Por Consuelo Dieguez | Em busca de explicações sobre a fraude de 20 bilhões de reais nas Lojas Americanas – a maior da história das corporações brasileiras –, os investigadores do caso descobriram que o ex-presidente da companhia Miguel Gutierrez transferiu alguns de seus imóveis de seu nome para empresas em nome de seus parentes e dele mesmo, durante o processo de mudança no comando da varejista.
Gutierrez era homem de confiança dos controladores das Americanas (Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles) e ficou no cargo por 20 anos até ser substituído por Sergio Rial, em janeiro deste ano. O anúncio de que Rial assumiria as Americanas foi feito em 19 de agosto de 2022, já com a informação da data de sua posse. As transferências de imóveis de Gutierrez ocorreram entre 26 de setembro de 2022 e 2 de janeiro de 2023, dia em que Rial assumiu. A investigação sobre a fraude nas Americanas é conduzida pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal.
A transferência de imóveis em si não é ilegal, mas é uma peça importante na linha de investigação sobre o patrimônio dos ex-executivos das Americanas. Os investigadores já sabem, por exemplo, que, no segundo semestre do ano passado, a diretoria da empresa vendeu 14,1 milhões de suas ações da companhia, no valor total de 241,1 milhões de reais. À época, a diretoria era composta por Gutierrez, Anna Saicali, Timotheo Barros e Marcio Cruz Meirelles. A venda aconteceu num momento de alta nas cotações, provocado justamente pelo anúncio de que Gutierrez seria substituído por Rial.
Executivo com prestígio no mercado, Rial tinha presidido o banco Banco Santander, onde implementou mudanças que levaram a instituição financeira a figurar entre as maiores do país. A nomeação de Rial pelo conselho de administração da companhia, de acordo com avaliação de advogados que acompanham o caso, frustrou os planos dos executivos das Americanas, especialmente de Gutierrez, de que a sucessão na companhia se desse internamente, contemplando um dos três diretores próximos a ele.
Chamou a atenção dos investigadores a coincidência temporal desses movimentos, pois tanto a venda de ações como a transferência de imóveis se deram justamente após o anúncio do nome de Rial para o cargo de CEO. A venda das ações e a transferência de imóveis, pelo menos por parte de Gutierrez, levaram os investigadores a suspeitar de que ambas tenham ocorrido porque ele já pressentia que a fraude viria a público com a assunção do novo presidente. De acordo com a advogados consultados pela piauí, a transferência de imóveis de pessoa física para uma empresa tem como objetivo em situações como esta: blindar o patrimônio da pessoa física, evitando arresto em caso de ação judicial para pagamento de dívidas. No mercado, é uma operação conhecida como “muralha da China”.
Desde o segundo semestre do ano passado, Gutierrez transferiu três imóveis. O primeiro foi um prédio no bairro da Boa Esperança, em Itaipava, localidade valorizada em Petrópolis, região serrana do estado do Rio. Em 26 de setembro do ano passado, o prédio foi integralizado ao capital da empresa Coroa Verde Participações Ltda. Também nesta mesma data, um segundo imóvel, outro prédio residencial, com área de 2.830 m2, na Estrada Philuvio Cerqueira Rodrigues, também em Petrópolis, foi transferido para a mesma Coroa Verde Participações. As transferências foram registradas no Registro de Imóveis da 4ª Circunscrição, 10º Ofício da Comarca de Petrópolis.
A empresa Coroa Verde foi registrada na Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro em 19 de outubro do ano passado. Está em nome de Miguel Gutierrez, Tomás Maciel Gutierrez, Clara Gutierrez Galhardo, Laerte Galhardo e da empresa Sarmiento Consultores, Sociedad Limitada, sediada em Madri e cujo representante legal é o próprio Miguel Gutierrez. Funciona em uma casa na rua Vinícius de Moraes, em Ipanema, que pertencia à família de Gutierrez. A casa está vazia e, segundo um vizinho, apenas “uma senhora aparece por lá”.
Em 2 de janeiro deste ano, Gutierrez vendeu um terceiro imóvel, um apartamento na Avenida Ataulfo de Paiva, no valorizado bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, para a empresa Nazareth Participações Ltda, segundo registro no Cartório do 1º Ofício do Rio de Janeiro. A Nazareth Participações foi registrada na Junta Comercial em nome da mulher de Gutierrez, Maria de Nazareth Maciel, de Tomas Maciel Gutierrez, de André Maciel Gutierrez e de Bruno Maciel Gutierrez. A Nazareth Participações fica na Rua Visconde de Pirajá, também em Ipanema, num prédio residencial onde é proibido o funcionamento de empresas. O imóvel está fechado há mais de um ano. O valor declarado dos três imóveis é de 2,1 milhões de reais. Miguel Gutierrez e seu advogado Paulo Vieira foram procurados pela piauí desde a semana passada, mas não retornaram as ligações.
O escândalo das Americanas respingou em cheio em Lemann, Telles e Sicupira, apontados como três dos homens mais ricos do país e donos da AB Inbev, uma das maiores fabricantes de cerveja do mundo, que inclui entre suas marcas Brahma e Antarctica, a belga Stella Artois, a americana Budweiser (esta última em sociedade com o megainvestidor Warren Buffett), entre outras. O trio custou a se manifestar sobre o escândalo, que estourou no dia 11 de janeiro, após Rial ter soltado um fato relevante ao mercado comunicando que a empresa tinha “inconsistências financeiras” da ordem de 20 bilhões de reais e que estava deixando o cargo que assumira havia apenas nove dias. Somado à dívida da companhia, o rombo somava quase 50 bilhões de reais, contra um patrimônio líquido de 15 bilhões de reais. Ou seja, a Americanas estava quebrada.
A demora dos controladores Lemann, Telles e Sicupira – que preferem ser chamados de “acionistas de referência”, já que também começaram a reduzir sua participação na Americanas há cerca de dois anos – em se manifestar sobre a fraude irritou ainda mais os investidores. Em nota pública divulgada no dia 22 de janeiro, os três controladores se abstiveram de culpa na fraude alegando que não tinham qualquer responsabilidade no que havia ocorrido na empresa. Insinuam que os bancos credores e a PwC, que fazia a auditoria da empresa, teriam uma parcela de culpa no processo por, ao analisar o balanço da companhia, não enxergarem o que estava ocorrendo. Dois dias após a comunicação da fraude ao mercado, a empresa entrou em recuperação judicial para evitar a falência. Com isso, os credores tomaram um calote que chega até 70%, já que as dívidas tanto com bancos como de fornecedores e funcionários não serão ressarcidas na sua integralidade. Além de sofrerem desconto, só serão pagas em parcelas, que levarão vários anos até serem completamente desembolsadas.
Fonte: Revista Piauí