Magnata do luxo on-line conta à Exame os motivos da associação bilionária com o Alibaba e revela que cliente comprou US$ 1 milhão em joias na pandemia
Logo que o marketplace inglês Farfetch deixou de ser apenas o grande “unicórnio” da moda global, em setembro de 2018, quando amealhou 885 milhões de dólares em um vultoso IPO na bolsa de Nova York, a realidade se impôs. Após a disparada de 50% no valor das ações no primeiro dia de trade, as linhas dos dois anos seguintes apontavam para baixo mesmo ao menor sinal de fôlego do modelo concebido pelo português José Neves, 46, de acoplar, numa única plataforma, o melhor da moda disponível em lojas pelo mundo e assumir entregas ágeis em escala global.
Tudo mudou neste ano, que embora tenha começado com uma queda acumulada de 60% no valor do papel em relação à primeira martelada, até esta terça-feira (24) escalava 365%. O boom se explica, em parte, pela hiperdigitalização do varejo na pandemia, que obrigou clientes a ficar em casa e satisfazer seus desejos virtualmente. Porém, no caso da empresa que mudou a relação do luxo com a internet, metade do salto aconteceu só neste mês, quando foi anunciado um acordo de 1,15 bilhão de dólares com a chinesa Alibaba, o grupo suíço Richemont e a holding francesa Artemis.
Tanto a gigante do e-commerce asiático quanto o conglomerado detentor de marcas como Montblanc, Cartier e IWC, aportam de cara 300 milhões de dólares cada, num negócio a ser fechado no fim do primeiro semestre de 2021.
Após três anos, outros 600 milhões entrariam em jogo, somados aos 50 milhões que a Artemis do magnata François Henri Pinault, dona do grupo Kering (Gucci, Bottega Venetta e Saint Laurent), desembolsará numa espécie de selo de qualidade do negócio –a holding de luxo já era uma das acionistas de primeira hora da Farfetch.
Trata-se de uma reviravolta na importância mercadológica do consumo de luxo virtual. Com a joint venture, que cria um conselho consultivo no que foi chamado por eles de New Luxury Retail (Novo Varejo de Luxo), as quatro gigantes irão dividir as tecnologias, plataformas, integração de logísitca e estratégias para desenvolver o novo ambiente de compras de luxo na China.
Até setembro passado, o modelo foi usado com exclusividade pela Chanel, que reformou sua lendária loja na rua Cambon, em Paris, e agora, com o fim do contrato, abre caminho para a ideia se disseminar pelo mundo. Entre os possíveis países onde a Farfetch irá fechar acordo está o Brasil.
Quem dá a dica é o próprio Neves, que recebeu a Exame no centro logístico do marketplace em São Paulo, em um rasante que deu no país para reuniões sigilosas. Confira trechos editados da conversa.
O mercado foi pego de surpresa com o acordo entre o sr., Alibaba, Richemont e Artemis. O que ele significa no contexto global do varejo?
A integração entre os negócios físicos e as plataformas digitais é um modelo revolucionário. Vemos o Airbnb agora entrando em bolsa, além de negócios como Uber e Booking.com, que apontam para essa mudança poderosa da digitalização dos setores industriais. Quando lançamos o ‘store of the future’, no mesmo ano o [CEO da Alibaba] Daniel Zhang fez o mesmo, quando implementou a ideia de ‘new retail’, integrando o negócio físico ao digital, por que você sabe, na China há milhares de pequenas lojas que estão ligadas em rede pela plataforma da Alibaba. Conversamos por três horas e vimos que acreditamos na mesma ideia de futuro, um nível de interatividade que digitalizará por completo a venda, o oposto do que prega a Amazon, que quer destruir a venda física.
Por que a Amazon quer destruir?
Veja, sou cliente “prime” deles, compro tudo ali. Mas é conveniência, o próprio modelo deles é de conveniência, valor e velocidade. Esses não são os valores da moda, porque ela funciona por emoção. Ninguém precisa de mais uma bolsa, sandália ou roupa. Compra-se a cultura de moda. A Amazon não é boa nisso. Tanto é verdade que players de categorias específicas, como a Chewy, de produtos para pets, ou a Wayfair, de decoração, têm um sucesso extraordinário, combatendo o modelo da Amazon, porque são negócios aspiracionais. Eles têm o mesmo pensamento da Farfetch, de que nada na plataforma será prejudicial para os negócios abrigados ali. O luxo é o extremo disso, tem um valor intangível. E bem, somos líderes no mundo nesse segmento.
Do ponto de vista estratégico e financeiro, essa associação supre as deficiências de cada um dos grupos na relação entre Ocidente e Oriente. Parece haver barreiras culturais que impedem a troca, o desenvolvimento sustentável das empresas.
Temos dois ângulos [no acordo]. O primeiro é esse ‘luxury new retail’, a materialização das nossas visões de varejo com o auxílio da Alibaba. O acordo não é apenas de 1,15 bilhão de dólares, é o “know how” em categorias que vamos aprender como funciona, de um lado e de outro. O segundo, claro, é a China e como podemos crescer ali. É verdade que lá poucos negócios ocidentais têm sucesso, veja a eBay, ou Uber, que entrou e saiu.
Trata-se de nacionalismo?
No caso dos chineses, não, mas o inverso, no Ocidente, sim. Na China há a questão de ser difícil competir com uma empresa dali por todos os motivos possíveis. Atrair talentos para dentro, como fazemos no Ocidente, por exemplo. As empresas chineses também estão dispostas a perder dinheiro por mais tempo. O melhor exemplo é o [aplicativo de transporte] DiDi, que estava melhor financiada, tinha uma tecnologia melhor, e não deu saída para a Uber na China a não ser sair. No caso da Farfetch, acho que foi isso também que a Alibaba identificou, esse potencial absurdo que temos. Foi como um selo de garantia pelo nosso sucesso dos últimos meses no país.
No caso da Richemont e da Artemis, que têm no coração dos negócios a monomarca, é importante essa digitalização na China, certo?
Sim, e ficamos felizes porque essas duas empresas materializam a vontade do setor de estar conosco. Veja, eu comecei como programador, e, bem, os engenheiros têm ideias que não servem para nada às vezes [risos]. O inventor acha fantástico, mas às vezes o cliente, não.
Mas vocês agora têm concorrência. O [e-tailer alemão de moda] MyTheresa, por exemplo, deve realizar um IPO nos Estados Unidos.
Mas estamos em escala global e nossos concorrentes são varejistas. Acho que o MyTheresa vai ter sucesso na oferta, mas o modelo deles é armazenar estoque e fazer a venda, o nosso é ser uma plataforma de soluções. Não temos concorrentes, quer dizer, tínhamos a Alibaba na China e, bem, agora a Amazon lançou o modelo de Luxury Store… vamos ver como se saem. Nosso diferencial é o DNA, o slogan “for the love of fashion” que estava escrito na abertura da bolsa. Estamos ligados ao respeito pela criatividade e pelas butiques de moda.
Se todo mundo abrir e-commerce, não prejudica vocês?
Não, não prejudica. Acreditamos que todas as marcas têm de ter um brand.com, e por isso criamos a Farfetch Solutions, na qual já temos 20 marcas, algumas do grupo LVMH, como a Emilio Pucci. A plataforma com [a loja de departamentos] Harrod’s já é um sucesso. Não acredito que estamos contra a monomarca, mas na ideia de que o consumidor tem de estar no centro da estratégia. Ele não acorda e diz, ‘hoje sou on-line, amanhã sou off-line, agora sou monomarca’. Você anda por São Paulo e pode entrar na Osklen da Oscar Freire, comprar pelo aplicativo da Farfetch, entrar na NK Store, comprar pelo sites. Se colocamos o consumidor no centro do pensamento estratégico, não é um jogo de soma e anula, porque temos muito mais a ganhar suportando os vários modelos de compra do que tentar um modo versus o outro.
O último trimestre foi estelar para a Farfetch, com um aumento de receita na ordem de 71%, ainda que haja perdas substanciais após as taxas. A pandemia foi um turning point?
Sim, levou a uma mudança de paradigma. A vendas online em um ano representaram no luxo os cinco anteriores juntos. Acrescentamos 900.000 clientes nos últimos seis meses, fechando com 2,7 milhões de compradores ativos. Isso nos mostra que há muita gente descobrindo o que é comprar luxo online. As marcas em geral sempre achavam importante, mas não era vital na estratégia. Agora, entendem que é vital para o futuro delas. Nessa segunda fase da pandemia, 120 parceiros estão em lockdown [na Europa], então nossa missão é muito clara de ser um apoio nesse momento. Penso que, após a Covid-19, essa mudança vai continuar a gerar frutos. Não diria que ela foi boa para o negócios da Farfetch, porque nenhuma crise é boa. Mas, é fasto que ela acelerou o que já estava previsto para até 2023, que é o consumo de moda ser on-line em 25%. O mercado saiu de 12% em 2019 e, neste ano, está em 23%. A Farfetch teria esse crescimento mesmo sem a pandemia.
Mas houve críticas e questionamentos sobre a capacidade da Farfetch ser rentável.
Mesmo antes da pandemia dizíamos que ela seria rentável em 2021. Isso já iria acontecer. Nossos acionistas, tanto enquanto éramos empresa privada quando, depois, pública, viram a oportunidade clara de construir uma líder do mercado. Investimos muito, e o Brasil é um ótimo exemplo, porque somos o único player internacional do segmento que quis arriscar, e está aqui há dez anos. Para nós os motivos são claros, porque a partir de São Paulo fazemos a logística da América Latina. Esses investimentos atrasaram a rentabilidade, e vejo que a Farfetch poderia ter sido rentável antes se não houvesse uma ambição de ser global. Temos investimentos que começaram a dar frutos agora, como a Farfetch Platform Solutions. Nunca houve nenhuma dúvida que haveria lucros, mas atrasaríamos a rentabilidade. Nossa estratégia foi sempre equilibrada.
Fala-se que há uma poupança forçada por parte dos consumidores de alta renda, impedidos de gastar com luxos que precisam do contato físico. Nesse sentido, o altíssimo luxo pode ser vendido on-line?
Sem dúvidas. A maior venda da Farfetch aconteceu na pandemia, quando uma única cliente comprou 1 milhão de dólares em joias. Não de posso dizer de onde, nem de qual marca, mas foi um conjunto de poucas peças em um montante alto. Não havia a marca no catálogo, mas ela acionou nosso serviço Farfetch Concierge, e buscamos as peças. Então, é possível vender Cartier, Bvlgari, Chanel… Veremos em breve um aumento de três dígitos no valor do consumo de luxo on-line.
Mesmo no Brasil? Pergunto também porque havia o projeto de instalar aqui uma ‘loja do futuro’ da [multimarcas inglesa] Browns, da qual a Farfetch é dona. No evento Farfetch OS, em Londres, há quatro anos, foi dito que ela seria dentro do complexo Cidade Matarazzo, em São Paulo, um projeto que não saiu do papel.
Nós continuamos a acompanhar o projeto, porque é revolucionário. O [empresário francês e criador do projeto em São Paulo] Alexandre Allard tem um visão incrível, ambiental inclusive, num projeto que talvez seja o mais sustentável do mundo. Mas nada foi decidido ainda, mas sabemos, porém, que não iremos entrar com um ponto da Browns. Claro, isso não impede de sermos parceiros oferecendo tecnologia para uma monomarca, ou para o modelo de loja que ele achar viável.
Então não haverá Browns em São Paulo. Por quê?
Foi uma decisão estratégica. Apenas isso.
Mas olhando para o percurso desse modelo ‘loja do futuro’, conectada, o luxo está preparado para tantas mudanças> Há uma reticência das grifes em entrar de cabeça.
Nossa parceria com a Chanel é o exemplo óbvio de que sim. No caso do modelo ‘store of the future’ havia um contrato de exclusividade com a marca até setembro e, agora, estamos conversando com outros grupos. É absolutamente certo que haverá essa mudança, até porque, o consumidor coloca pressão sobre o setor. Veja o caso dos restaurantes da Europa. O delivery era algo usado por restaurantes de baixa gastronomia, e agora, até o Nobu entrega em casa.
Essa integração acentuada entre o físico e on-line será replicada no Brasil?
O povo brasileiro é extremamente sofisticado no digital. Em muitas áreas, como nas redes sociais, o país está nas primeiras posições em nível global. Penso que, brevemente, teremos novidades.
Foi sobre isso que o sr. veio tratar aqui? Haverá uma ‘loja do futuro’ no próximo ano?
Sim, é bem possível.
Fonte: Exame