Prestes a completar 90 anos, o empório continua crescendo e se prepara para modernizar o modelo de gestão
Uma vez por dia, o imigrante português Jorge Lopes, então com 20 e poucos anos, pegava a bicicleta do empório paulistano em que trabalhava, na Rua Augusta, e pedalava em direção aos casarões dos Jardins, que estavam começando a ser construídos. Com uma chave no bolso, passava pelo portão de uma das casas, entrava na despensa, anotava os produtos que estavam faltando e, depois, voltava para reabastecê-la.
A confiança dos clientes em Jorge era tamanha que ele não precisava conversar com ninguém para saber o que a freguesia queria ter à disposição. Assim nascia o tipo de relacionamento que a Casa Santa Luzia, um dos empórios mais famosos do Brasil e ícone da gastronomia paulistana, iria cultivar até hoje – ano em que o estabelecimento completa 90 anos.
Jorge, atualmente com 85 anos, continua à frente dos negócios dividindo a gestão com sua filha, Ana Maria Lopes, de 57 anos, diretora da Casa, seus sobrinhos e seu primo, Álvaro Lopes, de 91 anos. “Trabalho 11 horas por dia. Mas, se você me perguntar, à noite, o que eu fiz, vou dizer que não fiz nada”, diz Jorge.
Modéstia à parte, o olhar vigilante dos donos, presentes na loja com crachás com seus primeiros nomes, é uma das razões pelas quais a Santa Luzia é única no varejo. Se você é um dos 5 000 visitantes diários do empório, já deve ter notado que muitos desviam o caminho para cumprimentar os dois senhores, sempre elegantes de colete ou gravata.
Tudo começou em 1926 quando Daniel Lopes, pai de Álvaro e tio de Jorge, abriu seu empório de secos e molhados, na esquina da Rua Augusta com a Oscar Freire. Na parte de baixo do sobrado, funcionava o comércio. Na de cima, estava a casa da família. “Como meu pai não gostava que minhas irmãs ficassem no atendimento, eu o ajudava”, diz Álvaro.
O foco do empório, que se mantém o mesmo quase um século depois, estava na boa relação com os fornecedores, na alta qualidade dos produtos e no atendimento atencioso aos clientes, que, desde então, faziam encomendas de produtos estrangeiros que gostariam de ver por aqui. A Casa Santa Luzia foi a responsável, por exemplo, por introduzir o queijo francês no Brasil. “É comum o pessoal chegar com um rótulo de produto que consumiu em outro país e esperar que a gente traga para cá”, diz Carlos Gonçalves, gerente da Casa Santa Luzia e funcionário do local há 41 anos.
As sugestões são analisadas pelo departamento de compras, pelas nutricionistas e pelos líderes dos setores que sabem se há, ou não, espaço para algo novo nas gôndolas. “A falta de espaço é um dos nossos maiores problemas”, diz Ana Maria Lopes, diretora da Santa Luzia. E, claro, as oscilações do dólar e a constante mudança da legislação de importação de produtos perecíveis também afetam o estoque. “Neste ano, importamos menos colombas pascoais italianas porque sabíamos que a demanda seria menor. A alternativa foi produzir o doce na nossa padaria”, diz Ana Maria.
Resistência a crises
Mesmo com a crise econômica que fez, em 2015, o varejo encolher 4,15%, a Casa Santa Luzia teve um crescimento de 2% no ano passado. Isso acontece porque, embora tenha itens mais acessíveis, o negócio se posiciona como um mercado gourmet, que vende para uma clientela fiel com alto poder aquisitivo que sente muito menos a crise. Além disso, eles estão aproveitando outro movimento: as famílias estão deixando de ir a restaurantes para comer em casa.
“As pessoas têm convidado mais os outros a fazer almoços e jantares em casa. E não é incomum encontrar executivos e empresários fazendo compras na Santa Luzia aos finais de semana”, afirma Jorge Kraljevic, da consultoria Odgers Berndtson e especialista em mercado de luxo, de São Paulo.
Para os proprietários, porém, o grande segredo para o enfrentamento da crise é algo que vai contra as leis do mercado: ter um estoque grande e totalmente pago. Só para ter uma ideia, do prédio de dez andares da Alameda Lorena, atual endereço do negócio, cinco são para o estoque. Na loja, há mais de 30 000 itens. Hoje, possuir um número elevado de importados já quitados permite que a Casa segure o repasse de alguns preços.
Mas um dos momentos marcantes da importância do estoque ocorreu na época da hiperinflação. Não à toa, o ano de 1986, quando o governo de José Sarney decretou o congelamento de preços, ficou na memória dos funcionários. “As filas viravam o quarteirão e deixávamos passar apenas um ou dois produtos por pessoa. Vinham famílias inteiras fazer compra aqui para conseguir mais mantimentos”, lembra Carlos.
Valores fortes
Mas não foi só a boa estratégia de gestão a responsável pela longevidade da Casa Santa Luzia. Os valores e as crenças defendidos pelos seus 540 funcionários garantiram à empresa a perenidade dos negócios. Da boca do time é possível ouvir as prioridades: em primeiro lugar, é importante cuidar dos fornecedores; em segundo, dos funcionários; e, em terceiro, dos clientes.
A lógica é simples: bons fornecedores e empregados bem treinados darão conta de atender bem os clientes. “Os consumidores vão lá em busca de um tratamento diferente por parte dos atendentes, que são treinados para sanar as dúvidas dos clientes”, diz Jorge, da Odgers.
Para fazer isso, é preciso recrutar bem e treinar. A preocupação da área de recursos humanos, na hora da seleção dos candidatos, é notar se eles estão alinhados com a missão da companhia. “Procuramos pessoas sem vícios do varejo que entendem a importância de atender bem”, diz Wagner Bergamo, gerente de RH.
A maioria dos profissionais entra pelo setor de caixas ou de pacotes. E muitos crescem lá dentro – tanto que a taxa de turnover mensal é de 2,3%, abaixo da média do setor em 2014, que foi de de 4,7%, segundo a Pesquisa do Emprego no Comércio Varejista da região metropolitana de São Paulo.
É tão comum fazer uma carreira longa que, entre 2015 e 2016, dez funcionários comemoraram 25 anos de trabalho e ganharam um carro zero. “As pessoas enxergam oportunidades e sabem que, com esforço e estudo, podem se desenvolver e mudar de área”, diz Wagner. Cada líder de setor, por exemplo, é treinado para entender totalmente o produto que vende e ajudar o cliente na sua escolha. Há ainda oportunidades de carreira no setor produtivo, em que 100 funcionários fabricam diariamente 3 000 itens, entre eles pratos da rotisserie, pães, doces e cortes de carne.
A longa permanência dos colaboradores acontece, também, porque os donos têm certeza de que algumas crenças, embora vistas com desconfiança, devem ser mantidas. Uma das mais polêmicas é a questão de ter apenas uma loja. “Meu tio dizia que não há diferença entre o segundo e o décimo lugar e, para ser o número 1 em alimentação, não se pode perder a qualidade. E só não se perde a qualidade quando os donos estão presentes, todos os dias, na loja”, diz Jorge Lopes.
É por isso que, por mais que surjam ofertas, a loja da Alameda Lorena será a única. “Quando o shopping Iguatemi abriu em São Paulo, fomos convidados para ter outra loja lá. Fiquei três noites sem dormir, mas não aceitei”, diz Jorge. O temor, além da piora do atendimento, era perder a autonomia para funcionar no horário em que quisessem e a diminuição do rigor com o recebimento e manutenção dos alimentos. “Recebemos frutas, verduras e legumes duas vezes por dia e queijo fresco duas vezes por semana. Seria impossível fazer isso em mais de uma loja”, diz Ana Maria.
Mudanças graduais
Embora seja uma empresa tradicional, a Santa Luzia é responsável por inovações importantes no mundo da alimentação. No fim dos anos 1980, por exemplo, o mercado começou a fabricar artesanalmente congelados que hoje seriam chamados de gourmet. A decisão de introduzir esses pratos surgiu quase que por acaso. Ana Maria, que tinha acabado de assumir uma posição gerencial na empresa da família depois de uma carreira de dez anos como headhunter e consultora na Coopers e recém-chegada da licença-maternidade, vivia o dilema das mulheres modernas: pouco tempo para cozinhar.
O que a salvou foi sua ajudante, Josina, que fazia ótimos congelados, como almôndegas e filé à parmegiana. Ela pensou que aquilo seria um bom filão para o comércio, venceu a desconfiança do pai e do tio e, com a ajuda de um fogão antigo, introduziu a comida feita na Casa. No começo, eram só 25 pratos; hoje, os mais de 250 ocupam uma seção inteira do mercado. “Inovamos aos poucos. É preciso provar que as novidades não vão prejudicar o negócio”, diz Ana Maria.
Nessa toada, também nasceram, em 2004, a rotisserie, o setor de alimentos especiais e o de orgânicos. “Percebemos o que os clientes querem e vamos atrás”, diz Ana Fanelli, nutricionista da Santa Luzia. Ela e Carla Vieira, também nutricionista e gerente do setor produtivo, caçaram produtos sem glúten para preencher as prateleiras dos produtos especiais. “Como ainda não havia a lei da sinalização do glúten na embalagem, ligávamos de fornecedor em fornecedor para ter uma boa quantidade de itens na inauguração do setor”, diz Carla.
Essa relação próxima aos fornecedores rende bons frutos do outro lado do balcão. Por isso, a empresa é conhecida por ajudar os produtores a desenvolver produtos, como aconteceu com a Verde Campo, de Minas Gerais, especializada em laticínios sem lactose. “Somos parceiros há mais de dez anos e eles nos disseram haver uma carência desse item. Fomos atrás e hoje somos um dos maiores dessa área”, diz Alessandro Rios, presidente da Verde Campo.
Gestão mais moderna
Hoje, o desafio da Casa Santa Luzia é a modernização da gestão. Por ser uma empresa familiar, a preocupação é fazer uma boa transição entre gerações. A segunda conseguiu transmitir para a terceira os valores e o amor pela empresa. Agora é o momento de pensar sobre a entrada da quarta geração. Para dar o suporte, a consultoria Amrop Panelli Motta Cabrera, de São Paulo, foi contratada.
“A Santa Luzia está discutindo como sobreviverá sem a presença de seus fundadores”, diz Luiz Carlos Cabrera, responsável pela transição. Os donos pensam no futuro dos negócios e imaginam que modernizações terão que introduzir para que a empresa continue longeva. “Nesse tipo de processo, é preciso manter o ritmo de crescimento e fazer os investimentos crescerem constantemente para sustentar várias gerações”, diz Carlos Mendonça, sócio líder em empresas familiares da PwC, de São Paulo.
A ideia é que a família exerça o papel de proximidade com os fornecedores e clientes e que a retaguarda financeira e administrativa fique sólida e bem administrada. “Queremos que os herdeiros deem continuidade com qualidade”, diz Jorge. Não dá para prever o futuro, mas, se depender dos proprietários, a Casa Santa Luzia durará para sempre.