Por Daniele Madureira | “Two sinking ships don’t make a floating one.” A expressão em inglês, que ao pé da letra significa “dois navios afundando não fazem outro flutuar”, ajuda a entender os caminhos para o varejo brasileiro em 2024.
Depois da bilionária operação envolvendo Soma e Arezzo nos últimos dias, houve dúvidas se mais varejistas brasileiras poderiam trilhar o caminho das fusões e aquisições.
A princípio, essa poderia ser uma alternativa para que as empresas retomassem o fôlego após o “efeito Americanas”, cujo escândalo contábil fez o crédito minguar na praça em 2023, justamente em um momento de retração nas vendas.
Mas, para especialistas ouvidos pela Folha, no geral, é mais fácil o mercado assistir a novos pedidos de recuperação judicial de varejistas do que grandes operações de fusão e aquisição —ainda que estas últimas não estejam descartadas. Isso porque o nível de endividamento das grandes empresas continua muito alto.
Mesmo com a redução das taxas de juros, acompanhada do aumento dos níveis de emprego e renda, o que poderia aliviar o caixa das empresas e reativar o consumo, o ritmo de recuperação ainda é muito lento para enfrentar o estrago dos últimos anos, envolvendo Americanas, Covid-19 e má decisões de gestão.
“Diferentemente de Soma e Arezzo, que são empresas financeiramente saudáveis, a maior parte das varejistas está com uma dívida alta. Neste sentido, se juntar dois, vira meio”, diz Daniel Calori, sócio da consultoria Íntegra.
Folha Mercado
Receba no seu email o que de mais importante acontece na economia; aberta para não assinantes.
Levantamento feito para a Folha pelo consultor de dados financeiros de mercado Einar Rivero apontou a evolução de alguns dos principais indicadores de 15 varejistas listadas em bolsa, dos segmentos alimentar, eletrodomésticos e têxtil, entre 2019 (antes da pandemia) e os nove primeiros meses de 2023 (o balanço do último trimestre ainda não foi publicado).
Das 15, apenas 5 apresentaram redução da dívida líquida no período: Grupo Pão de Açúcar (por causa da separação do Assaí), C&A, Renner, Grazziotin e Veste (antiga Restoque, dona da Dudalina).
“Isso nos leva a crer que, dentre o varejo em geral, o segmento têxtil está com os indicadores menos ruins”, diz Rivero.
Ainda assim, a Marisa apresenta sucessivos prejuízos nos últimos anos. No início de 2023, começou mais uma reestruturação. Neste mês, anunciou a chegada de Andrea Menezes como presidente —a sétima a ocupar o comando da rede nos últimos oito anos.
Entre as companhias abertas, apenas duas tiveram uma evolução positiva dos resultados nos nove primeiros meses de 2023 na comparação com igual período do ano anterior: o Grupo Mateus, dono de uma forte operação de atacarejo no Nordeste, que viu o lucro líquido aumentar 11%, e a Veste, que deixou prejuízo para lucro de R$ 13 milhões no período.
Na opinião de Calori, o varejo, especialmente o segmento de eletrodomésticos, ainda é muito dependente da antecipação de recebíveis (quando o banco cobra juros para antecipar o pagamento de vendas parceladas, por exemplo).
Esse tipo de operação é muito sensível às taxas de juros. Hoje a Selic está em 11,25%. No começo do ano passado, o patamar era 13,75%, ou seja, continua em dois dígitos, embora haja a sinalização de queda.
Do ponto de vista da composição de renda do trabalhador, o avanço também é gradual.
Segundo os dados mais recentes da pesquisa Pnad Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a renda média real do brasileiro em 2023 foi de R$ 2.979, alta de 7,2% sobre os R$ 2.780 do ano anterior. O nível de desemprego caiu a 7,8% no ano passado, o patamar mais baixo desde 2014.
A avaliação é que os bons sinais ainda são incipientes para levar o varejo a uma reação. A CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) projeta um avanço modesto nas vendas deste ano: alta real de 1,1% em comparação a 2023.
“Se a economia reagir de maneira mais rápida, as empresas que não estiverem em uma situação ruim podem ensaiar operações de fusão e aquisição”, diz André Pimentel, sócio da Performa Partners.
“Mas eu acredito que a situação de muitas companhias pode se agravar e então veremos uma nova onda de recuperações judiciais ou extrajudiciais neste ano”, afirma.
Os acionistas preferem partir para um processo de recuperação judicial, mesmo que isso envolva muito tempo e risco, porque têm a expectativa de aumentar o valor da empresa [valuation] ao final, diz o especialista. “Em uma fusão, o valuation cai.”
Pimentel chama a atenção para o fato de que nem toda recuperação judicial se justifica.
“Muita empresa tem controladores ou principais acionistas que vêm exercendo o controle da gestão há tempos, permitindo com que se tomem muitas decisões erradas, que comprometem a sustentabilidade do negócio”, diz.
“Mas na hora do aperto preferem ‘socializar’ os prejuízos, em vez de comparecerem com capital. Para os credores, fica a sensação de calote.”
Número de recuperações judiciais explode em ano de operações ‘midiáticas’
Em 2023, o número de recuperações judiciais subiu 69%, para 1.405 pedidos, segundo o Indicador de Falência e Recuperação Judicial da Serasa Experian, o quarto índice mais alto desde o começo da série, em 2005.
“Mas em nenhum outro ano houve tantas recuperações judiciais tão midiáticas”, diz o advogado Filipe Denki, da Lara Martins Advogados, especialista em recuperação judicial.
Denki se refere aos processos envolvendo Americanas, Oi, Petrópolis, Light, 123milhas e SouthRock (dona da Starbucks) —e em menor medida M.Officer, Raiola, Grupo Dok (Ortopé e Dijean) e Amaro (extrajudicial).
“A alta taxa de juros, o crédito escasso e caro, o crescimento econômico tímido e os efeitos da crise causada pela Covid foram ingredientes para o aumento de pedidos de recuperação judicial”, diz.
“O cenário econômico é propício para que o número de pedidos continue em alta e possa até bater recorde em 2024.”
Na opinião do advogado tributarista Diogenes Mizumukai Rodrigues, sócio da BMFK Sociedade de Advogados, o varejo tradicional vai ser obrigado a procurar alternativas de sobrevivência em 2024, sob o risco de vivenciar novas recuperações judiciais da magnitude da Americanas.
“O varejo precisa desinchar, são muitos custos fixos, como estoque, pessoal e loja, à espera de uma demanda que não vem”, diz Rodrigues, que chama a atenção para a necessidade de se obter maior eficiência operacional e tributária, indo além da redução de custos.
“Não por acaso grandes marketplaces como Mercado Livre e Amazon decolam, enquanto o varejo tradicional se endivida”, diz.
“Eles têm um exército de sellers [vendedores] na base, para quem pagam uma comissão entre 12% e 15%. Não acumulam estoques, em negociações alongadas com fornecedores, como faz o varejo. Eles administram os estoques e são pagos para isso pelos próprios sellers”, afirma.
O consultor Alberto Serrentino, sócio da Varese Retail, diz acreditar que podem haver novos pedidos de recuperação judicial no varejo neste ano. “Ainda existem empresas com uma estrutura de capital muito pressionada, pouco saudável”, diz. Mas esta não será a regra, na sua opinião.
“Há uma expectativa de retomada no consumo em especial a partir do segundo semestre, caso a Selic continue em queda. O crédito está voltando, tanto para o consumidor, quanto para as empresas”, afirma.
Com isso, algumas varejistas tendem a voltar a investir na sua expansão. “Não será um período eufórico, mas certamente vamos ter o melhor ano dos últimos três.”
Para o especialista, a união entre Arezzo e Soma deve provocar reflexões especialmente no setor de moda, justamente para que eventuais players não se tornem alvo de futuras aquisições.
“Todas as empresas estão determinadas a reduzir a sua alavancagem [endividamento] para terem maior fôlego, mais caixa”, diz. “O mercado deve ver neste ano mais operações de follow-on”, afirma, referindo-se às ofertas de ações de empresas que já têm ações em bolsa, para levantar capital.
Para André Pimentel, vontade não deve faltar para os follow-on. “Mas como precificar a ação de uma empresa em dificuldades? Há alguns meses, a Casas Bahia passou por um fiasco”, diz ele.
Em setembro, a varejista esperava levantar R$ 981 milhões na operação, mas conseguiu R$ 622 milhões, dada a desconfiança do mercado.
Eugênio Foganholo, da Mixxer Desenvolvimento Empresarial, também diz acreditar que possam haver novas fusões e aquisições. “Mas existem barreiras emocionais no varejo que costumam gerar dificuldades. Em geral, são empresas de dono”, diz.
“Por outro lado, o varejo está andando de lado: os juros ainda altos, consumidor não voltou plenamente às compras, enquanto algumas cadeias produtivas, como na moda, estão se transformando”, diz. Mas, mesmo em uma fusão, as operações precisam estar minimamente saudáveis, lembra.
“Caso contrário, é a união do roto e do esfarrapado, como quando a Cultura comprou a Fnac no Brasil.”
Fonte: Folha de S. Paulo