o varejo sofre, a ponta final, que é o cliente, vai sofrer na mesma medida” — Felipe Tavares
É uma forma de reduzir distorções praticadas, o que por fim, acaba engordado o caixa da União, mas afeta o resultado dos grupos.
Em relatório em dezembro, analistas da XP projetaram necessidade de alta de até 3% nos preços das varejistas que o banco cobre, em média, para compensar recuo de 8% a 15% no lucro líquido pela nova lei de subvenções. Isso ocorreria ao se considerar uma queda de 50% a 100% no benefício fiscal.
A respeito do Difal, ele é usado para dividir a arrecadação do ICMS entre o Estado de origem da empresa e o do consumidor.
Exemplo: um produto é vendido a partir de um Estado com 15% de ICMS, e vai para outro, com 18%. O crédito relativo aos três pontos percentuais são repartidos entre os Estados. Isso é mais comum nas operações de redes on-line.
Ocorre que havia um questionamento na Justiça se as empresas deveriam arcar com o Difal desde abril de 2022 ou após 2023, como as empresas defendiam junto ao STF. No fim de novembro, o Supremo, numa virada de votos surpreendente, decidiu que valeria após 2022, pegando o setor de surpresa.
Segundo Marcelo Roncaglia, sócio da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados, antes do julgamento do STF, pelo grau de incerteza jurídica, varejistas menores acabaram se adequando e recolhendo o imposto, mas as grandes entraram com liminares e depositaram em juízo. Com a decisão final, passam a ter que pagar o imposto relativo a 2022.
“O triste é que a população mais pobre acabam sendo penalizada, porque o imposto sobre consumo tem participação maior no orçamento dessas classes do que entre os mais ricos”, diz ele.
Parte das grandes empresas não havia provisionado a soma, o que exige a baixa após a decisão no STF. Renner e Magazine Luiza estão nesse grupo. Os repasses aos produtos ganharam força após a segunda metade de 2023.
Num varejo com ambiente competitivo forte, esses ajustes em preços perdem fôlego. O Brasil é um país de comércio pulverizado e alta concorrência, o que ajuda a acomodar repiques de preços. Ocorre que crises constantes (como de 2015 a 2016 e após 2020) enfraquecem os negócios de forma generalizada e a capacidade de absorções das altas pelos grupos. E é esse o caso neste momento.
“Essas mudanças sem qualquer previsão geram uma confusão tributária num caos já instalado pelo manicômio jurídico que as empresas enfrentam no país. Isso só gera incerteza e custo maior”, diz Tavares, da CNC.
No Magalu, com os juros altos e o aumento dos impostos, principalmente com o Difal, foram adicionados R$ 3 bilhões para os custos da companhia em 2023. Cerca de R$ 1,5 bilhão disso foi o Difal, e o restante foi despesa financeira, com a alta dos juros. “Se a gente dividir por trimestre, são cerca de R$ 300 milhões que não tínhamos recolhido em 2022, que passamos a ter que recolher em 2023. Então, teve um aumento muito significativo dos preços, para defendermos rentabilidade”, disse a analistas Frederico Trajano, CEO da rede, em março.
Foram três trimestres para repassar tudo, numa soma total de repasse para preços de cerca de R$ 1 bilhão em 2023. Sobre as subvenções, não houve efeito na rede.
Na Casas Bahia, a empresa contabilizou o efeito do Difal relativo a 2022 nos resultados e fez o repasse integral aos preços.
De acordo com Tavares, da CNC, pode não ser possível identificar agora essa pressão nos indicadores de inflação. Isso porque são efeitos que se espalham dentro de categorias de duráveis e semiduráveis, com peso menor no índice.
Nas redes, existe um aumento nos preços dos eletrodomésticos em cinco dos últimos seis meses, segundo IPCA do IBGE, e em quatro dos últimos seis meses na categorias de roupas. Ambos foram segmentos afetados pelo Difal.
Já as subvenções impactam o setor de atacado de alimentos, que fizeram investimentos robustos de três anos para cá.
Em janeiro, a Genial Investimentos mencionou em relatório os efeitos na rede de atacarejo Assaí. Disse que o reconhecimento das subvenções reduziu o pagamento de imposto e contribuição social (CSLL) em R$ 248 milhões em 2022, e esse ganho acaba.
Para a Empiricus, o fim desse efeito pode ser compensado por alta de preços em 2024, porém menor que o de seus competidores.
No setor de moda, o diretor financeiro da Arezzo&Co, Rafael Sachete, disse em evento, na semana passada, que as redes em geral sentiram, ao mesmo tempo, a nova regra do Difal e a lei das subvenções.
No caso da Arezzo, que se uniu ao grupo Soma, com as alterações nas regras, o grupo segurou aquisições, enxugou estrutura para melhorar margem. E em 2024 isso continua, para “tentar não levar tanto para aumento de preço”.
Ele afirma que houve aumento de preços para cobrir parte do Difal, e a ideia é não ter maiores reajustes para nos se manterem competitivo, e ganhar eficiência em despesas vendendo mais.
“Agora, esses ganhos sobre despesas não são permanentes. Então o ganho tem que vir de duas formas, por aumento de receita ou se começa a subir preço”, disse. “A cabeça para 2024 ainda é elevar a receita, mas podemos ter um limite nisso em algum momento”.
Ainda há outras medidas tomadas que já chegaram às tabelas neste ano, como a elevação da alíquota de ICMS dos estados.
Segundo a LCA Consultores, o IPCA deve ser impactado em 0,10 ponto com a alta do imposto, passando de 4,10% para 4,20% no ano.
Estudo feito pela Fecomércio de Pernambuco aponta que alimentos, bebidas, vestuário e calçados serão os mais afetados pela elevação – ICMS passa de 17% a 22%, a depender do Estado. Em farmácias, a alta nos preços foi automática após janeiro, segundo a Abrafarma, que representa as lojas, porque os estoques estão enxutos.
Ao se olhar um pouco mais à frente, há outras surpresas que podem aparecer e tornar essa conta mais cara ao consumidor.
Há um debate em andamento nos Estados para aumento da alíquota de ICMS nas compras internacionais dos brasileiros, nos envios de até US$ 50 feitos em sites e “apps” estrangeiros. O imposto pode subir de 17% para 25% sobre a venda, pelas conversas iniciais.
Atualmente, é o consumidor, na figura de importador do produtos nos marketplaces, que arca com esse ICMS em sites como AliExpress, Amazon e Shopee, pagando direto no cartão, pix ou boleto.
Essa taxa de 17% é cobrada desde agosto pelas empresas que fazem parte do programa Remessa Conforme, que só inclui sites internacionais, e era zerada antes disso. Agora, a alta menos de um ano depois de criada a alíquota, deve ser tema de debate nas Assembleias Legislativas neste semestre.
Aumentos do ICMS são uma forma de os Estados tentarem recompor seus orçamentos, afetados desde a pandemia.
Procuradas, as redes Casas Bahia, Magazine Luiza e Arezzo/Soma não se manifestaram, para além das informações já públicas. O Assaí diz que faz um controle rígido de despesas, citando o balanço de outubro a dezembro, e busca constantemente oportunidades de melhorias em eficiência. Afirma que repasse de alta de ICMS reflete diretamente no preço para o consumidor, uma vez que a indústria já contempla a alteração do imposto na venda a varejista.
Fonte: Valor Econômico