Um faturamento inteiro das lojas Pão de Açúcar. Ou mais do que o Mc Donald’s registrou em receita líquida no Brasil em todo 2016. Esse é o montante – R$ 7,1 bilhões – que os supermercados brasileiros perderam com alimentos aptos ao consumo mas que foram jogados fora por danos, aparência ou validade. Quase tudo foi para o lixo.
A “quebra operacional”, jargão do varejo para o desperdício, abocanha, ano após ano, uma fatia de 2% do faturamento bruto do setor, que em 2016 atingiu R$ 338,7 bilhões, segundo dados compilados pela Associação Brasileira dos Supermercados (Abras). No ranking por segmento, o FLV (frutas, legumes e verduras) lidera, mas a perda é alta também em itens de padaria, comida pronta e carnes em geral.
O indicador dá a dimensão do tamanho do problema, mas é só uma parte dele. O desperdício ainda permeia todos os elos da cadeia produtiva e faz com que até 30% do que é plantado jamais chegue à boca do consumidor brasileiro, segundo a FAO Brasil, braço da ONU para Agricultura e Alimentação.
p>Do ponto de vista financeiro, o varejo tem motivos de sobra para se preocupar: o desperdício representou 28,6% das perdas totais em 2016, superando os furtos externos e internos (18,2% e 8,3%, respectivamente), os erros de inventário (14,8%) e administrativos (8,9%) e a devolução de produtos ao fornecedor (7,9%). “É algo que os supermercados olham com muita atenção”, afirma Marcio Milan, superintendente da Abras.
O contra-ataque do setor teve início há cerca de três anos, mas com resultados ainda tímidos diante da urgência que o tema exige. Em geral, as ações baseiam-se na promoção de itens com prazo de validade próximo de expirar. Mais recentemente, alimentos que fogem do padrão comercial – tamanho, cor e consistência – começaram a ser testados em algumas lojas de grandes centros urbanos.
Lançado em novembro pelo Carrefour, a maior varejista alimentar do país, o programa “Únicos” oferece cerca de 10 legumes e frutas que não atendem a ficha técnica com descontos a partir de 30%. Implementado em caráter experimental em três lojas da capital paulista, o programa, por ora, só é exequível uma vez por semana.
Segundo Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade do Carrefour no Brasil, a expansão do programa está condicionada não só à aceitação do consumidor mas, principalmente, à disponibilidade desses produtos. Isso porque durante anos, o produtor rural foi orientado a não entregar alimentos sem as características determinadas pelo varejo. A imposição rígida dessa cartilha faz com que parte representativa das verduras e legumes nem saia no campo. “O produtor sabe que não tem valor para o varejo e já descarta o alimento, apesar de ser perfeito sob o aspecto nutricional. Isso acabou contribuindo para o desperdício. Agora temos de (re)orientá-lo”, admite.
Muitas vezes, o próprio mercado se encarrega da solução para problemas que, se não diretamente ligados ao desperdício, servem de inspiração para ações nesse sentido. Milan, da Abras, cita as maçãs da Turma da Mônica como um caso clássico de rearranjo comercial que driblou o consumidor, criou um novo hábito de consumo e ajudou a elevar a renda do produtor.
Impedida de ser servida à mesa (os brasileiros, acreditava-se, gostavam somente de frutos vermelhos e grandes), a maçã pequena era destinada à produção de suco. A diferença de preço pago – três vezes menos – mobilizou produtores a criar uma alternativa: vincular a fruta que cresceu pouco ao consumo infantil, estampando os personagens de Maurício de Sousa na embalagem. A estratégia deu certo. Hoje, as maçãs pequenas representam de 10% a 20% da fruta consumida no país, diz Leandro Bortoluz, da Agapomi, a associação de produtores do Rio Grande do Sul, maior produtor nacional.
“É uma saída que pode ser aplicada a outros alimentos com baixa aceitação no mercado e que, portanto, são descartados”, diz Milan.
O varejo tem avançado em medidas sobretudo para prolongar o tempo de prateleira de perecíveis. Melhorias na refrigeração, reorganização do layout de lojas, embalagens mais resistentes e a simples forma de dispor as frutas na gôndola surtem efeitos significativos.
Na rede Hortifruti, as entregas de FLV, que responde por metade do negócio, são feitos diariamente para evitar perdas e garantir produtos frescos (no caso das verduras, a entrega é feita duas vezes por dia). Sempre que possível, a mercadoria viaja à noite. Quando de dia, segue em caminhão refrigerado – raro para os produtores e que explica por que o transporte responde por quase metade das perdas na cadeia. O grupo também oferece as embalagens ao produtor para evitar “tombos” – repasse de uma caixa a outra, podendo danificar o alimento. Com isso, diz ter reduzido a 4% sua quebra operacional, contra a média de 6% do setor.
No Grupo Pão de Açúcar, as ações adotadas – descontos para validade próxima, venda de legumes fora de padrão – permitiram a redução de 15% no desperdício de alimentos em 2016 nas lojas Extra Hiper, e de 25% nos perecíveis, afirma Susy Yoshimura, diretora de sustentabilidade. Ela não revela os números de redução referentes às demais bandeiras da empresa.
Transformar laranjas manchadas em suco e legumes batidos em sopa, vender bananas por unidade, reembalar dentes de alho soltos pelo manuseio e outras coisas do gênero são medidas também em curso, mas um grande desafio contra o desperdício continua sendo convencer o consumidor a se encantar pelo alimento “feio”.
“Esses produtos enfrentam uma barreira cultural grande”, diz Daniela Leite, advogada que se tornou ativista contra o desperdício e lançou em dezembro um aplicativo para doação de alimentos. “Tinder dos alimentos” incentiva doação por parte de pequenos estabelecimentos). “A mudança de cultura não é rápida como a tecnológica”.
Daniela diz que o brasileiro ainda encara esses alimentos com receio e preconceito (ninguém quer uma cenoura de “três pernas”). Pesquisa realizada a pedido de sua ONG, o Comida Invisível, mostra que pouco mais de 40% dos entrevistados associa o feio a algo estragado ou impróprio para venda.
Ao mesmo tempo, 78% mostram disposição a mudar hábitos e curiosidade em entender para onde vai o encalhe do supermercado.
A desconexão com o percurso da comida até o lixo chocou uma cliente que corria para as compras finais de Natal na loja do Pão de Açúcar no Pacaembu, bairro de classe alta em São Paulo. “Jogam tudo fora?”, espantou-se, ao ouvir o depoimento de um funcionário.
João (nome fictício para preservar sua identidade) diz que no fechamento do dia anterior, 10 pacotes de pão integral com grãos haviam sido descartados por estarem a um dia de vencer. Foram para o lixo também pães de queijo, sanduíches e uma variedade de bolos feitos na padaria – uma das 186 lojas da rede Pão de Açúcar.
Ele explica que essa rotina repete-se todas as noites, mas que a loja tem tentado minimizar a quebra. Assar conforme a demanda, por exemplo. Ou triturar pães, como o francês, para vender como farinha.
Jogar fora itens da padaria e comida pronta da rotisseria impacta fortemente na rentabilidade: são nessas gôndolas onde estão algumas das maiores margens brutas do varejo e, não à toa, é para onde as grandes redes têm expandido.
O encalhe da padaria vai para o lixo devido ao temor em relação à responsabilidade pela doação, diz Daniela Leite, do Comida Invisível. A punição por um sanduíche que faça mal a alguém recai sobre quem doou, não quem comeu. “Existem em tramitação no Congresso 30 projetos de lei que visam alterar a responsabilidade civil na doação de alimentos, de objetiva para subjetiva, o que amenizaria a responsabilidade do doador”, diz.
Sérgio Kuczynski, vice-presidente da Associação Nacional de Restaurantes, admite que muita comida é jogada fora. “Isso precisa mudar. Não faz qualquer sentido”.
Fonte: Valor Econômico