Varejista estipula tolerância zero para atos de racismo por fornecedores e parceiros, com possibilidade de rompimento de contratos e multas
Por Amália Safatle
Cinco meses após a morte violenta do negro João Alberto Freitas, espancado por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, o grupo que comanda a maior rede de supermercados do país reúne nesta quarta-feira 16 mil fornecedores e parceiros em um evento on-line. Seu presidente, Noël Prioux, falará sobre novas cláusulas nos contratos, estipulando tolerância zero para atos de racismo.
Trata-se de uma reação a um episódio que gerou comoção nacional. João Alberto foi espancado até a morte em 19 de novembro do ano passado, véspera do Dia da Consciência Negra. Criou-se uma onda de protestos em redes sociais, com campanhas de boicote, e nas ruas de várias capitais como Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Belo Horizonte e Fortaleza. Os seguranças acusados do crime, da empresa terceirizada Vector, estão detidos e uma funcionária do Carrefour encontra-se em prisão domiciliar, aguardando julgamento.
Companhia que comanda a maior rede de supermercados do país faz reunião hoje com 16 mil fornecedores
Com a reputação abalada, o Carrefour criou um comitê de diversidade e anunciou oito políticas anti-racistas que serão reafirmadas e detalhadas no evento desta quarta-feira.
O grupo vai informar que caso o fornecedor apresente uma atitude racista, o contrato com o Carrefour será rompido e uma multar, equivalente a 30% do valor anualizado do contrato, será cobrada. Outros compromissos são de apoio à carreira de pessoas negras, percentual mínimo de 50% de negros em novas contratações, criação de canais de denúncias e estímulo ao empreendedorismo negro.
Até setembro, o Carrefour não quer ter nenhum segurança terceirizado. Para ter sua própria força de seguranças, até o momento, 416 pessoas foram contratadas e mais 60 serão admitidas. Esse número será somado a funcionários que estão sendo deslocados para a função. A empresa não soube informar qual será o efetivo total. O investimento nesse novo modelo de segurança soma de cerca de R$ 5 milhões. Isso inclui contratações, ferramentas de monitoramento e capacitações.
“É uma mudança global importante”, disse, ao Valor, o presidente do Carrefour no Brasil, Noël Prioux. “Estabelecemos mais de dez competências necessárias a esses funcionários, entre as quais empatia, habilidade de comunicação, capacidade de interação, trabalho em equipe, tudo o que chamo de inteligência emocional. Porque não é simplesmente segurança. Segurança é para ajudar os clientes, não para puni-los”, diz Prioux. Ele lembrou que ficou em choque com a tragédia envolvendo João Alberto.
O evento desta quarta-feira prevê um debate com os presidentes da Nestlé, Marcelo Melchior, e da P&G, Juliana Azevedo. Também deve participar Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas, entre outros membros do comitê de diversidade que ajudou o Carrefour a desenhar sua nova política.
Segundo Prioux, cada funcionário da segurança terá suas ações monitoradas por câmera, para que não haja má interpretação dos fatos. “Queremos ser 100% transparentes. A ordem é capacitação, capacitação e capacitação, até o momento em que verificarmos que a pessoa está apta a exercer essa função. Porque nem todo mundo pode trabalhar como segurança”, diz.
Prioux acredita que a condenação em 20 de abril de Derk Chauvin, policial que matou o negro George Floyd nos Estados Unidos, contribui para o questionamento da qualidade do treinamento de seguranças e policiais no Brasil. “Temos que repensar o modelo de capacitação das pessoas. Ver se a pessoa tem ou não capacidade de exercer este tipo de trabalho. Qual sua capacidade de comunicação para lidar [com o público] na rua ou em uma loja? Este é um bom momento para tomarmos consciência da situação”, afirma.
O executivo atribui a ação violenta que matou João Alberto a um descontrole dos seguranças. Mas admite que há racismo estrutural no Brasil, ao contrário do que diz a alta cúpula do governo. Em declaração dada justamente no episódio do João Alberto, o vice-presidente Hamilton Mourão negou que houvesse racismo no Brasil.
Apesar de episódios como o do João Alberto e de outros casos de violência e discriminação já ocorridos no Carrefour, Prioux diz que o grupo possui ações voltadas à diversidade há tempos. Mas observa também que não foram suficientes e que a visão era incompleta, tanto para a aceitação de diferenças do público externo, como para a composição interna no quadro de funcionários e lideranças. Segundo ele, o comitê tem servido para abrir os olhos e trazer questionamentos. A empresa identifica dificuldades, por exemplo, em tecnologia da informação, e passou a montar grupos para capacitar pessoas durante um a três anos, para que elas se tornem lideranças no futuro.
No Carrefour, 63% dos colaboradores e 53% da liderança se autodeclaram pretos ou pardos. As mulheres respondem por 48% do total e ocupam 37,38% das posições de liderança, o que leva em conta cargos desde a gerência de loja. O grupo emprega cerca de 200 pessoas trans, 1.250 com algum tipo de deficiência e 270 refugiados.
Para ele, as grandes empresas podem descobrir suas falhas em políticas de diversidade por meio de um check-up, como o Carrefour está fazendo. Mas as menores precisam de suporte. “É isso que tentamos oferecer neste momento. Vamos disponibilizar uma plataforma digital, com manual e políticas, para que todas as empresas com as quais nos relacionamos possam analisar se a diversidade está no ponto adequado”.
Assim que a aquisição do Big for aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o grupo vai se tornar o maior empregador do país, com 137 mil funcionários. Hoje emprega 96 mil, em 721 lojas.
As grandes empresas, diz Prioux, precisam se posicionar com ações concretas e apontar soluções no campo socioambiental e na defesa de direitos humanos e da democracia. “A sociedade dirá se o que estão fazendo é suficiente ou não”, diz.
Fonte: Valor Econômico