Há muito tempo que se discute sobre o futuro do Hipermercado no Brasil e no mundo. Lembro-me de participar de discussões intermináveis em reuniões de planejamento estratégico, exatamente sobre esse tema, há dez anos.
Vale ressaltar que não se trata aqui de uma questão que atinge apenas o mercado brasileiro, mas em todo o mundo temos verificado um histórico de declínio constante das vendas deste canal.
Além disso, já se pode dizer com certa tranquilidade que não se trata de um problema temporário ou exclusivo de uma bandeira ou região, tendo em vista todas as iniciativas e medidas que já foram tomadas para reverter essa queda, mas ainda assim o declínio continua.
Isso nos leva às seguintes questões: O que tem causado o declínio das vendas e a perda de mercado desse canal? Por que a queda continua mesmo com todas as iniciativas implementadas ao longo dos últimos anos?
Não creio que exista uma resposta absoluta para tais questões, mas acho que vale fazer uma reflexão.
Na minha visão, o problema essencial é que os atributos fundamentais desse canal foram sendo derrubados, deixaram de existir ou, ainda, simplesmente não têm mais relevância do ponto de vista dos clientes.
Os atributos fundamentais do Hipermercado eram:
-Os preços mais baixos
-Inflação muito alta
-Tudo debaixo do mesmo teto
-Compras de grande volume
-Lazer da família de baixa renda
Os preços mais baixos
Os hipermercados, por muitos anos, ofereceram os preços mais baixos dentre todos os diferentes canais. Mais barato do que os supermercados, mais baratos do que as mercearias de bairro, ou seja, a melhor opção para as compras racionais. Além disso, frequentemente era possível encontrar grandes promoções, tanto em alimentos, quanto em categorias de produtos não alimentícios, como eletroeletrônicos, bazar, casa, têxtil, etc.
Mesmo que localizados na periferia, era uma compra de muito bom custo benefício, pois os preços baixos davam sentido ao esforço e também ao tempo e combustível gastos.
Inflação muito alta
Com a inflação em taxas estratosféricas até 1995, as famílias procuravam o hipermercado assim que recebiam seus salários para “tentar” maximizar o poder de compra, considerando que os preços eram remarcados diariamente. Ou seja, era uma feroz corrida ao hipermercado em busca de trocar o dinheiro que se desvalorizava, em minutos, por produtos que necessariamente seriam consumidos ao longo do mês. O hipermercado era o principal canal para satisfazer essa necessidade, tendo em vista seus preços, ofertas, sortimento, etc.
Tudo debaixo do mesmo teto
Ter um sortimento de aproximadamente 60 mil itens e assim poder, de forma organizada, oferecer “tudo debaixo do mesmo teto” (ou em inglês “one stop shopping”) sempre foi um dos principais pilares do conceito do hipermercado.
Isso ia de encontro com uma demanda do consumidor que podia encontrar tudo em um só lugar, de tomate e cebola até pneus e barracas para camping.
Para tanto, construíam-se lojas com salão de vendas de, em média, 10 mil metros quadras (enormes) para poder acomodar os milhares de itens, o que aumentava significativamente o custo de implantação de lojas chegando a demandar um investimento da ordem de R$ 50 milhões se considerado investimento em terreno.
Compras de grandes volumes
Com o objetivo de aproveitar os preços e maximizar o poder de compras, os consumidores faziam compras enormes. Era comum, por exemplo, ver clientes encherem 2 ou 3 carrinhos (tamanho grande) e saírem orgulhosos empurrando seu “trenzinho” carregado de produtos. Nenhum outro canal oferecia um sortimento com tal amplitude e com preços considerados os melhores para permitir compras tão grandes e com a diversidade de produtos desejada pelos consumidores.
Lazer da família de baixa renda
Considerado como o shopping center da família de baixa renda, o hipermercado garantia o lazer da família. Era muito comum ver toda a família junta chegando para realizar suas compras: a mamãe já ia direto a seção de roupas infantis e feminina e se sobrasse tempo, também passava nas roupas masculinas, e, o papai direto para os artigos automotivos, como pneus e acessórios para o carro, passando depois pela seção de eletroeletrônicos. Depois, juntos, faziam as compras de alimentos e outros produtos de consumo. Feitas as compras, era obrigatório o passeio pela galeria de lojas do hipermercado, que terminava sempre na praça de alimentação, garantindo o lanche, almoço ou jantar da família. Ou seja, somente o canal hipermercado podia oferecer um lazer tão completo para toda a família.
Entretanto, desde 1995 até os tempos atuais, muitas mudanças e inovações aconteceram. A inflação, que assolava a renda e o poder de compra do consumidor com taxas absurdas, reduziu significativamente com o Plano Real, chegando atualmente a taxas anuais ao redor de 4% a 5%, trazendo assim a tão desejada estabilidade de preços. Dessa forma, a corrida ao hipermercado para fazer a compra o quanto antes, na tentativa de se antecipar às remarcações, perdeu totalmente o sentido.
Os preços oferecidos pelo hipermercado, considerados os mais baixos de todos os canais, perderam lugar para o canal de Cash & Carry, ou como é chamado aqui no Brasil o nosso Atacarejo (Atacado + Varejo). O Atacarejo é um canal relativamente novo no Brasil, entretanto já mostrou que veio para ficar e vem ano a ano se consolidando como um canal relevante e que, na percepção do consumidor, oferece a melhor opção de preços, especialmente para produtos comodities (farinha, arroz, feijão, etc) e produtos de limpeza. Com sua estrutura de operação extremamente enxuta, sem oferecer serviços (muitas vezes, nem sequer ar condicionado), o Atacarejo consegue trabalhar com margens muito mais baixas do que o hipermercado, ou seja, com preços muito mais baixos dentre os diversos canais existentes.
Com relação aos atributos que proporcionam grandes volumes de compras e oferecem ao consumidor a possibilidade de encontrar todos os produtos em um mesmo local, as pesquisas demonstram que as tendências de hábitos de consumo, especialmente das novas gerações que passam a integrar o mercado consumidor, estão apontando para um consumidor novo, mais exigente e que busca mais conveniência, proximidade, preços justos, ou seja, ter a melhor experiência em cada momento de compra. Isso não inclui ter de pegar o carro e enfrentar trânsito (cada vez mais caótico nas grandes metrópoles) para chegar numa loja enorme, onde ele irá despender horas para fazer uma compra enorme, que irá tomar todo o espaço que tem disponível em sua cozinha (já que não se fazem mais as famosas e antigas dispensas). Isso mostra que o consumidor não requer e, portanto, não valoriza mais esses atributos.
Finalmente, com o desenvolvimento massivo de shoppings centers, não somente nas grandes capitais, mas também nas cidades do interior, que oferecem uma opção de lazer muito mais completa para todas as famílias de todas as classes de renda, os hipermercados com suas galerias deixaram de ser a primeira opção de lazer, deixando esse espaço para os shoppings. Desta forma, esse atributo também deixou de fazer parte daquilo que o consumidor considerava e valorizava no canal hipermercado.
Com a longa crise econômica
Concluindo, não ao mesmo tempo e também não pelas mesmas razões, os atributos fundamentais do canal hipermercado, vêm perdendo valor e relevância no julgamento do consumidor ou simplesmente estão deixando de existir como atributos que possam garantir o interesse do consumidor em se utilizar do canal hipermercado. Além disso, com a longa crise econômica que temos enfrentado ao longo de mais de dois anos, pudemos observar um agravamento nesse processo, acelerando a perda de mercado do canal hipermercado em favor do canal Atacarejo, que se beneficia (em especial nesse momento de crise econômica) em função de ter como primeiro e mais forte atributo, o baixo preço.
Esse processo deve continuar, o que fará com que o canal hipermercado continue, ao longo dos próximos anos, perdendo espaço para os canais de Atacarejo, Supermercado, Lojas de Proximidades e outros, a menos que ocorra uma reformulação de atributos fundamentais, baseado em uma nova proposta de valor, que possa ser suficiente para mudar o curso dessa realidade.
Vamos manter nossa atuação nessa questão por meio de nosso time de sócios que vivencia esse processo há muitos anos, tendo participando inclusive de uma série de medidas e ações tomadas por diversas empresas e, também, por alguns de nossos clientes, com o objetivo de alongar a “vida útil econômica” desse canal, ou ainda na busca de soluções estratégicas que possam permitir uma solução.
Fonte: Enéas Pestana