Companhia ativou 40 mil novos pontos de venda durante a pandemia e vendas físicas sustentaram receita no ano
As grandes marcas de varejo viveram uma verdadeira corrida digital em 2020. Com o mundo de portas fechadas, o comércio eletrônico foi a salvação da lavoura para a maioria dos negócios. Menos para a Havaianas, dona de um dos produtos mais tradicionais do país e considerado também um dos mais democráticos, o chinelo que virou sinônimo de categoria. A Alpargatas, que também controla a rede de moda Osklen, experimentou uma realidade bem diferente neste ano.
Na contramão do setor, o que segurou o negócio durante a fase aguda da pandemia foram – pasmem! – as vendas físicas, geradas por uma estratégia de posicionamento em novos pontos de venda. Combinada às mudanças de portfólio e ao dólar alto que puxou a receita das exportações, a tática garantiu que a receita líquida dos primeiros nove meses do ano ficasse praticamente estável em relação ao ano passado, em 2,26 bilhões de reais, apesar da redução de volume.
De maio até agora, a Havaianas ativou 40 mil novos pontos de venda, passando de 260 mil para 300 mil posições. A iniciativa contribuiu para que tivesse o melhor terceiro trimestre de sua história. De julho a setembro, a receita líquida consolidada da marca aumentou 24% e o volume, 11%. Já o Ebitda avançou 29%, com ganho de margem de 7 pontos percentuais.
Os números foram suficientes para que o presidente da Alpargatas, Roberto Funari, se sentisse confortável para dizer que as Havaianas foram a marca “do ficar em casa”, quase o traje oficial da pandemia. Ou vai dizer que não fez nenhuma live ou reunião todo arrumadinho ou maquiada e com “as legítimas” nos pés?
Foi durante a pandemia que a Alpargatas alcançou o maior valor em bolsa de sua história, negociada hoje por mais de 22 bilhões de reais.
Embora no acumulado do ano até setembro a receita tenha ficado estável, o Ebitda sofreu, afetado principalmente pelos impactos da covid-19 sobre a Osklen: caiu de 376 milhões de reais, em 2019, para 282 milhões de reais, neste ano. A margem recuou de 16,5% para 12,5%, nessa mesma base.
Funari explicou em entrevista ao EXAME IN que os 40 mil novos pontos de venda eram, em boa parte, clientes que já tinham ou tiveram relacionamento com a Alpargatas, mas que estavam “dormentes”, ou seja, tinha deixado de ter os produtos à venda. A estratégia colocou as havaianas no comércio que podia ficar aberto, como farmácias, lojas de conveniência e supermercados. “Junto com essa reativação, fizemos um esforço de posicionamento do melhor portfólio para cada tipo de local, com base em dados internos.”
Papai Noel só no Carnaval?
Ter vivido a salvação com as lojas físicas, não significa que a Alpargatas não acredite no digital. Ao contrário, no encontro que teve com investidores nessa semana, Funari, que assumiu a liderança do negócio em janeiro de 2019, frisou que a companhia está modificando seu DNA para digital. No momento, nenhum discurso diferente desse é aceito pelo mercado. A ideia, porém, é que além de vender pela rede mundial, a empresa também use a inteligência de dados para suas decisões.
Mas, por enquanto, o e-commerce responde por apenas 3% das vendas da marca Havaianas, segundo fontes próximas à companhia. A empresa não revela esse detalhe: informa apenas que a rede própria de varejo e o digital respondem por uma fatia entre 10% e 15% das vendas. Embora o comércio direto ao consumidor propriamente ainda seja pequeno por meio do canal digital, a influência gerada é grande. Pesquisas internas mostram, segundo Funari, que sete em cada dez consumidores foram influenciados na compra por uma comunicação digital.
Foi por saber que ainda faltavam passos importantes na frente de comércio eletrônico que a Alpargatas partiu para uma reação a partir dos pontos presenciais. “Tem um atraso evidente, mas o mais importante é que a empresa soube reagir mesmo assim”, diz um investidor do negócio. “E agora está se esforçando para ajustar isso”, completa.
Foi só em outubro que a companhia trouxe para dentro de casa toda a estratégia digital e passou a cuidar ela própria do canal de e-commerce, antes terceirizado. No terceiro trimestre, também lançou a ponto.com da Havaianas, estruturada em uma apresentação moderna e totalmente repaginada — com foco em situações de uso e que aproveitam para apresentar novos produtos, com vestuário e acessórios da marca. Só que não estava preparada para a demanda que encontrou.
Quem entra no site da companhia vê saltar na tela, logo de cara, um pedido de desculpas e um aviso: só garante entregas com prazo de 60 dias — além do Natal, portanto. A demanda gerou uma fila de pedidos em tamanho superior ao que a empresa estava pronta para atender por esse canal. A expectativa de Funari é “normalizar” a situação em algumas semanas — o que equivale a entregas em 48 horas para São Paulo e Rio de Janeiro, e entre cinco e sete dias para o restante do país.
O executivo não deu detalhes a respeito de onde estava o gargalo, mas garantiu que as equipes estão sendo ampliadas e que a questão foi mesmo uma procura acima do esperado. Enquanto isso, “o comunicado vai ficar página enquanto precisar ficar”, afirma Funari. Sem revelar valores, a empresa divulgou que as vendas digitais avançaram 280% de julho a setembro, na comparação anual.
Segundo o executivo, tudo que foi feito na frente digital estava no planejamento, só que a execução foi acelerada. “Fizemos cinco anos em cinco meses”. Entre investimentos (capex) e despesas com tecnologia (opex), a Alpargatas deve terminar 2020 com 62 milhões de reais dedicados à tecnologia. Em 2021, esse valor vai dobrar: o orçamento previsto é de 120 milhões de reais.
Glamour e engajamento
Funari não exagera quando diz que a principal qualidade da Havaianas é ser um produto democrático. A marca conta com cerca de 200 famílias, como a direção da empresa costuma chamar as linhas de calçado, desde as mais tradicionais com as tiras azuis até modelos com glitter. Um dos lançamentos recentes se chama Havaí, em homenagem ao nome da marca, e conta com Tati West, surfista brasileira radicada no arquipélago do Pacífico, nas campanhas publicitárias.
O esforço de marca tem razão de ser. A concorrência está por todos os lados. Recentemente, a Arezzo, nome forte de moda em calçados, também anunciou sua aposta nos tais flip flops.
Enquanto por aqui os chinelos havaianas podem ser encontrados em qualquer supermercado de esquina, no exterior a marca tem outro posicionamento. “No mercado internacional a Havaianas é considerada um acessório de moda”, afirma Funari. “Nossos esforços de venda lá são de sandálias na faixa de 20 a 25 dólares ou euros.” Um dos modelos que faz mais sucesso na Europa e nos Estados Unidos é a com a bandeirinha do Brasil. Este ano, em plena pandemia, foi inaugurada uma loja conceito da Havaianas na Carnaby Street, um dos polos da moda em Londres.
As colaborações com outras marcas, ou collabs no jargão da moda, ajudam a criar valor de marca. Isso tem se tornado cada vez mais comum nesse mercado. O exemplo sempre lembrado é o da associação entre a sofisticada Louis Vuitton e a label de streetwear Supreme. No caso da Havaianas, recentemente foi apresentada a terceira edição do chinelo de borracha com a maison francesa Sant Laurent. A peça foi criada pelo diretor artístico da grife Anthony Vacarelloe e está à venda apenas na loja Saint Laurent Rive Droite, em Paris.
É verdade que as parcerias têm sido feitas com marcas diversas, desde a fabricante de bonés New Era até a franquia de jogos Minecraft. Mas a premiunização é uma estratégia central da empresa, segundo Funari. No meio do ano, a Havaianas lançou sua sandália mais sofisticada até hoje. Trata-se da Tradi Zori, um calçado inspirado nas zoris, os milenares chinelos japoneses com sola de palha de arroz. Mais robusta, com camada tripla de borracha e formato mais quadrado, custa 239 reais, ou cerca de dez vezes o preço do modelo de entrada. Vale a curiosidade lembrar que o próprio chinelo havaiana, quando idealizado no começo dos anos 60, foi inspirado no modelinho japonês de palha.
“Queremos cada vez mais ser percebidos como uma marca de moda e nos aproximar do streetwear”, diz Funari. É o que os executivos da Alpargatas chamam de expansão da ocasião de uso. A Havaianas é onipresente na praia e está muito associada ao verão. O sonho da empresa, no entanto, é que os usuários encarem o calçado como uma opção também para ir ao cinema, ao restaurante e até mesmo no trabalho.
No ano passado, a Havaianas lançou uma campanha para incentivar as empresas a autorizar o chinelo como parte do dress code corporativo. Editores de moda passaram então a dar consultoria de estilo para os funcionários das companhias parceiras, ensinando como harmonizar jeans e camisas com chinelos de dedo. Chamado Havaianas Friendly, o movimento virou uma unidade de negócios independente dentro da Alpargatas. Já participaram da ação 27 companhias de setores diversos, entre elas a SAP, a Cogna (ex-Kroton) e a Klabin.
Em empresas mais tradicionais, as consultoras orientam os funcionários a usar, por exemplo, o modelo Soul Collection, que nada mais é do que uma alpargata de tecido com a inconfundível sola de borracha. O apelo urbano da Havaianas se traduz ainda na coleção de roupas. Lançada timidamente há cinco anos, a linha de vestuário estava disponível apenas em duas lojas conceito da marca, na rua Oscar Freire, em São Paulo, e na rua Garcia D’Ávila, no Rio de Janeiro. Hoje, calças, camisas, bermudas, camisetas e bonés estão à venda no site da marca e, segundo Funari, já representam uma fatia importante do faturamento.
A diversidade é um dos valores propagados pela Havaianas nesse movimento de ampliação da base de consumidores. Cerca de 20 linhas de calçados recentemente tiveram abolida a divisão de gênero no e-commerce e passaram a ter numeração estendida até 45/46. Parte da renda das vendas é direcionada para a All Out, movimento global em defesa dos direitos LGBT+.
A aposta imediata da Havaianas, no entanto, são a campanha de verão, chamada #pordiasmaishavaianas, e os kits de presentes para o Natal. Apesar de responder por uma porcentagem pequena das vendas, a presença online da Havaianas é também estratégica. Talvez não pela conversão, mas pelo impacto.
Fonte: Exame