Há dez anos, quando Jeff Bezos lançou o leitor digital Kindle em Nova York, ele declarou que “o livro [impresso] é tão altamente evoluído e tão adequado a sua tarefa que é muito difícil tirar seu lugar”. O fundador da Amazon estava certo: nesta primavera americana, apesar da sublevação digital desencadeada pelo Kindle, a Amazon vai abrir uma livraria em Manhattan.
Há sinais de renascimento do livro por todos os lados. A rede britânica de livrarias Waterstones voltou ao lucro em 2016, depois de seis anos de prejuízos. As vendas de livros impressos nos Estados Unidos subiram 3%, enquanto as de livros digitais caíram. A revolução no mundo editorial provocada pela tecnologia digital não foi do mesmo tipo que a vista nos setores de música, televisão e notícias: ainda gostamos de livros.
A força da popularidade do livro de papel costuma ser saudada como uma história afetuosa, de triunfo dos valores tradicionais sobre a fria e insensível tecnologia. Essa, no entanto, não é toda a história. Ela também pode ser lida como uma narrativa do crescimento da Amazon: se você diminuir os preços, as pessoas vão comprar mais, se você aumentar, vão comprar menos.
Os consumidores gostam do toque e da sensação proporcionados pelos livros impressos: os americanos leem uma média de 12 livros por ano, a maior parte de papel. Também preferem preços baixos e não gostam do fato de que os livros digitais são, comparativamente, caros. Veja, por exemplo, o exemplo de “The Whistler”, novo sucesso de vendas de John Grisham, à venda por US$ 14,47 em sua edição de capa dura e por US$ 14,99 na versão de “e-book” para o Kindle.
Esta é a nova realidade: muitas vezes, os livros eletrônicos de editoras como Penguin, Random House e HarperCollins custam mais do que os de capa dura ou brochura. Os esforços de Bezos, iniciados há dez anos, para promover a adoção em massa do Kindle, com promoções de grandes sucessos a US$ 9,99 e a disponibilidade de livros digitais a preços mais baratos que os impressos, foram perdendo força. Agora, a situação é a oposta: a Amazon prefere os livros de papel.
O que estamos testemunhando não é uma revolução bibliófila contra a hegemonia digital de Bezos, mas sua mudança de tática. Em 2016, a Amazon vendeu 35 milhões de livros impressos a mais do que no ano anterior, segundo um analista, e arrebatou ainda mais participação de mercado de seu antigo concorrente Barnes & Noble (B&N). A alta de 2 milhões de exemplares nas vendas das livrarias independentes dos EUA corrobora a tendência.
O cenário é desconcertante para qualquer um que tenha testemunhado a luta incansável entre a Amazon e as grandes editoras nos últimos dez anos, nos quais Bezos tentou revolucionar a indústria editorial e as editoras se empenharam em refreá-lo. Ele até teve o governo dos EUA de seu lado no processo antitruste contra a Apple e as grandes editoras sob a acusação de conspirar para manipular os preços dos livros digitais.
Depois do esforço para ganhar o direito de determinar os preços dos livros eletrônicos da mesma forma que os impressos, Bezos recuou. A Amazon assinou novos contratos com as editoras há dois anos que limitam os descontos que pode oferecer nos livros digitais, de forma que os preços subiram em seguida. Livros de capa dura e brochura estão relativamente baratos porque a Amazon os vende com descontos; os digitais estão caros porque os vende sem tanto desconto.
Uma forma de ver a situação é que a indústria, depois de dez anos de rupturas, chegou a um equilíbrio competitivo, no qual as principais forças, a Amazon de um lado e as cinco grandes editoras de outro, chegaram a uma trégua. Eles não podem formalmente declarar uma, já que isso reacenderia as preocupações sobre falta de concorrência, mas é isso o que parece, e o renascimento do livro é parte de sua détente.
É algo que faz todo o sentido para a Amazon. A empresa investiu no lançamento e desenvolvimento do Kindle e, agora, domina o mercado de “ebooks”: a B&N recuou com seu Nook e os iPhones vêm sendo mais usados para outras atividades que não a leitura digital. Livros digitais baratos eram necessários para promover o Kindle, mas agora que a premência passou, faz sentido aproveitar para lucrar.
O livro, na forma eletrônica ou impressa, vem se mostrando mais estável do que outros tipos de mídia. A música enfrentou ondas de ruptura: primeiro, a pirataria, depois a possibilidade de comprar músicas específicas em vez de CDs inteiros e, por fim, a adesão à assinatura de serviços como o Spotify. Não foi o caso com os livros: “Lemos um livro de cada vez e cada um nos leva dias”, diz Douglas McCage, da Enders Analysis, firma de análises especializada em mídia e telecomunicações.
A Amazon, entre outras empresas, interessou-se por alterar os padrões de consumo. Tentou, por exemplo, tornar o mundo editorial um serviço no estilo do Netflix. Pouco mudou: o Oyster, um serviço de assinatura de livros digitais similar ao Kindle Unlimited, fechou em 2015. A maioria das pessoas ainda compra os livros individualmente e a Amazon não tem urgência em acabar com isso, até porque é a maior vendedora de livros do mundo.
O equilíbrio também ajuda as editoras, que lucram com os “ebooks” porque podem digitalizar os livros impressos e vender com margens de lucro maiores. No entanto, desde que a Amazon passou a dar menos descontos nos livros digitais das editoras, a pressão aumentou por outro lado: um executivo estima que aumentar os gastos em marketing e com descontos das próprias editoras poderia custar-lhes US$ 100 milhões por ano.
As editoras não podem se dar ao luxo de ficar sentadas e gozar da trégua: a participação das cinco grandes no mercado de livros eletrônicos dos EUA caiu de 46%, em 2012, para 34%, em 2015, uma vez que as editoras independentes e os autores que se autopublicam reduziram seus preços.
Por enquanto, o renascimento do livro é algo que vem caindo bem tanto para os leitores quanto para a Amazon e as editoras. “Acontece que as pessoas gostam do papel, se não forem penalizadas financeiramente”, diz Mike Shatzkin, da firma de consultoria Idea Logical. Dez anos depois do lançamento do Kindle, Bezos as está satisfazendo.
Fonte: Valor Econômico