Cartões pré-pagos são sujeitos a cobrança de tarifas de intercâmbio até três vezes maiores que aquelas praticadas nas transações de débito
Por Beatriz Kira e Diogo Coutinho
É muito comum que, ao fazerem compras com cartão em lojas físicas, consumidores ouçam de varejistas a pergunta “crédito ou débito?”. Poucas pessoas sabem, no entanto, que muitos dos cartões em circulação atualmente pertencem a uma terceira categoria: os cartões pré-pagos. Tais cartões possuem as mesmas características do cartão de débito, mas são em geral emitidos por instituições de pagamento, popularmente conhecidas como fintechs.
Na prática, tais cartões pré-pagos funcionam de forma muito similar a cartões de débito, pois o valor da compra é debitado diretamente da conta bancária associada ao cartão no momento do pagamento. No entanto, apesar das semelhanças entre o funcionamento e o uso dos cartões de débito e cartões pré-pagos, tanto da perspectiva do consumidor como da perspectiva do varejista, há uma diferença importante: cartões pré-pagos estão sujeitos a cobranças de tarifas muito mais altas por conta de uma provisão regulatória anacrônica, que não acompanhou a evolução do mercado de meios de pagamento e as transformações tecnológicas do setor.
Há uma assimetria regulatória injustificada entre serviços de pagamento que são essencialmente similares
A tarifa cobrada por emissores de cartões para transações realizadas com cartões é chamada de “tarifa de intercâmbio” (ou “TIC”) e é definida por disposição regulatória, sem qualquer participação do varejo ou das emissoras de cartão. Em 2018, como parte dos esforços para fomentar concorrência no mercado de meios de pagamento, o Banco Central adotou uma regulação que reduziu consideravelmente a TIC para cartões de débito (Circular nº 3.887, de 2018), com repercussões positivas para todo o mercado.
No entanto, a mesma redução tarifária não beneficiou os cartões pré-pagos, que são sujeitos a cobrança de tarifas de intercâmbio até três vezes maiores que aquelas praticadas nas transações de débito. Ou seja, há atualmente uma assimetria regulatória injustificada entre serviços de pagamento que são essencialmente similares.
A tarifa de intercâmbio compõe uma parcela significativa do custo de aceitação de cartões por lojistas, afetando também os preços pagos por consumidores e prejudicando a competitividade dos serviços oferecidos por novos, e inovadores, agentes do mercado. Como um grande atrativo das empresas fintech são os custos menores de seus serviços, o cartão pré-pago é oferecido por essas instituições de pagamento sem custos para os consumidores finais. No entanto, o custo de operações no cartões pré-pagos é repassado pelos emissores aos varejistas, o que impacta o preço de bens e serviços cobrados. Ou seja: a TIC para cartões pré-pagos, definida de forma uniforme por disposição regulatória, impede que a presença de competidores inovadores se traduza em efetiva redução de custo de aceitação das maquininhas de cartão por varejistas.
Além disso, no limite, a diferença tarifária entre cartões de débito e cartões pré-pago cria incentivos para que varejistas simplesmente deixem de aceitar cartões pré-pagos, optando por privilegiar cartões de débito emitidos por bancos tradicionais.
O Banco Central (BC) tem agora a valiosa oportunidade de atualizar e harmonizar a moldura regulatória da TIC e, assim, corrigir o tratamento assimétrico injustificado que eleva o custo de aceitação de cartões pré-pagos adotados por fintechs. Por meio da Consulta Pública 89/2021, o BC propõe uniformizar a TIC com o limite máximo de 0,5% para qualquer transação envolvendo cartões pré-pagos, cartões de débito ou cartões corporativos – na prática equiparando a tarifa de intercâmbio desses cartões. Nas palavras do próprio BC, tanto cartões pré-pagos como de débito são “transações de baixo risco em virtude de os recursos destinados ao pagamento encontrarem-se disponíveis na conta do usuário pagador no momento da autorização da transação”, o que justificaria submeter esses dois arranjos de pagamento a regras similares.
A proposta da Consulta Pública 89 está alinhada com esforços mais amplos do BC para promover a progressiva desconcentração de segmentos do mercado financeiro brasileiro e carrega significativo potencial para contribuir para o aumento da rivalidade e, em especial, a participação de agentes inovadores dotados de potencial disruptivo, capazes de introduzir inovações e gerar aumento do bem-estar. Ao longo dos últimos anos, o direito econômico, e em especial a caixa de ferramentas da regulação, tem sido usado pelo BC de forma intencional e progressiva para a abertura do mercado às fintechs e para reduzir preocupantes e disfuncionais traços de concentração do setor financeiro no país1.
Fazem parte de tais esforços, por exemplo, a agenda BC+ lançada em 2016 e voltada à redução do custo do crédito, à modernização normativa e à eficiência no sistema bancário, com foco em inclusão, competitividade, transparência e educação. Outro exemplo recente (e positivo) da atuação regulatória do BC para abertura do mercado financeiro à inovação foi o lançamento do sandbox regulatório em 2019.
Igualar a tarifa de intercâmbio aplicável a cartões de débito e cartões pré-pagos seria mais um passo crucial a ser tomado pelo BC para assegurar isonomia entre agentes regulados de diferentes portes, poder de mercado e escopos em termos de atividade econômica. Por isso, a adoção da medida proposta na Consulta Pública 89/2021, que uniformiza a tarifa de intercâmbio para cartões pré-pagos com o limite máximo de 0,5% possibilitará que novos players consigam ingressar em mercados com elevadas barreiras à entrada e continuem a oferecer seus serviços de forma competitiva.
A medida tem, assim, grande potencial de promover ainda mais concorrência no mercado de meios de pagamento, reduzir os custos de aceitação de cartões por parte dos varejistas e beneficiar diretamente consumidores com a ampliação de escolhas e com a redução de preços.
1. O Relatório de Economia Bancária (REB) do Banco Central relatou que em 2020 dez bancos foram responsáveis por 81,2% do valor total das operações no mercado bancário primário, evidenciando que o setor ainda é altamente concentrado.
Beatriz Kira é doutora em Direito Econômico pela USP e pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Oxford. Diogo R. Coutinho é professor de Direito Econômico da USP
Fonte: Valor Econômico