Inflação e dólar alto varrem produtos baratos das lojas de R$ 1,99, que mudam de nome e vendem até comida
Por Henrique Santiago
Antes comuns Brasil afora, as lojas de R$ 1,99 estão cada vez mais raras no comércio. Em visita a algumas que resistem em São Paulo, o UOL constatou que a inflação e o dólar alto varreram das prateleiras os produtos mais baratos. Poucos itens custam de fato esse preço. Há canecas de plástico, doces e salgadinhos por esse preço, dentro da estratégia dos lojistas de vender comida para tentar sobreviver. Alguns preferem ceder à realidade e rebatizar as lojas, tirando o “R$ 1,99” do nome.
Diego Soares, 38, conta nos dedos de uma mão o que consegue vender hoje a esse valor. Ele é dono da Dalu Utilidades, que anuncia preços “a partir de R$ 1,99”. A loja existe há mais de 20 anos no Jardim Saúde, zona sul de São Paulo.
“Há dez anos, eu vendia até chave de fenda de ferro a R$ 1,99. Hoje em dia, com os preços como estão, é impensável”, diz.
Segundo ele, já estava difícil trabalhar com produtos populares com o dólar a cerca de R$ 4, em 2019. Mas tudo piorou a partir de 2020, com a pandemia, a valorização do dólar, e a inflação. Desde o início de 2020, o dólar subiu quase 30%, o que encarece os produtos importados. O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), que mede a inflação oficial, fechou 2020 em 4,52%, acelerou para 10,06% no ano passado e já acumula 4,29% neste ano.
Produtos chineses, que há dois anos eram o forte da loja de Soares, foram substituídos pelos nacionais, que passaram de 70% para 90% das gôndolas. Ele planeja vender pela internet, para tentar recuperar as perdas, com site próprio.
Lojas se popularizaram após o Plano Real
As lojas de R$ 1,99 se popularizaram na década de 1990, quando o Plano Real estabilizou a moeda e possibilitou a importação de produtos a preços competitivos, afirma Denis Medina, economista e professor da FAC-SP (Faculdade do Comércio de São Paulo), ligada à Associação Comercial de São Paulo.
O cenário agora é muito diferente, e quem sofre mais são os pequenos comércios, diz ele, destacando o papel da guerra na Ucrânia na alta mais recente nos preços.
“[Um comerciante] pode nem saber, mas a guerra na Ucrânia também impacta seu negócio. Tudo no que vai trigo [como bolachas e salgadinhos] fica mais caro em uma nova negociação”, afirma, citando também a alta do petróleo, que encarece o transporte de tudo. “Os preços vão mudando, e eles precisam repor o estoque.”
Com os preços impondo restrições às importações, é cada vez mais comum o pequeno comerciante vender salgadinhos e bolachas, em vez de itens para a casa, por exemplo.
Donos tiram ‘R$ 1,99’ do nome
Diante da pouca quantidade de produtos a R$ 1,99, os irmãos Arcolus, 38, e Raylla Nunes, 33, tiraram a cifra do nome de uma das lojas fundadas por seus pais. Agora, ela se chama só Opções e Variedades. A outra loja, a Opções 1,99, manteve o número.
Eles dizem que a pandemia derrubou em 27% o faturamento da loja principal, a de R$ 1,99, para R$ 220 mil ao mês em 2021. O lucro despencou 66% no ano, para R$ 30 mil mensais. Com os números abaixo do esperado, demitiram três dos dez funcionários.
O cliente só vem para comprar aquilo que já tem em mente. É difícil ele chegar aqui e levar algo a mais, como era antes [da pandemia].
Arcolus Nunes, comerciante
“O freguês reclama do preço, e a gente tenta explicar que isso é o mundo em que a gente está vivendo. Tem muitos que pedem desconto”, diz Raylla.
No dia a dia, os irmãos mudaram estratégias de negócios. Antes, iam a regiões como Pari e rua 25 de março, dois polos do comércio popular em São Paulo, quase diariamente, para comprar produtos com fornecedores. Agora, só vão duas vezes por semana.
Eles também tentaram vender alimentos no ano passado, como arroz, feijão e macarrão, mas não deu certo.
“Comecei com [meio quilo de] café a R$ 12 e parei quando estava R$ 16. Os produtos vendiam bem, não encalhavam, mas não dá para competir com os supermercados”, afirma Arcolus.
Com os reajustes nos preços, virou rotina nas lojas dos irmãos trocar as etiquetas de produtos pelo menos uma vez por semana. Antes da crise, faziam isso a cada dois ou três meses.
‘Lembra a inflação desmedida dos anos 80’
Cliente frequente de lojas de R$ 1,99, a aposentada Beatriz di Marco, 71, que diz usar parte de sua renda para renovar a casa, afirma estar impressionada com os preços.
O que está acontecendo agora me lembra a inflação desmedida dos anos 80. Cada dia era um preço novo.
Beatriz di Marco, aposentada
Apesar da sensação relatada pela aposentada, a inflação ainda está muito longe da registrada naquela década. Em 1980, a inflação acumulada do ano foi de 110,24%. Em dez anos, ao fim de 1989, era de 39.043.765%.
Em cerca de 30 minutos, Beatriz saiu carregada de sacolas. Gastou R$ 240 em compras na Dalu Utilidades, destoando de outros consumidores que gastavam menos de R$ 5 em sementes e peneiras. “Ainda bem que dá para parcelar em duas vezes”, diz sorrindo.
Na mesma loja, o professor de música Tadeu Maia, 64, fez uma compra mais modesta: um saco de terra para o jardim.
Tem que pesquisar mesmo. Antes da pandemia, eu costumava gastar R$ 40 e saía com a sacola cheia. Hoje eu compro bem menos com o mesmo valor.
Tadeu Maia, professor de música
A funcionária pública Ariele Jeronymo, 35, desistiu de levar uma caneca ao ver que custava mais de R$ 30. Ela passava pelos corredores da Loja Opções 1,99 à procura de presentes para montar uma cesta na escola onde trabalha.
Com a inflação, diz que tem deixado de comprar produtos que antes sempre levava desses estabelecimentos. “Sempre gostei muito de potes, mas agora tenho procurado mais na internet, tenho feito mais pesquisas.”
Estratégias para sobreviver
Gerente da Paraíso do Real, com três unidades na capital e uma no interior, em Cruzeiro (SP), Marcelo Santos, 50, mudou a estratégia das lojas por causa da crise provocada pelo coronavírus. Com a pandemia, o valor médio de cada venda caiu de R$ 15 para R$ 12.
Como outros comerciantes, Santos deixou o DNA de loja de R$ 1,99 para priorizar a venda de alimentos.
Os objetos de plástico e alumínio ainda estão presentes nos corredores do prédio de 320 m² em São Mateus, zona leste da capital, mas em menor quantidade.
“Tivemos que aumentar a linha de produtos para trazer mais clientes. Antes trabalhávamos com as classes D e E, mas também vimos interesse da classe C”, diz.
Para diminuir custos, o gerente reviu o sistema de compras de fornecedores. Em vez de cada unidade fazer a sua compra, Santos fecha um caminhão inteiro para os quatro estabelecimentos, de acordo com a necessidade de cada uma. A entrega é feita em um único endereço, e as próprias lojas fazem a distribuição, de carro.
‘Se continuasse só com R$ 1,99, não estava mais aqui’
Na unidade de São Mateus, zona leste de São Paulo, é comum ver nas gôndolas ao menos três marcas diferentes do mesmo produto. Até carrinhos de supermercado foram disponibilizados aos clientes.
Santos diz que a revisão de estratégia fez o faturamento mensal da unidade chegar a R$ 400 mil, aumento de 14% em relação a 2020. O lucro também subiu —hoje fica entre R$ 40 mil e R$ 48 mil ao mês.
Segundo o gerente, dos 15 mil produtos vendidos todos os dias, 12 mil são alimentos, o que dá 80%.
Em abril, quando o dólar caiu e chegou a ser vendido perto de R$ 4,60, Santos se animou e comprou peças de decoração importadas da China. Mas ele diz que a disparada da moeda, que agora voltou a ser comercializada acima dos R$ 5, limita suas chances de vender esse tipo de mercadoria.
Por essas e outras, o gerente tem preferido trabalhar com comida. A última novidade foi a inclusão de carnes congeladas nas prateleiras — algumas são mais baratas por estarem próximas da data de validade.
Se continuasse apenas com produtos de R$ 1,99, eu não estava mais aqui. Não quero perder essa característica, mas está muito difícil.
Marcelo Santos, gerente de loja
Fonte: UOL Economia