Segmento se profissionaliza e ganha impulso com entrada, via aquisição, de grandes varejistas de moda
Por Juliana Schincariol e Raquel Brandão
Comprar roupas e acessórios em brechós deixou de ser apenas uma necessidade financeira para se tornar “cool” nos últimos anos. Ainda que o acesso a peças mais baratas continue sendo o principal atrativo, o apelo da sustentabilidade atrai sobretudo os clientes mais jovens. Ao mesmo tempo, o segmento tem se profissionalizado e a oferta de produtos vem crescendo. Esse cenário faz com que o mercado de segunda mão possa atingir R$ 24 bilhões no Brasil até 2025, de acordo com um estudo inédito do BCG em parceria com o Enjoei, obtido pelo Valor.
O potencial que o mercado brasileiro pode atingir é uma fração do americano, que chegou a US$ 36 bilhões em 2020. E a expectativa para os Estados Unidos é de que possa crescer de 15% a 20% nos próximos cinco anos, chegando a US$ 70 bilhões. Deve, inclusive, ultrapassar o mercado de fast fashion (moda rápida) até 2030, calcula o BCG. O forte crescimento esperado para os próximos anos no setor vem proeminentemente de plataformas de revenda digital, como os marketplaces Vestiaire Collective, na Europa, e ThreadUp, nos EUA.
No Brasil, marcas e varejistas tradicionais já entenderam o potencial do mercado, que é muito pulverizado, e a demanda dos consumidores. E há um movimento de aquisições. Em julho do ano passado, a Lojas Renner comprou a Repassa, plataforma que vem dobrando de tamanho a cada ano. O grupo Arezzo comprou 75% da Troc no fim de 2020, que avançou também cerca de 100% em 2021. Em março deste ano, foi a vez da empresa de shoppings Iguatemi comprar 23% do Etiqueta Única.
Na maioria dos casos, os valores das aquisições não são divulgados e analistas de varejo enxergam esse tipo de movimento como um aporte de “venture capital”.
Com as aquisições, as grandes empresas marcam posição sobre as práticas ambientais, sociais e de governança (ESG na sigla em inglês), e os brechós podem ganhar eficiência. Com o investimento da Iguatemi, a Etiqueta Única vai investir mais em pesquisa e tecnologia e na criação de “guide shops” físicos – lojas que funcionam como um ‘showroom’, o cliente experimenta peças e conclui a compra digitalmente.
Na pesquisa do BCG e Enjoei, 62% dos entrevistados indicaram que têm mais chance de comprar uma marca se ela tiver parceria com um ator do mercado de seminovos. Ainda de acordo com o levantamento, 56% dos brasileiros já fizeram ao menos uma transação no mercado de usados e 12% dos guarda roupas possuem artigos seminovos comprados. Nos próximos três anos, a expectativa é que esse percentual chegue a 20%.
Apesar das perspectivas positivas para o futuro, um dos pontos que ainda devem ser superados é a mudança de cultura sobre o consumo de seminovos, questão que aos poucos vem sendo vencida. Além da falta de hábito, muitos brasileiros preferem doar itens que não são mais usados, em vez de vendê-los. Pesam, ainda, a insegurança sobre a procedência dos itens e até a “energia” que as peças carregam.
“Essa barreira mental acontece muito no início. [A empresa de itens de segunda mão] tem que deixar muito claro quais são suas políticas, ter um processo de devolução simples”, afirma o presidente do Enjoei, Tiê Lima.
O que mais leva ao produto seminovo é a busca pelo melhor custo-benefício. O estudo mostrou que 52% dos compradores querem preços mais acessíveis. “Não é só preço, mas a sensação de ‘estou pagando bem nessa peça’, algo que está muito difícil de achar no varejo tradicional”, diz a diretora associada do BCG e líder do Centro de Customer Insight da consultoria para América do Sul, Flavia Gemignani.
“Acreditamos que o crescimento vai acontecer por uma questão de oportunidade de preço. Não adianta nos iludirmos que o cliente vai vir pela sustentabilidade no primeiro momento”, afirma a fundadora e presidente da Troc, Luana Toniolo. Segundo ela, os números mostram que se trata de uma evolução e a recorrência dos clientes para comprar mais peças ocorre, depois, pela sustentabilidade.
As novas gerações e as plataformas deram um perfil mais moderno para o setor, diz Tadeu Almeida, fundador da Repassa. “O público busca peças de qualidade e marcas legais. Mas há também quem já tem consciência socioambiental”, afirma. A Repassa nasceu com um cunho social. Quem comercializa peças na plataforma pode destinar parte dos recursos para organizações não governamentais. Hoje, o maior número de itens são da Renner, mas há outras marcas.
O trabalho das empresas de segunda mão consiste em garantir não apenas a demanda, mas também uma oferta qualificada. Com o crescimento dos vendedores, aumenta o número de peças disponíveis. Esse foi um dos focos do Enjoei em 2021, que fortaleceu a entrada de novos vendedores. “Entendemos que cumprimos nossa missão de conversão de novos usuários e tivemos um crescimento de mais de 50% na base de vendedores”, diz Lima.
O movimento de aquisições reafirma a importância do mercado de segunda mão como a jornada natural do consumidor de moda, diz o presidente do Enjoei. O executivo vê a plataforma como referência. “Cada marca pode ter sua estratégia, mas isso não necessariamente diminui o potencial de um player como o Enjoei. (….) Entendemos esses movimentos mais como pontuais e estratégicos do que algo que mude o curso e a capacidade de sermos um grande catalisador”, diz Lima.
Aquisições como as da Renner e da Iguatemi foram resultado de parcerias prévia com as empresas compradas. Outros brechós buscam também ampliar seu alcance. É o caso do Personal, do Rio, que faturou R$ 2 milhões em 2021. “Nosso objetivo é fazer parte de um grande marketplace no Brasil, em busca de um posicionamento sustentável. Temos ferramentas para crescer de forma consistente”, diz a sócia Priscilla Cunha.
No passado, as pessoas associavam o mercado de segunda mão ao bazar de igrejas, com peças velhas e nem sempre em boas condições. Agora, o consumidor tem à sua disposição até peças de moda e de grifes, no segmento de brechós de luxo. “Vendemos produtos com tíquete médio alto, de cerca de R$ 1.500, a experiência do cliente tem que ser a melhor”, acrescenta a sócia do Personal, Juliana Lenz, que tem foco nesse tipo de produto. Ter uma loja física dá credibilidade para a marca, enquanto os canais on-line permitem alcance nacional, completam.
O mercado de luxo de segunda mão tem emergido no Brasil. O levantamento do BCG aponta que 14% dos clientes de usados buscam melhores preços de peças que antes eram inviáveis no orçamento. Para Nelson Barros, sócio fundador do Etiqueta Única, as peças de luxo são muito atrativas pela qualidade e durabilidade dos produtos. “O item pode se valorizar quando tem séries limitadas ou de coleções que foram descontinuadas”, diz. E as bolsas são um dos itens de maior desejo dos clientes. “O mercado de segunda mão chega como solução para o mercado em geral. É uma oportunidade para quem de fato vai usar a peça, e ainda gera uma renda”, conclui.
Os brechós profissionais buscam se proteger da pirataria, algo que é comum quando se trata de artigos de luxo. “Cada marca tem suas características, que seguem protocolos de avaliação de acordo com o repertório autoral de autenticidade, formulado através de anos do conhecimento da nossa equipe”, diz o fundador da Etiqueta Única. No mercado, há ferramentas de certificação como Real Authentication e Entrupy. Duas bolsas de uma marca como Hermès produzidas em décadas distintas podem ser completamente diferente uma da outra, ainda que sejam autênticas, diz Cunha, do Personal Brechó. “Bolsas muito caras chegam a US$ 50 mil, considerando o item novo. As falsificações hoje chegam no limiar muito perto das originais”, afirma.
Fonte: Valor Econômico