Juro mais alto empurra o cenário de vendas mais fortes para o segundo semestre
Por Adriana Mattos
A divulgação, na sexta-feira, de um IPCA em março superando o teto das projeções reforça os sinais de uma persistente subida de preços, que deve exigir níveis mais altos de juros, com efeito direto sobre o poder de compra da população. Esse ambiente aumenta as incertezas num cenário de consumo já desigual e complexo para os negócios. Consultorias estimam demanda mais aquecida só após junho ou no quarto trimestre.
Bancos e economistas começaram, na tarde de sexta-feira, a revisar para cima projeções de inflação e taxa Selic (juro básico) em 2022 e ações de varejistas altamente dependentes de crédito fecharam em forte queda no pregão da B3.
Dois levantamentos recém-concluídos, das empresas de pesquisas GfK e NielsenIQ, obtidos pelo Valor, que cruzam renda e perfil de compra, mostram os efeitos da crise na ponta ao cliente. Há um recuo na fatia dos mais pobres nas vendas do comércio, e maior dependência de indústrias e varejistas da demanda dos mais ricos – sinal claro de aumento na desigualdade social. O percentual de pessoas cautelosas com o gasto, mesmo com recursos no bolso, está em 45%, acima da média global.
“Há um efeito do cenário atual, e também resquícios das crises anteriores, de 2015 e 2016, que se somam à pandemia”, afirma Jonathas Rosa, executivo de varejo da Nielsen
Segundo a GfK, as classes alta e média alta chegaram a uma fatia de 56% na venda de bens duráveis (TVs, refrigeradores, lavadoras) de outubro a dezembro de 2021, a maior taxa em 12 trimestres (três anos), o período de análise da pesquisa. De janeiro a março de 2020, com a pandemia na fase inicial, essas classes respondiam por 51% da compra e um ano antes, por 50%.
Aqueles com menos renda (classes baixa e média baixa) fizeram 39% das vendas no fim de 2021, quando Selic e inflação já pesavam nos custos de crédito e nas compras, versus 47% ao fim de 2020, período de liberação do auxílio emergencial. Pelos critérios da pesquisa, são renda baixa as famílias com ganho mensal inferior (sem impostos) a R$ 1.600; na média baixa, de R$ 1.601 a R$ 3 mil; na média alta, de R$ 3.001 a R$ 5.200 e na alta, acima de R$ 5.201.
Pela pesquisa da GfK, se concluiu que a renda “segura”- das pessoas empregadas (parte delas, das classes A e B) e de aposentados – está sustentando o consumo de bens duráveis. O trabalhador empregado respondeu por 49% das compras no quarto trimestre, a maior taxa desde o início de 2020. Os desempregados participaram com 14%. Já entre outubro a dezembro de 2020, com o “coronavoucher” (auxílio do governo federal) sendo distribuído, os empregados fizeram 44% das compras, e os desempregados, 18%. Foram ouvidas a cada trimestre, entre 10,5 mil a 11,5 mil pessoas, em questionários que cobrem vendas em lojas físicas e pela internet.
“Restam recursos na população de maior renda, mas a classe baixa está precisando de mais estímulos, que levam algum tempo para se refletir em consumo”, diz Felipe Mendes, diretor da GfK Brasil. No segundo trimestre, observa, trabalhadores mais pobres ainda vão carregar pressão mais forte em suas despesas, “mas é possível que o aumento do salário mínimo, dissídios em percentuais altos e a volta do Auxílio Brasil, no papel de estimuladores de demanda, melhorem a situação desse grupo após maio ou junho”. Haverá o impacto da queda no preço da energia e possíveis recuos na taxa de desemprego, mas, por outro lado, permanece o efeito dos juros, em alta desde 2021. “Há fatores negativos e positivos, e vamos ter que acompanhar os seus efeitos, mas será um equilíbrio difícil”.
O diretor da GfK lembra que, quando a crise começou, os mais pobres compraram mais “itens de sobrevivência”, crescendo a sua participação em vendas de micro-ondas ou fogão. “Com o Auxílio Brasil, ele aproveitou para equipar o lar e cresce participação e itens no geral, até chegar 2021 e ele perder sua posição na maioria dos produtos”. Já a classe alta reduziu sua fatia nas vendas por breve período em 2020, mas retomou sua posição no total, e hoje há uma disputa pela sua renda.
Dados da pesquisa da Nielsen mostram uma taxa maior no Brasil (45%), frente ao resto do mundo (em 38%), de pessoas que, apesar de não terem sido afetadas pela crise após 2020, não se sentem seguras a comprar. “Esses precisam ser mais convencidos a gastar”, diz o estudo, de 64 páginas. Já aqueles que guardaram dinheiro na crise e estão mais tranquilos com sua situação (o “grupo pequeno, mas poderoso”) são 6% no Brasil, a mesma média global, pela pesquisa feita em março, em 16 países.
Ainda há os “lutadores”, em dificuldade financeira até hoje, (22% no país e 23% no mundo), os “recuperados”, que passaram por perdas, mas já se recuperaram (19% e 21%, respectivamente) e os “inalterados”, que nada sentiram (8% e 12%, respectivamente). Segundo Rosa, da NielsenIQ, cerca de 80% da população está na faixa dos mais suscetíveis à crise (lutadores, cautelosos e recuperados). “Acompanhamos esses grupos desde 2016 e 2017, quando também explodiu a inflação e desemprego. E esse grupo viveu muitos processos cíclicos, muitos altos e baixos, então ele entrou na pandemia já bem fragilizado”, afirma.
Como o mercado de consumo se fortalece pelo ganho de escala no varejo e de expansão da produção na indústria, a perda de renda nas classes mais baixas compromete planos de investimento e geração de empregos. É por isso também que essa volatilidade preocupa o setor. “A margem apertada do varejo faz ele depender de muito volume para diluir custos, e se começa a achatar a base, acende um sinal de atenção”, diz o economista da Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Fabio Bentes.
Dentro dessa lógica, José Jorge do Nascimento Jr, presidente da Eletros, associação da indústria de eletrônicos, diz que parte do setor que vende itens de alto valor agregado, focado em classes de maior poder aquisitivo, está “bem satisfeita”. “Mas em termos gerais, o mercado está ruim desde outubro. Não há novos investimentos realmente relevantes e ainda há o anúncio [em março] da redução de 10% do Imposto de Importação de alguns bens, o que traz insegurança às empresas”, diz.
“A renda da grande massa de consumidores está esmagada. Por exemplo, vendemos em 2020 e parte de 2021 muitos aspiradores de pó-robôs, que custam R$ 2 mil. A gente vende um número ‘x’ deles, mas ‘10x’ de aspiradores normais, de R$ 300, R$ 400. É muito bom vender o robô, mas não é ele que gera mesmo arrecadação de tributos e volume”, completa ele.
Na avaliação de Bentes, da CNC, o anúncio de um IPCA em 1,62% em março (o maior índice para o mês desde 1994), adiciona risco ao cenário no curto prazo – a entidade projetava até dezembro alta de 0,9% nas vendas do comércio em 2022 e neste ano reviu para 0,5% (descontando inflação). Porém, diz ele, é preciso considerar “fatores compensatórios” ao longo de 2022, com efeito maior na segunda metade do ano.
“Dólar mais barato ajuda hoje, com estoques entrando nas lojas menos caros, e ainda há um ‘gap’ entre preços do atacado e do varejo, porque as redes não vêm repassando toda a pressão que chega do chão de fábrica”, diz. “A inflação no atacado, que já foi 25% em 12 meses, até dezembro, no acumulado até fevereiro está em 20%, e esperamos que o varejo ainda vá repassando a metade disso, pelo cenário ‘macro’ ainda difícil”.
O Itaú revisou na sexta-feira a projeção para o IPCA de 2022 de 6,5% para 7,5% e prevê a Selic continue subindo até 13,75% ao ano. O Santander Asset subiu, no mesmo dia, a estimativa de IPCA de 6,5% para 7% e vê juros em 13,75% no ano – 0,5 ponto acima da análise anterior.
No pregão da bolsa, na sexta-feira, os papéis de Via, Americanas e Magazine Luiza caíram 7,93%, 7,72%, 6,55%, respectivamente. Na visão do analista do Itaú BBA, Thiago Macruz, esse recuo precisa ser analisado sob a ótica do custo de capital, pressionado pelo quadro de inflação persistente e juros altos de forma mais longa. “Varejistas mais expostos à classe C até tendem a ter um melhor segundo semestre, mas em parte pela base de comparação desse período mais fácil sobre 2021”, diz ele.
Fonte: Valor Econômico