Empresas surgidas nas comunidades colocam as quebradas no mapa do ecommerce
Por Débora Sögur-Hous
Para milhões de brasileiros que moram em favelas e na periferia, receber uma encomenda na porta de casa pode ser um luxo com valor maior que o da compra.
O CEP (quando existe) pode gerar um frete mais caro que a encomenda — ou fazer com que a entrega seja barrada já na largada.
As favelas abrigam mais de 17 milhões de brasileiros, que movimentam R$ 124 bilhões por ano. Metade deles já faz compras online, mas 39% reclamam que não conseguem receber suas encomendas na porta de casa, mostra um levantamento do Data Favela.
Agora, uma leva de startups surgidas nas próprias comunidades está se especializando nesse last mile e vem conquistando clientes de peso, como Americanas, Mercado Livre, Amazon, Magazine Luiza e Shopee.
Em comum, essas empresas estão ligadas a organizações não governamentais que consolidaram sua experiênciaao fazer chegar as doações na pandemia, driblando a inexistência de CEPs ou padrões de numeração das casas.
A Favela Brasil Xpress está ligada ao G10 Favelas; a Favela LLog, à Central Única de Favelas (Cufa); e a naPorta, à Gerando Falcões.
As três startups estão se expandindo com modelos baseados em tecnologia de localização e mão de obra local, com conhecimento dos territórios, para incluir as quebradas no mapa do ecommerce.
Favela Brasil Xpress
Nascida há pouco mais de um ano, a Favela Brasil XPress (FBX) já tem mais de dez clientes, entre eles a B2W (Americanas, Submarino e Shoptime), Magazine Luiza, Riachuelo, Shopee, Mercado Livre e Casas Bahia, e um faturamento na casa dos R$ 7 milhões.
A empresa nasceu durante o pico da pandemia de covid-19 a partir da estrutura de distribuição de doações gerenciadas pelo G10 Favelas, organização bastante atuante em Paraisópolis, quinta maior favela do Brasil, com mais de 100 mil habitantes e que fica na zona sul de São Paulo.
Antes de ser CEO da Favela Brasil XPress, Giva Pereira, 22, foi um dos coordenadores de entrega de doações do G10 Favelas na pandemia. Na época, um mapa simples com anotações na mão era usado para localizar a moradia das 32 mil famílias da comunidade.
Quando decidiu abrir o negócio, a estrutura analógica serviu de base para a implementação da tecnologia plus codes do Google.
O plus codes converte a latitude e a longitude de qualquer ponto no bairro em um código único e público, servindo como um CEP digital alternativo. Os moradores foram orientados a usar o código na área de ponto de referência do endereço de entrega no cadastro de suas compras.
“O plus codes não substitui o endereço fornecido pelo poder público, mas ajuda na localização. O ideal seria que todos nós morássemos em uma via adequada, com CEP, mas enquanto isso não acontece, a tecnologia está colocando as nossas casas no mapa dos serviços básicos”, afirma Giva Pereira.
Hoje, o CEP digital extrapolou a função de logística de mercadorias e tem sido usado por moradores para cadastros em contas de energia ou em postos de saúde. “Há casas com o plus code na porta de entrada”, diz o empresário.
Com 350 funcionários e mais de um milhão de pacotes entregues, além de Paraisópolis, a FBX também atende, em São Paulo, Heliópolis, Cidade Júlia, Capão Redondo e alguns pontos de Diadema. No Rio de Janeiro, está na Rocinha e na Vila Cruzeiro.
Nascida com um cheque de R$ 15 mil do G10 Bank, banco ligado ao G10 Favelas, a empresa entrou no azul após 10 meses de operação, diz Pereira.
Neste ano, captou R$ 900 mil via equity crowdfunding e com o investimento quer ampliar sua base para 50 comunidades, incluindo favelas em Minas Gerais e nas regiões Norte e Nordeste, e chegar a 10 milhões de entregas, alavancadas pelas vendas da Black Friday e do Natal.
Favela LLog
Pioneira, a Favela LLog foi fundada em 2015 por Celso Athayde – e, segundo ele, já responde por 12% dos ganhos da sua Favela Holding, que registrou um faturamento de R$ 178 milhões em 2021.
Por anos a empresa concentrou sua atuação em 112 favelas de 12 bairros do Rio de Janeiro, tendo como principal cliente a Natura.
A atuação se expandiu para São Paulo mais recentemente, com a chegada de Luciano Luft como sócio. O empresário é dono da Luft Logistics, uma transportadora especializada no frete de mais longa distância e concentrada em produtos farmacêticos e do agronegócio, além do ecommerce.
Nesta nova fase, a Favela LLog firmou contrato para distribuir na periferia os produtos comprados no marketplace da Amazon.
O primeiro ponto de distribuição foi inaugurado em agosto em Paraisópolis e, nos próximos meses, também serão instalados galpões em Heliópolis e no Capão Redondo.
O plano da empresa é chegar até o fim do ano com 600 funcionários, trabalhando em 300 favelas e entregando 2.000 pacotes por dia. Para driblar o problema do CEP, a Favela LLog aposta em uma tecnologia proprietária de georreferenciamento, que está tendo sua efetividade testada em São Paulo.
A mão de obra é composta pelos moradores das comunidades que participam de dois projetos da Cufa de reinserção no mercado de trabalho: o projeto Mães da Favela, que tem um cadastro de mães solo e desempregadas, e o Recomeço, que encaminha ex-detentos para o mercado de trabalho.
naPorta
Caminhar até meia hora para receber cartas sempre foi a rotina de Sanderson Pajeú, 28, morador do Itaim Paulista, extremo leste de São Paulo. “Queria muito empreender nesta área e, com a pandemia, isso se tornou urgente.”
Para estruturar a naPorta, ele contou com a ajuda de amigos (e hoje sócios) que trabalhavam na área de logística da Ambev no Rio de Janeiro.
O primeiro contrato de peso veio em julho de 2021, quando fechou uma parceria com a tradicional varejista fluminense Casa & Vídeo, que tinha grande volume de vendas em sete comunidades do Rio de Janeiro, mas sofria com a pouca efetividade na entrega.
O sucesso da operação atraiu clientes como iFood, Renner, Riachuelo, Mercado Livre, Americanas e C&A e trouxe um cheque de R$ 300 mil de capital semente de investidores da Wow Aceleradora e LGA Ventures.
Integrante do Google For Startups, programa de aceleração do Google, a naPorta busca se diferenciar com uma tecnologia aprimorada de georreferência.
“Queremos suplementar o plus code do Google, criando um padrão de geolocalização digital que sirva tanto para favelas horizontais, como as paulistas, como para favelas verticais do Rio de Janeiro”, diz.
A naPorta acaba de fechar uma parceria com a Gerando Falcões, e vai inaugurar no fim do mês um ponto de distribuição na Favela dos Sonhos, em Ferraz de Vasconcelos, que faz divisa com o Itaim Paulista, bairro natal de Pajeú.
“A Gerando Falcões é um parceiro de nível nacional importante para que possamos ampliar nossa operação”, diz Pajeú, contando que a ONG vai ajudar a captar trabalhadores locais.
Somente com a operação no Rio, a naPorta faz dez mil entregas por mês, gerando uma receita de cerca de R$ 50 mil reais. O plano de Pajeú é chegar ao fim do ano presente em 24 comunidades, multiplicando o faturamento por dez.
Atingindo a meta, a startup quer abrir novas rodadas de captação para ampliar a operação no eixo Rio-SP e testar a entrada no Nordeste.
Sem concorrência no last mile
Atuando em territórios pouco explorados, os líderes das três empresas não se preocupam com a concorrência e citam diversos fatores que podem levar as companhias para locais distintos.
“Hábitos de consumo e a cultura variam muito de favela para favela. As comunidades do Norte, por exemplo, compram mais em redes de lojas daquela região e exigirão outras parcerias”, diz Giva Pereira, da Favela Brasil Xpress.
A capilaridade da Cufa e o know-how da logística de grandes distâncias da Luft trazem uma vocação nacional para a LLog, diz Luft. Mas para isso é preciso ter escala, o que joga o foco da startup em comunidades de grande porte, afirma o empresário.
Já o sonho de Sanderson Pajeú, do naPorta, é tornar viável e sustentável a entrega para milhares de pequenas comunidades, inclusive as mais isoladas, como ribeirinhos e quilombolas.
Fonte: Capital Reset