Por Anna Irrera | Por quase uma década, profetas digitais dizem prever um futuro no qual bancos economizem bilhões de dólares, clientes possam rastrear seus alimentos até a fazenda orgânica onde foram cultivados e intermediários financeiros se tornem coisa do passado, tudo graças à blockchain.
Tenho esperado que esse futuro chegue, mas nunca o encontrei em minha vida cotidiana. Imagine minha surpresa, então, quando encontrei a palavra “blockchain” dentro de uma bolsa da Miu Miu.
Eu havia comprado a bolsa recentemente, e um pequeno cartão branco estava escondido em um bolso. No pedaço de fibra 100% reciclada estava escrito: “O certificado deste produto autêntico da Prada foi carregado na plataforma do Consórcio Blockchain Aura para registrar e garantir sua integridade.”
A empresa-mãe da Miu Miu, o Grupo Prada, é uma das grandes de luxo que investem em formas de alta tecnologia para rastrear seus produtos mais cobiçados e caros. No último ano, marcas como Loro Piana, Louis Vuitton e Maison Margiela lançaram serviços baseados em blockchain pelo consórcio Aura, que permite aos clientes verificar que seu item é verdadeiro e não uma réplica.
Aumento das bolsas de luxo falsificadas
A esperança é que rastrear bolsas, casacos e anéis de diamante dessa forma possa ser um divisor de águas na luta da indústria contra o mercado crescente de falsificações.
Segundo estimativa de 2019 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, até US$ 464 bilhões em produtos falsificados e pirateados mudam de mãos a cada ano, representando 2,5% do comércio mundial.
A tecnologia blockchain é apenas uma das estratégias usadas pelo setor em uma batalha de anos contra as falsificações.
Esforços recentes incluem a nova plataforma da Richemont para compartilhar informações sobre relógios e joias perdidos ou roubados e o lançamento de um sistema de verificação baseado em IA chamado Authentique Verify, de propriedade da Patou, da LVMH.
Dar aos clientes uma maneira mais confiável de provar que seus produtos são reais pode ajudar a aumentar o apelo dos produtos originais, ao mesmo tempo que torna mais difícil vender falsificações em brechós.
E, ao tornar mais fácil para os clientes passarem adiante ou revenderem seus produtos, a tecnologia pode ajudar a comprovar o argumento de que muitos desses itens de alto preço têm algum valor de investimento.
“Um certificado digital de autenticidade é um grande solucionador de problemas”, diz Stefano Rosso, presidente da Maison Margiela e CEO da BVX, ambas parte do Grupo OTB. “Paralelamente, ele nos ajuda a promover o produto e rastrear suas origens.”
A OTB é membro do Consórcio Blockchain Aura, que administra tecnologia blockchain especificamente para marcas de luxo. O consórcio foi fundado em 2021 pela LVMH, Grupo Prada e Richemont, e depois se juntaram à OTB e à Mercedes-Benz.
Quando os clientes procuram um dos 600.000 produtos registrados da OTB, eles não o fazem em qualquer site aleatório; as marcas controlam quais produtos são registrados na plataforma.
O conceito de blockchain – onde as transações são registradas online, em um sistema operado por muitos servidores de computador – ganhou notoriedade como o sistema que sustenta criptomoedas como o Bitcoin (BTC).
As informações em blockchains são difíceis de manipular, o que muitos acreditam torná-las uma ferramenta ideal para registros complexos, como a origem ou cadeia de suprimentos de um produto. Isso ajuda a resolver um grande problema no mundo online – a falta de confiança – que alguns acreditam ser transferível para produtos no mundo real.
Outros setores têm brincado com a tecnologia há anos, mas ainda não implementaram aplicativos em grande escala.
Wall Street, por exemplo, esteve na vanguarda do desenvolvimento de sistemas blockchain, mas as coisas têm avançado mais lentamente em um ambiente altamente regulamentado com sistemas complexos já em vigor.
As consequências de uma interrupção, por exemplo, em um sistema que liquida operações com ações seriam bastante diferentes de um problema em um sistema que rastreia bolsas. Algum progresso ainda está sendo feito, mas muitos projetos anunciados anos atrás ainda não foram implementados, enquanto outros foram cancelados.
Apesar dos bilhões de dólares investidos, é difícil encontrar adoção generalizada de aplicativos além de criptomoedas. A implementação da blockchain nos produtos de luxo será um teste significativo para verificar se a tecnologia tem alguma utilidade em uma escala além de seu caso de uso original.
Usando blockchain para autenticar bolsas
O serviço da OTB permite que os clientes cliquem em seus smartphones, por exemplo, em um novo par de sapatos Tabi da Maison Margiela, que possui chips NFC embutidos. O chip instrui o telefone a abrir um site com o certificado de autenticidade do produto, fornecido pelo Consórcio Blockchain Aura, e informações sobre onde os sapatos foram fabricados (Itália).
Da mesma forma, no início deste ano, a Loro Piana, da LVMH, lançou um serviço que permite aos clientes escanear um QR code nas etiquetas de suas roupas da linha Gift of Kings para verificar sua autenticidade – algo importante ao comprar uma de suas camisetas, que podem custar 1.665 libras (ou US$ 2.100).
Os clientes também podem se registrar como proprietários da peça e encontrar informações sobre suas origens, até o lote de lã fina usado para fazer uma camiseta; (é muito macia e vem de fazendas selecionadas de ovelhas na Austrália e na Nova Zelândia.)
“Acreditamos que a blockchain é um forte facilitador para aumentar tudo relacionado à rastreabilidade, origem e autenticidade desde o início da história, começando no nível da matéria-prima”, disse Franck Le Moal, diretor de TI e tecnologia do grupo LVMH Moët Hennessy Louis Vuitton, em uma entrevista.
“Um dia, todo produto da indústria de luxo poderá se beneficiar ou ser aprimorado por um passaporte ou certificado de produto digital.”
Alguns especialistas, contudo, têm opinião contrária.
“Continuo cético quanto à robustez ou utilidade de soluções de blockchain que tentam ligar ativos físicos à natureza esotérica das redes de blockchain”, diz Colin Platt, que assessora e consulta empresas em projetos de blockchain. “O que acontece se eu retirar o chip NFC das bolsas, fizer 10.000 cópias e colocá-las em 10.000 bolsas falsas? Quem é o dono da bolsa verdadeira?”.
Aplicações construídas usando a tecnologia do Consórcio Aura usam diferentes camadas de segurança, incluindo chips NFC criptografados, disse um porta-voz.
Platt também questiona o que aconteceria se as pessoas vendessem as bolsas sem registrar a mudança de propriedade no sistema. “Se você vender a bolsa para seu amigo e não atualizar a blockchain, quem é o dono da bolsa?”, diz ele. “Você ou seu amigo?”
O Grupo Prada integrou o rastreamento blockchain em sua nova linha Fine Jewelry Eternal Gold, enquanto começava a construir sua cadeia de suprimentos sustentável para ouro reciclado, que levou mais de um ano para ser estabelecida.
A linha estreou em outubro e usa ouro e pedras 100% reciclados e comprados de fornecedores que atendem a altos padrões em direitos humanos, segurança no trabalho, impacto ambiental e ética nos negócios.
Os clientes podem usar seus telefones para ver o cartão das joias, incluindo o que acompanha um colar de corrente de ouro amarelo que custa 25.500 libras, para acessar um certificado de autenticidade, sua pegada de carbono e informações sobre o material usado.
Isso ajuda a contar a história de sustentabilidade da marca, pois os clientes podem verificar que os materiais atendem efetivamente aos critérios anunciados, disse Timothy Iwata, diretor administrativo de joias finas e de alto padrão do Grupo Prada, em uma entrevista.
Como ter certeza de que um produto de luxo é oficial
Um certificado digital e registros online de quem é o proprietário de um produto podem facilitar que os clientes repassem itens para a família e amigos, afirmam executivos. Tradicionalmente, os certificados de autenticidade eram cartões de plástico ou papel com números de série, que podem ser facilmente perdidos ou jogados fora ao longo dos anos.
Um item herdado pode não vir com esse certificado, dificultando para o destinatário saber se o produto é real. Em vez disso, as informações de propriedade são armazenadas online.
A tecnologia também tornaria menos arriscado para as casas de luxo entrarem no mercado de segunda mão, diz Daniela Ott, secretária-geral do Consórcio Blockchain Aura e ex-diretora de operações da divisão de luxo da Kering. As empresas poderiam facilitar as vendas de itens usados se preocupar em vender produtos falsificados.
A tecnologia também pode ajudar a rastrear o histórico de venda e reparo do produto, diz Pierre-Nicolas Hurstel, CEO da Arianee, uma startup que trabalha com marcas de consumo para construir aplicativos de blockchain.
Sentado em um café em Paris no início deste ano, Hurstel mostrou informações sobre a autenticidade e o histórico de seu relógio Panerai, que ele escaneou com o telefone. Isso incluiu a data de venda, data de vencimento da garantia e muito mais.
Em breve, disse Hurstel, os consumidores poderão ter uma carteira digital em seus telefones contendo certificados de todos os produtos de valor que possuem. Isso poderia ter um impacto inesperado para os fornecedores de produtos de luxo: um mercado de brechó mais forte poderia tornar os clientes um pouco confiantes demais.
“Isso não é bom para as marcas que tentam evitar a ubiquidade e vender a promessa de exclusividade”, diz Luca Solca, analista de pesquisa sênior de bens de luxo global da Alliance Bernstein.
A importância da autenticação em bolsas
Depois de tirar o cartão de minha bolsa da Miu Miu, pensei: “Ok, e agora?” O cartão não continha instruções de como acessar o certificado digital para verificar seu registro em uma rede blockchain. Minha bolsa estava realmente na blockchain?
Após várias rodadas de questionamentos, as equipes de imprensa do Consórcio Aura e da Prada disseram que eu ainda não podia certificar a bolsa por conta própria, mas o Grupo Prada poderia acessar as informações por meio de um chip NFC inserido no item.
“Ao ter o selo Aura em seus produtos, o Grupo Prada está dizendo a seus clientes que ele foi injetado na blockchain”, disse a Prada em comunicado. “Eles têm a garantia de que é autêntico e tem sua própria identidade imutável.”
Não comprei muito a ideia. Especialmente depois que a alça da bolsa quebrou em abril e a levei à loja da Miu Miu na New Bond Street de Londres para reparos. Ninguém a escaneou na minha frente para verificar sua autenticidade.
Em vez disso, um vendedor procurou meus detalhes em um tablet. O sistema da loja mostrou os produtos que eu possuía do grupo. A bolsa e as peças foram coletadas e enviadas para reparos no exterior. Algumas semanas depois, um representante me enviou uma mensagem no WhatsApp para me informar que a bolsa havia chegado. Eu a peguei dando meu nome e o modelo da bolsa. E foi isso.
Fonte: Bloomberg Linea