Uma década e meia em cinco meses ou metade do que se viu em quase um século. A janela de mercado que se abriu para as ofertas públicas iniciais de ações no país (IPOs, na sigla em inglês) fez o varejo alcançar um recorde de operações na bolsa e, pela primeira vez, com volume representativo de redes regionais, fora do eixo Rio-São Paulo, que nem sequer estavam no radar de gestores e analistas. Grandes fundos, sócios de algumas dessas empresas, saíram dos negócios ou estudam se desfazer de parte de suas participações com os IPOs. Entre abril e agosto, 16 ofertas foram montadas (entre as já concluídas e em andamento) e devem movimentar R$ 27,3 bilhões, apurou o Valor. É mais que o volume da última década e meia, quando 17 IPOs no setor movimentaram R$ 18,8 bilhões de 2005 a 2019.
Esse movimento já leva a um ajuste de expectativas, com o mercado mais seletivo e atento aos cálculos de preços. Segundo levantamento da consultoria Varese Retail feito a pedido do Valor, desde a primeira abertura de capital do setor, em 1940, com a oferta de Lojas Americanas, foram 33 IPOs, ou seja, atinge-se agora a metade do número registrado em 80 anos. É um volume menor apenas que o da construção civil, que lidera as aberturas de capital hoje. Com isso, o total de varejistas com ações negociadas na B3 deve passar de 24 antes de março para, pelo menos, 40, se todos os processos forem concluídos.
Abriu-se, com isso, discussões em torno da qualidade dos ativos e da interiorização do varejo de capital aberto. Segundo consultores, o alto volume de operações, em plena pandemia que afetou o consumo, se justifica pela busca de investidores por empresas com foco em produtos essenciais, como supermercados, segmento “pet” e farmácias, e negócios digitais, mais resilientes. Mais da metade dos IPOs estão nessas áreas.
“Este ano tem sido sustentado pelo auxílio emergencial, que já ajudou muito esses setores; 2021 será bem mais difícil, mas mesmo sem o auxílio, essas empresas sofrem menos”, diz Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores.
Para Henrique Esteter, analista da Guide Investimentos, o excesso de liquidez no mercado aumentou a demanda por ativos de risco, mas há também um represamento das ofertas no varejo há anos. “Muitos fundos que são sócios buscavam o IPO para o desinvestimento, mas não houve condições ou tempo hábil para a saída, e agora há”, diz.
Nesse grupo, o caso de maior destaque é a saída da gestora americana Advent International da varejista de material de construção Quero-Quero. Fundo da gestora tinha 88% das ações ONs, fatia agora reduzida a zero. Saiu com mais de R$ 1,8 bilhão da oferta de R$ 2,2 bilhões, após 12 anos na rede – e pagou R$ 300 milhões em 2008. Outro caso é da Warburg Pincus, sócia da rede Petz. O fundo da gestora, com 55% da cadeia, deve, no mínimo, reduzir a sua posição a menos da metade, de 55% para 21%, segundo prospecto. Se forem vendidos lotes extras de ações, a posição cai para 5,5%.
Para Alberto Serrentino, sócio da Varese Retail, os IPOs estão saindo também porque “faltam novas e boas histórias no varejo”, como há anos se vê em mercados de capitais mais maduros. “Não são ofertas em decorrência apenas dessa montanha de liquidez. O mercado está atrás de mais ‘cases’ no varejo, além de Magazine Luiza e Renner, em parte porque alguns ativos já caminham para suas máximas históricas, e pela perspectivas do avanço do digital após a pandemia, o que também dá um fôlego maior a tudo isso”.
Não há dúvida que investidores buscam cadeias com um braço on-line mais robusto, mas avaliações de empresas com preços “esticados” fez o mercado fazer mais conta, dizem dois analistas ouvidos. Além disso, números de parte das redes mostram prejuízo ou lucro em queda, e nem todos os prospectos trazem detalhamento de informações. A maioria das redes será listada no Novo Mercado, nível mais alto de governança.
“Isso tudo acabou acendendo o sinal amarelo. Há algumas operações que não se esperava, fora do radar, dentro do discurso da digitalização, e outras para reduzir dívida e até para pagar dividendo”, diz o sócio de uma gestora. Em processo de IPO, a Track & Field propõe criação de uma ação “superpreferencial”, com direito econômico 10 vezes maior que as ONs. Isso permite a emissão de um décimo da quantidade de PNs. “No fim, a ideia é que mesmo com a diluição, os fundadores mantenham o poder decisório”, diz o gestor. Parte dos recursos ainda será usado para pagar dividendos declarados aos sócios da rede em 2019.
Fonte: Valor Econômico