Empresas que antes atendiam pelo nome de classificados digitais ou de operadoras de maquininhas hoje podem ser chamadas de instituições financeiras e vão mudar a forma como você poupa e gasta
Por Hugo Cilo
O executivo Tulio Oliveira, que comanda a fintech Mercado Pago, braço financeiro do maior site de classificados da América Latina, o Mercado Livre, vive uma espécie de crise de identidade profissional. Uma boa crise. À frente de um negócio que responde por 48% das receitas globais de US$ 2,6 bilhões da companhia no segundo trimestre, ele já não sabe se pilota um banco que tem um marketplace ou um marketplace que tem um banco. De abril a junho deste ano, o Mercado Pago atingiu receita líquida de US$ 1,2 bilhão – uma impressionante alta de 112,5% na comparação com o mesmo período de 2021. O volume acumulado de empréstimos chegou a US$ 2,7 bilhões, enquanto o número de clientes alcançou 38,2 milhões (quase a população da Argentina) e o total movimentado pelo banco somou US$ 30,2 bilhões, alta de 72,1% em dólares e de 83,9% em reais. “Mais do que celebrar esses números, nossa estratégia está focada na experiência do usuário”, disse Oliveira à DINHEIRO. “Cliente bem servido vai consumir novos serviços, comprar mais, contratar seguros e investir. Agora, está tudo em um mesmo lugar.”
Por trás do pragmatismo desses números existe, de fato, um banco em intensa expansão. Embora tenha se tornado oficialmente um banco digital apenas há duas semanas, o Mercado Pago já nasce como a segunda maior instituição financeira digital do País, menor apenas do que o Nubank (com 54,7 milhões de clientes) e cabeça a cabeça com o Banco Original (38 milhões de correntistas). Não é um feito trivial. Trata-se de uma revolução dentro de uma companhia que, até muito pouco tempo atrás, pensava apenas em como vender mais e entregar no menor tempo possível. Hoje o Mercado Livre é a empresa de tecnologia mais valiosa da América Latina, com US$ 44,8 bilhões em valor de mercado.
Se por um lado o Mercado Pago cresce puxado pela demanda, por outro avança impulsionado pela injeção de capital. Muito capital. Desde 2020, a companhia recebeu aportes parrudos de bancos estrangeiros. O primeiro foi do Goldman Sachs, de R$ 400 milhões, em setembro de 2020. O segundo, de US$ 375 milhões, do Citibank. O mais recente, no mês passado, de novo do Goldman Sachs, de US$ 233 milhões. No total, desde janeiro 2021, foram captados R$ 5,4 bilhões. “Decidimos nos assumir como banco digital para que o cliente possa compreender melhor a nossa proposta de valor”, disse Oliveira. “Como percebemos que os consumidores são mal servidos, ou simplesmente não servidos pelos bancos tradicionais, nossa ambição é democratizar o acesso ao crédito e assumir a liderança do segmento em muito pouco tempo”, afirmou.
“A receita com meios de pagamento será zero. Garantir outras fontes de monetização é essencial para a empresa” Fabiano Camperlingo, CEO da Sumup na América Latina.
O processo de bancarização do varejo ou de “varejização” dos bancos — a ordem dos fatores, neste caso, definitivamente não altera o produto — é um fenômeno que ultrapassa as fronteiras do Melicidade, sede do Mercado Livre, em Osasco (SP). Outras gigantes do e-commerce, como OLX, Magazine Luiza e Via (antiga Via Varejo, dona de Casas Bahia, Ponto e Extra.com.br) estão surfando na crista da onda dos serviços financeiros. A Lojas Renner tem a Realize, a Via tem o banQi, o Magazine Luiza tem o Magalu Pay, entre muitos outros. “O objetivo é garantir a inclusão financeira, criando conexão entre as lojas, o e-commerce e o marketplace”, disse André Calabró, CEO do banQi.
SITE APEGADO A OLX, maior site de classificados de produtos usados do País, é um exemplo claro desse movimento. Sob comando do holandês Andries Oudshoorn, a operação da companhia no Brasil está em franco movimento de transformação financeira. Em 2020, no meio da pandemia, a empresa começou a rodar a OLX Pay, uma ferramenta de transação digital que dispensa a necessidade de comprador e vendedor se encontrarem para concluir a negociação. Além disso, a OLX passou a disponibilizar na própria plataforma uma vitrine de opções de financiamento com parceiros. Quem escolher um produto no site pode já pesquisar fontes de crédito na próxima plataforma para concluir a compra.
Dado o tamanho e o potencial do negócio, a companhia foi internamente dividida em duas frentes. A primeira, sob comando da executiva Regina Botter, se dedica ao C2C (consumidor para consumidor) nas categorias de bens de consumo e veículos. A segunda, sob o guarda-chuva de Oudshoorn, é a ZAP+, dedicada ao setor imobiliário e que nasceu com a compra do Grupo Zap por R$ 2,9 bilhões em novembro de 2020. “Estamos seguindo na transição de uma plataforma pura de classificados para um modelo transacional, de ponta a ponta”, afirmou Regina à DINHEIRO. No ano passado, a OLX movimentou R$ 220 bilhões e atingiu 14 mil usuários anunciantes. É muito dinheiro. Comparativamente, o volume de negócios no site foi o equivalente à metade dos R$ 550 bilhões que o Brasil transacionou via Pix em seu primeiro ano de implementação. “Para isso, temos toda uma evolução relacionada a meios de pagamento, logística e serviços, mantendo e aperfeiçoando o modelo de classificados, que é a origem da companhia.”
Para Regina, da OLX Pay, há um imenso potencial de crescimento com o casamento entre o varejo e os serviços financeiros. Ela acredita que a inclusão do contingente de pessoas que está à margem do sistema financeiro vai gerar muitas oportunidades de novos negócios e serviços. “No Brasil, temos ainda o cenário de muita gente desbancarizada, que não é atendida pelas instituições tradicionais. Logo, os serviços financeiros digitais tendem a crescer e evoluir nos próximos anos.”
O horizonte de oportunidades para o e-commerce com o lançamento de serviços financeiros não está apenas no discurso dos executivos do setor. É fato concreto. No ano passado, segundo a Pesquisa da Febraban de Tecnologia Bancária, a abertura de contas por meio de canais digitais superou, pela primeira vez na história, os canais físicos no Brasil. Em 2021, foram registradas 119,5 bilhões de transações, um aumento de 15% se comparado com 2020. E mais: os smartphones passaram a responder pela maioria das operações financeiras no País — foram 56% das 119,5 bilhões de transações digitais registradas no ano. Foram 7 bilhões de transações a mais, alta de 75%. No mesmo período, o uso de internet banking via computador cresceu apenas 5%.
“O objetivo é garantir a inclusão financeira, criando conexão entre as lojas, o e-commerce e o marketplace” André Calabró CEO do BanQi.
Para Roberto Rigotto, fundador da Simply, fintech de automação digital dos processos de análise, cadastro e abertura de contas correntes, as instituições financeiras estão crescendo não só porque existe uma gigantesca demanda reprimida, mas porque os bancos digitais estão conseguindo garantir mais agilidade, eficiência e segurança aos usuários nas operações, desde uma grande transferência de valores até uma simples abertura de conta. “A partir do envio do documento de identificação é possível realizar diversas consultas e verificações de segurança e, em segundos, é emitida uma resposta para liberação ou não do cadastro do cliente”, disse. “As instituições têm conseguido se proteger contra fraudes sem que isso gere desconfiança para o cliente”, afirmou. Mensalmente, a Simply valida mais de 20 milhões de imagens e 5 milhões de propostas ao mês, sem a necessidade de carimbos, xerox de documentos, reconhecimento de firma ou a tradicional saliva no canto do papel.
Graças à evolução da tecnologia, e-commerce e fintechs estão cada vez mais parecidos um com o outro. Bom para as empresas que navegam com um pé em cada um dos dois segmentos. É o caso da SumUp, originalmente uma fintech de maquininhas de cartão. A empresa recebeu aporte de 590 milhões de euros para expandir suas operações mundo afora e vai destinar 70 milhões de euros (cerca de R$ 380 milhões) exclusivamente para a operação no Brasil. A rodada de investimento foi liderada pela Bain Capital Tech Opportunities, com participação de fundos administrados pela BlackRock, btov Partners, Centerbridge, Crestline, Fin Capital e Sentinel Dome Partners. Para não depender apenas no mercado de adquirência (nome dado a esse segmento de meios de pagamento), a empresa acabou de lançar sua operação de empréstimos, voltada ao financiamento de pequenos empreendedores. Mesmo com a Selic em 13,75% ao ano, os empréstimos concedidos têm taxas a juros fixos de a partir de 2,93% ao mês. Desde o lançamento da iniciativa, a SumUp já concedeu R$ 37 milhões em microcrédito a mais de 14 mil empreendedores. A operação de crédito é impulsionada por um FIDC em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O fundo totaliza um capital de até R$ 230,7 milhões.
“Temos muitas pessoas desbancarizadas. Logo, os serviços financeiros digitais tendem a crescer e evoluir” Regina botter, General Manager da OLX Pay.
MAIS SEGUROS Em paralelo à operação de crédito, a empresa desenvolveu uma frente de seguros. A primeira modalidade é a cobertura empresarial, em parceria com a Alfa Seguradora e com a Alper. O valor do seguro é de a partir de R$ 23,10 e cobre danos materiais e imóveis e até lucro cessante em caso de necessidade de afastamento temporário das atividades. Em setembro, a SumUp planeja lançar também seguro residencial, de acidentes pessoais e de vida. Detalhe: tudo pode ser pago por meio de uma parte da antecipação de recebíveis, sem o uso de cartões ou boletos.
O CEO da SumUp na América Latina, Fabiano Camperlingo, classifica essa diversificação como fundamental para a longevidade do negócio em um mercado de meios de pagamento em forte transformação. A própria fintech desenvolveu uma solução, a SumUp Tap, que transforma smartphones em maquininhas de cartão. Entre os produtos que fazem parte do portfólio da fintech, destacam-se a conta digital pelo SumUp Bank, antecipação de recebíveis, empréstimos e links de pagamento, entre outros. “No futuro, os pagamentos se tornarão commodities e não será mais possível cobrar por isso”, afirmou Camperlingo. “Em um cenário em que a receita com meios de pagamento será zero, ter um ecossistema sólido para entregar valor aos clientes, e garantir outras fontes de monetização, é essencial.”
A grande dúvida em torno da proliferação das fintechs está na capacidade das empresas digitais de gerarem receita em um cenário de desintermediação dos meios de pagamento e do varejo on-line. Para Renato Aragon, sócio-diretor da consultoria Xsfera, a disseminação do Pix e seus derivados (Pix Cobrança, Pix Saque, Pix Troco, Pix Parcelado e outras modalidades que serão lançadas e patrocinadas pelo BC) já começou a dificultar a formação de renda através de pagamentos. “O mercado de crédito oferece oportunidades quer seja na inclusão de desbancarizados, quer seja na simplificação de processos ou no uso intensivo de tecnologia para evolução de análises, entre outros aspectos”, disse Aragon. Ele concorda com a estratégia de diversificação, mas recomenda cautela. “Fazer do limão uma limonada e aproveitar as oportunidades são expressões que sempre são atreladas a uma outra que é: nunca coloque os ovos na mesma cesta.”
Mas crescer com cautela não deverá ser um problema para empresas. Diversificar, desapegar e vender mais são atributos dos players do e-commerce que, ao que tudo indica, servirão muito também aos negócios no setor financeiro.
Fonte: IstoÉ Dinheiro