Por Anaïs Fernandes | O crescimento de agregados de renda importantes para a economia ajuda a explicar a força e a surpresa com o desempenho da atividade e, especificamente, do consumo das famílias brasileiras no ano, como o próprio Banco Central tem destacado, ao se preocupar com os impactos do movimento sobre a inflação.
Fernando Montero, economista-chefe da Tullett Prebon, observa que a Renda Nacional Disponível Bruta das Famílias (RNDBF) e sua versão restrita, divulgadas pelo BC, crescem, em termos reais (descontada a inflação), na casa de 7% ou até mais em 2023, em relação ao mesmo período do ano passado: 7,7% no trimestre móvel até agosto, 7,9% no acumulado do ano e 9,1% em 12 meses até agosto, no conceito restrito, destaca Montero.
São taxas muito elevadas em agregados que ocupam fatias enormes – mais da metade – do PIB, diz Montero.
Os agregados do BC consideram a remuneração do trabalho, benefícios previdenciários, transferências de programas sociais e outras fontes, como aluguéis e aplicações financeiras – a RNDBF restrita exclui esses “outros”.
São taxas muito elevadas em agregados enormes no PIB”
A diferença para o cálculo da Tendências Consultoria de massa de renda total das famílias, por exemplo, é que o BC considera a renda efetivamente recebida, enquanto a Tendências usa a renda habitual, explica Alessandra Ribeiro, sócio e diretora da Tendências. Além disso, diz, o BC calcula a renda disponível, ou seja, descontados os impostos.
“Mas a direção dos movimentos é a mesma, de números bem substanciais para o ano”, afirma Ribeiro. A Tendências espera um crescimento de 6,2% da massa total em 2023, vindo já de 6,5% em 2022.
Na ata de sua última reunião, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central listou a “elevação da renda disponível” como um dos motivos para o crescimento ter se mostrado mais resiliente nos últimos trimestres. Uma possibilidade, disse, “é que a elevação de renda disponível, seja em função do dinamismo do mercado de trabalho, da queda de preços de alimentos ou de programas de transferência de renda, também tenha fornecido algum suporte para o consumo”.
O Copom se deteve sobre esse tema, identificado como “muito relevante”, segundo a ata.
Ainda que a elevação dos programas de transferência de renda já estivesse embutida nas projeções dos economistas desde a campanha eleitoral do ano passado, a mudança de percepção, entre os beneficiários, de um auxílio temporário para um suporte permanente é uma das nuances que podem explicar a surpresa com o consumo, diz Marco Caruso, economista-chefe da equipe do PicPay (antes Original).
“Nesse mesmo escopo, dados do Ipea mostram que a desinflação tem sido maior para a baixa renda, que tem maior propensão a consumir”, afirma Caruso.
Montero também destaca o processo de desinflação, em um regime de rendimentos indexados como no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, o valor da cesta básica, calculada pelo Dieese, caiu pelo quinto mês seguido, 1,83% em setembro. Ela está 2,13% mais barata que um ano atrás, para um salário mínimo 8,9% maior, observa Montero.
“Desinflação de comida com inflação de serviços pode ser indiferente para classe média, mas faz diferença para camadas humildes que gastam na comida e ganham nos serviços”, afirma.
Contribui ainda mais para o cenário de alimentos, segundo ele, o fato de o IBGE ter elevado, de novo, sua estimativa para a safra brasileira neste ano. Agora, ela deve subir quase 21%, ante a safra já recorde de 2022. “O aumento de grãos deste ano excede um quarto de tonelada por brasileiro”, nota Montero.
O Copom destacou “que a conjectura de um crescimento sustentado pela elevação da renda é corroborada pela resiliência no consumo de serviços das famílias” e discutiu, consequentemente, o possível impacto que poderia ocorrer sobre a inflação de serviços no caso de um crescimento sustentado pela renda e pelo consumo.
Tanto no ano passado quanto neste, a renda do trabalho deve ter uma contribuição importante para a massa total, mas, diferentemente de 2022, em 2023 isso se dará mais pelo avanço dos salários do que pelo aumento da ocupação, diz Ribeiro, da Tendências.
“Acho que isso explica a resiliência da atividade quando olhamos para o consumo de bens e serviços e é, sim, um limitador para uma desaceleração mais forte da inflação de serviços”, acrescenta.
Para Caruso, considerando a baixa taxa de desemprego atual, era para os salários terem crescido mais. “Tenho sido surpreendido positivamente com a inflação dos serviços subjacentes [mais ligados ao ciclo econômico]. Não sei quanto isso vai durar. Talvez, em uma janela maior de tempo, seja uma preocupação válida.”
Nos próximos meses e, sobretudo, em 2024, a expectativa é que o mercado de trabalho perca tração, afetando a ocupação e os salários, diz Ribeiro. Com isso, ela afirma esperar que o crescimento da massa de renda total desacelere para 2,9% no ano que vem. O PIB e o consumo das famílias, que devem crescer 2,6% cada em 2023, também desacelerariam para 1,5% e 1,2%, respectivamente, em 2024.
“Enquanto a carga das rendas tende a esmorecer no tempo, a carga contracionista dos juros tende a aumentar”, diz Montero.
Em um novo relatório intitulado, em tradução livre, “O que está por trás da resiliência econômica recente do Brasil?”, a Capital Economics diz acreditar que a resposta principal para sua pergunta está na dinâmica do emprego.
Embora William Jackson, economista-chefe para mercados emergentes, diga não esperar que o crescimento forte recente da renda e do consumo se sustente, “é provável que continue em um nível que manterá o núcleo da inflação acima da meta”, afirma.
Fonte: Valor Econômico