Com popularização, estúdios de tatuagem, hotéis e até padarias começam a aceitar criptoativos
Por Daniela Arcanjo e Lucas Bombana
A porta estreita em uma rua no Tatuapé, bairro da zona Leste de São Paulo, torna quase imperceptível o estúdio de tatuagem. A decoração em nada difere da maioria dos estabelecimentos do tipo, tampouco as tatuagens exibidas em suas redes sociais. Dar entrevistas para reportagens e trabalhos acadêmicos, porém, tornou-se comum no Wayne Tattoo e Piercing.
A procura é fruto de uma opção de pagamento pouco convencional adotada ali. Sandro Wayne Soares, 42, dono do estúdio, aceita bitcoins em troca de serviço desde 2013, quando o ativo completava cinco anos de existência. O tatuador é um entusiasta da criptomoeda. “Eu queria dar outra opção de pagamento, uma tecnologia nova”, afirma ele.
Com a popularização do bitcoin nos últimos anos, o universo das criptomoedas extrapolou as empresas de tecnologia. Estabelecimentos comerciais com atuação na economia real, como incorporadoras, hotéis e até padarias, passaram a aceitar que clientes usem os novos ativos digitais. A demanda gerou uma miríade de empresas que entraram no ramo para ser o intermediário das compras.
Em 2013, porém, Sandro começou do jeito mais rudimentar. Ele publicava na internet que aceitava bitcoins e recebia os pagamentos de carteira a carteira —ou wallet, como são chamados os softwares que armazenam os criptoativos.
“Eu buscava os entusiastas desse ideal libertário”, afirma ele, referindo-se à característica descentralizadora do bitcoin. As criptomoedas funcionam por meio do blockchain, sistema que armazena as transações por uma rede de computadores ao redor do mundo, sem precisar de um Banco Central para emitir dinheiro. “Na minha concepção é um problema o governo controlar o valor da nossa moeda”, diz.
Atualmente, as transações em criptoativos realizadas no Wayne Tattoo e Piercing são facilitadas por uma máquina da Pundi X, empresa sediada em Singapura. A procura por esse tipo de pagamento no estúdio estava mais aquecida antes da pandemia, mas agora nem o retorno do comércio tem entusiasmado os donos de criptomoedas. “A procura está baixíssima. Está zero”, diz Sandro.
Como a Pundi X, diversas startups têm ocupado a lacuna na intermediação dos pagamentos.
Desde novembro do ano passado, os pais que têm seus filhos matriculados em escolas atendidas pela fintech Educbank podem pagar a mensalidade da instituição em bitcoin. A startup atende escolas de ensino básico administrando as mensalidades, que entram integralmente na conta da instituição na data limite de pagamento, independentemente de eventuais atrasos.
O pai que optar pela novidade vai acessar, por meio de um QR Code, a carteira digital da fintech e o valor da mensalidade na criptomoeda naquele momento. Ao receber do cliente, a empresa imediatamente converte o ativo para reais, evitando lidar com as já conhecidas oscilações bruscas da moeda.
“A educação sempre teve a fama de ser a última a receber as novidades por não ser uma indústria tão lucrativa. A gente quer reverter isso”, diz Lars Janér, cofundador e presidente-executivo da empresa.
No mercado das construtoras, a Even, empresa de capital aberto com ações negociadas na Bolsa de Valores brasileira, fechou em novembro do ano passado uma parceria com a plataforma de negociação de criptomoedas Mercado Bitcoin.
Pelo acordo, os clientes que assim desejarem podem adquirir até 100% do valor dos imóveis comercializados pela Even se valendo da bitcoin ou da criptomoeda ethereum.
A primeira operação realizada por meio da parceria ocorreu em dezembro, quando duas unidades do empreendimento Facto Paulista, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, foram quitadas com criptomoedas, em um valor aproximado de R$ 1 milhão.
“Queremos facilitar a vida dos nossos clientes e oferecer a possibilidade de pagamento ágil nesse tipo de moeda que tem crescido bastante”, diz Carlos Wollenweber, diretor financeiro da Even.
Já o Parque Hotel Holambra, no interior paulista, passou a aceitar o pagamento com bitcoin há cerca de três anos e ainda aguarda o primeiro hóspede interessado em acertar as contas na modalidade.
“Acredito que muitas pessoas que possuem bitcoin não sabem ao certo como utilizar, ou simplesmente preferem guardar como um investimento. Diversos clientes já comentaram sobre, mas até o momento nenhum realizou um pagamento”, diz Guilherme Coelho, diretor executivo do hotel.
Cansada de esperar clientes, a clínica veterinária PreVet Home parou de aceitar criptomoedas como meio de pagamento. A ideia foi dos desenvolvedores do site, que se encarregariam da operação caso algum interessado aparecesse, o que nunca aconteceu.
Renato Nagliati, 34, secretário da clínica, acredita que eles talvez tenham queimado a largada. “Está ficando cada vez mais popular, e provavelmente a gente vai começar a aceitar isso efetivamente quando a bitcoin estiver na mão das pessoas, no dia-a-dia mesmo”, afirma.
Apesar de começar a se comportar como uma moeda, para o Estado brasileiro essa troca é uma permuta de bens, regulamentada pelo capítulo II do Código Civil brasileiro. Seria, em última instância, como dar um carro usado como entrada em um apartamento.
Por ser considerada um bem intangível, a criptomoeda pode ser aceita como meio de pagamento no Brasil, mas não exigida. “São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira”, determina a seção III do Código Civil.
Parte da comunidade entusiasta da tecnologia, porém, acredita que esses ativos têm características de moeda. Eles podem liberar o devedor de uma dívida, por exemplo —é o poder liberatório.
“Moeda é algo que seja socialmente aceito como meio de troca”, afirma a procuradora do Rio Grande do Sul Melissa Guimarães Castello. Ela é autora de um artigo de 2019 sobre tributação de criptoativos para a revista de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Para uma corrente mais legalista, diz, moeda será apenas o que for emitido ou reconhecido por um Estado.
No final de fevereiro, a CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do Senado aprovou uma proposta que regulamenta as operações financeiras com criptomoedas no Brasil.
O texto, que está na Câmara dos Deputados, inclui prestadoras de serviço com ativos virtuais no grupo de instituições financeiras. Elas estariam, portanto, submetidas a todas as normas da lei de crimes financeiros e do Código de Defesa do Consumidor.
A Folha mostrou que também o Banco Central se debruça sobre o tema. A autarquia avalia a elaboração de diretrizes para impor fiscalização às transações financeiras com criptomoedas no Brasil e definir penalidades.
Durante a reportagem, a Folha contatou diversas empresas que aceitam criptomoedas, mas que nunca tinham feito vendas assim. Outras deixaram de aceitar.
Segundo André Horta, presidente-executivo da BitconToYou, o escasso interesse pode estar ligado à baixa que o bitcoin, criptomoeda mais conhecida, enfrenta. Desde novembro, o ativo sofreu uma queda de quase 40% após meses de altas seguidas.
“Se a pessoa compra um bitcoin batendo quase R$ 370 mil e agora vê que está a R$ 220 mil, ela não vai pegar esse ativo que comprou tão caro e gastar em uma roupa. Na cabeça dela, se fizer isso vai estar realizando o prejuízo. Ela segura na carteira e espera a cripto voltar”, afirma.
No mercado de criptoativos desde 2010, a corretora começou a intermediar o pagamento em criptoativos no varejo no início de 2021. “A gente viu que o mercado tinha uma demanda de outros tipos de serviços”, diz Horta. Atualmente, a empresa atende cem lojas físicas.
“É tímido ainda”, afirma. “Realmente, hoje as pessoas ainda usam a criptomoeda como investimento especulativo.”
Fonte: Folha de S. Paulo