Por Elizabeth Segran
Cabeças empalhadas hiper-realistas de leão, de urso e de leopardo da neve. Cavalos gigantes e corujas de brinquedo. Plantas tropicais agigantando-se sobre as figuras humanas abaixo delas.
Não seria nada estranho imaginar que essas são descrições de cenários de uma peça ou de uma exposição de arte. Mas, na verdade, foram pano de fundo de desfiles de moda recentes – respectivamente, das marcas Schiaparelli, Chanel e Loewe.
Conforme mais estilistas fizeram desfiles para semanas de moda em Londres, Paris, Milão e Nova York, foi preciso investir mais recursos em teatralidade e no espetáculo para chamar a atenção. Com outras semanas de moda no calendário, ainda veremos que tipo de desfiles surpreendentes as casas de alta costura reservaram para o púbico.
À medida em que o planeta tenta se segurar à beira da destruição, diversos ativistas têm apontado que semanas de moda aceleram mudanças climáticas e provocam muita poluição.
Além de os desfiles gerarem enormes quantidades de lixo, levar o público de avião para assistir desfiles ao redor do mundo gera emissões de carbono suficientes para fornecer eletricidade para 42 mil domicílios por um ano inteiro.
Mas esses são os menores de nossos problemas. A verdadeira controvérsia da semana de moda é que o seu objetivo é cultivar tendências artificialmente e sinalizar que as roupas da última temporada se tornaram obsoletas.
Essa filosofia gera um efeito cascata ao longo de toda a indústria, motivando as marcas de fast fashion a produzir em massa novas roupas em velocidade crescente, no ritmo de 150 bilhões de peças ao ano.
Para termos uma indústria mais sustentável, é preciso não só repensar a logística das semanas de moda, mas reexaminar toda a sua razão de existir.
Seria possível criar uma semana de moda que se mantivesse artística e inspiradora, mas que não fosse baseada na busca constante pela próxima nova tendência? Usando um pouco de imaginação, acredito que é possível.
A MÁQUINA DE CRIAR TENDÊNCIAS
Nos últimos anos do século 19, estilistas e lojas de departamento inventaram os desfiles de moda para apresentar os próximos lançamentos aos clientes mais abastados.
Em 1943, no auge da Segunda Guerra Mundial, a indústria norte-americana criou a primeira semana de moda oficial para prestar apoio aos estilistas dos EUA e facilitar a venda simultânea, pela imprensa especializada, de todas as coleções.
Na época não era evidente, mas aquele já era o começo do complexo industrial de moda moderno, tal como o conhecemos.
A primeira semana de moda evoluiria para um acontecimento bianual. Logo, Paris, Londres e Milão organizariam eventos similares. De repente, surgiu a expectativa de que os estilistas criassem, ao menos, duas coleções por ano, e cada uma precisava ser emocionante, inesperada e diferente daquilo que veio antes.
Compradores de moda e revendedores frequentavam os desfiles para decidir quais peças encomendar para suas lojas na próxima estação.
No final dos anos 80, a marca de fast fashion Zara entrou no jogo. Eles haviam desenvolvido tecnologia para criar roupas modernas de forma rápida e barata.
Para decidir quais peças fabricar, os estilistas da chamada fast fashion prestavam muita atenção ao que acontecia nas passarelas, tomando nota das paletas de cor e das silhuetas para moldar suas próximas coleções (e eram conhecidos também por copiarem modelos inteiros).
De muitas formas, a semana de moda estabeleceu os alicerces para a ascensão da fast fashion. Quatro décadas depois, ela domina a indústria da moda, produzindo milhares de peças de roupa baratas para as massas.
Além dos criadores, outros agentes, que incluem da Target ao Walmart passando por Forever21 e Shein, competem neste espaço. Para que as pessoas continuem comprando cada vez mais, é indispensável a essas marcas continuar criando novas peças. Muitas dessas tendências têm sua origem nas passarelas dos desfiles de moda.
O DIABO VESTE SHEIN
A máquina da indústria da moda atua hoje de modo tão subliminar que, frequentemente, seu funcionamento é invisível para o consumidor comum. Mas aqueles que são parte da indústria conseguem identificar por que uma cor ou silhueta específicas andam super populares nos shoppings da cidade.
No filme “O Diabo Veste Prada”, Miranda Priestly detalha esse sistema à sua assistente Andy Sachs, explicando o motivo de ela estar usando um suéter no tom de azul celeste.
“Você não tem a menor noção de que, em 2002, Oscar de la Renta fez vestidos celestes, e Yves Saint Laurent…jaquetas militares celestes. E aí…a cor acabou nas grandes lojas, e, um tempo depois, em alguma lojinha vagabunda, onde você, sem dúvida, comprou esse suéter em uma liquidação”, explica Miranda.
Quase 20 anos depois do lançamento do filme, o sistema continua a gerar novas tendências com velocidade e volume ainda maiores.
A revista Glamour, por exemplo, prevê que as cores rosa pastel, preto e azul cobalto serão sucessos na primavera, bem como cinturas baixas e transparências, com base nas coleções de primavera/ verão que os estilistas apresentaram no ano passado.
A maioria dos consumidores vai comprar esses “looks” por preços baixos e descartá-los depois de usar a roupa sete vezes (em média). E a roda vai voltar a girar.
COMO ESCAPAR DESSE DESASTRE?
O que é necessário para retroceder o relógio e voltar a um tempo no qual a indústria não era atrelada ao ritmo absurdo das tendências?
Para começo de conversa, a indústria da moda precisa alterar os fundamentos da criação de roupas. Remontando à 1943, quando o primeiro desfile ocorreu, os consumidores adquiriam apenas uma fração da quantidade de roupas que compram atualmente.
A costura era um trabalho muito mais caro naquele período, já que os fabricantes não usavam mão-de-obra barata do exterior e nem materiais de baixo valor.
A expectativa das pessoas sobre o valor que deveriam pagar pelas roupas também era bem diferente. Em 1950, 12% da renda da população era gasta com vestuário. Em 2020, essa porcentagem despencou para 2,3%. Assim, não é surpresa que a quantidade de roupas que compramos hoje tenha crescido de forma exponencial.
Antes da guinada para a fast fashion, os consumidores esperavam que as roupas durassem. Ou seja, que elas fossem resistentes e que não saíssem de moda rápido.
É possível voltar a um mundo no qual a qualidade seja prioridade e os produtos sejam precificados de acordo. De fato, existem, hoje mais marcas empenhadas em criar peças atemporais e duráveis, como Cuyana, Eileen Fisher e The Frankie Shop.
OBSOLESCÊNCIA DESPROGRAMADA
Isso nos leva à questão das tendências. Será que é viável existir uma indústria da moda que não seja baseada em tornar obsoletas as roupas que temos? Eu acredito que sim.
A internet permitiu que múltiplas estéticas/ identidades visuais coexistam. Se examinarmos os estilos de influenciadores no Instagram e no TikTok, eles oferecem uma miríade de looks diferentes, do chique clássico aos estilos futurísticos inspirados nos anos 2000.
E se vivêssemos em um mundo onde todos comprassem apenas roupas das quais gostassem, que fossem de alta qualidade, em modelos que permitissem expressar a individualidade? Roupas que seriam guardadas por anos?
é viável existir uma indústria da moda que não seja baseada em tornar obsoletas as roupas que temos?
Nesse novo mundo sem tendências únicas, os estilistas poderiam continuar sendo fontes de inspiração. Aliás, o foco dos desfiles atuais não são mais as roupas. Os estilistas são artistas cujo meio de expressão são os tecidos. Sua arte, muitas vezes, se relaciona com grandes questões contemporâneas e as peças de suas coleções são, com frequência, apenas conceituais, não destinadas a serem fabricadas.
Por exemplo, no desfile de Jonathan Anderson para a Loewe na última temporada, ele jogou de forma aterrorizante com a maneira como o metaverso mistura o real com o digital. Outro exemplo foi o desfile de alta costura de Pyer Moss de 2021, que deu destaque para as criações importantes, mas esquecidas, de criativos negros.
Os estilistas poderiam continuar desenvolvendo este tipo de trabalho conceitual ao mesmo tempo em que produzem as peças clássicas pelas quais suas marcas são conhecidas. Afinal, a maioria dos consumidores quer comprar peças icônicas das marcas de luxo, como os blazers de tweed da Chanel e os sobretudos da Burberry.
A chave, portanto, seria a indústria da moda – e, especialmente, as marcas de fast fashion – reconhecerem estes desfiles pelo que eles realmente são: arte performática.
Assim, talvez, de posse desse conhecimento, os desfiles sequer precisariam ocorrer nas passarelas. Poderiam acontecer em outros locais criativos, desde um estúdio até um deserto. O espetáculo poderia ser filmado digitalmente, de modo que as pessoas não precisariam viajar de avião para assisti-los.
Essa é uma ideia ousada, dado o quão entrincheirada e irredutível a indústria da moda se tornou. Todavia, fomos nós que inventamos a semana de moda, 80 anos atrás. Então, é possível reinventá-la para o século 21.
Fonte: Fast Company