Uma jornada de três dias, com três trocas de ônibus, intercaladas por noites mal dormidas em rodoviárias e pela falta de dinheiro para pagar um quarto de hotel ou uma simples refeição. A saga do venezuelano Simon Jose Fernandez Granadillo, 34 anos, para chegar em Boa Vista, capital de Roraima, no início de 2016, em nada lembrava sua primeira visita ao País, de férias, dois anos antes. O voo direto que o trouxe, na época, de Caracas para São Paulo, levara pouco mais de treze horas. No intervalo entre as duas viagens, muita coisa mudou. Formado em Química e analista de controle de qualidade na estatal petrolífera PDVSA, Granadillo, com seu salário, já “não conseguia pagar por um par de sapatos”. Para comprar um frango, era preciso passar no mínimo oito horas na fila. O mesmo acontecia com outros itens básicos. Sem perspectivas de melhora, ele decidiu deixar Valencia, sua terra natal, e chegou ao Brasil para tentar reconstruir sua vida. No ombro, uma mochila. No bolso, apenas R$ 600. “Foi o que eu recebi como rescisão depois de sete anos de trabalho”, afirma.
A trajetória de Granadillo não é um caso isolado. Diariamente, milhares de seus conterrâneos deixam a Venezuela para fugir da fome, da pobreza e da falta de trabalho causadas pelos desmandos dos governos de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) estima que, atualmente, 2,3 milhões de venezuelanos vivam no exterior. Desse total, 1,6 milhão saíram do país desde 2015, sendo que 90% têm como destino algum país da América do Sul. O Brasil é um dos roteiros seguidos por esses refugiados. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, hoje, 30,8 mil venezuelanos estão estabelecidos em solo brasileiro. A previsão é de que, até o fim do ano, outros 9,7 mil desembarquem por aqui (veja mais no quadro ao final da reportagem).
Quando cruzam as fronteiras, essas pessoas nem sempre encontram braços acolhedores. Os distúrbios recentes na cidade de Pacaraima, em Roraima, principal porta de entrada dos venezuelanos no Brasil, são um exemplo dessa relação, por vezes, nada amistosa. Mas, na contramão desses conflitos, uma série de iniciativas capitaneadas por companhias e nomes de destaque do empresariado brasileiro estão oferecendo a oportunidade de um recomeço para esses refugiados. “A situação dessas pessoas e dos moradores dessas cidades é de penúria”, diz Carlos Wizard, empresário responsável no Brasil por redes como Taco Bell, Pizza Hut, KFC e Mundo Verde, além de marcas como Topper e Rainha. “A solução não está em Roraima. Essas pessoas precisam ser acolhidas em outros estados e o governo não tem condições de fazer isso sozinho.” Wizard está envolvido em diversas ações. Em parceria com líderes empresariais e religiosos, ele ajudou a realocar cerca de 200 venezuelanos em estados como São Paulo, Paraná e Minas Gerais. A iniciativa inclui moradia, alimentos, roupas e oportunidades de trabalho. O empresário abriu 200 vagas em seu grupo, a serem preenchidas até o fim do ano. “Somos 208 milhões de brasileiros”, diz Wizard. “Será que não podemos acolher e ajudar alguns milhares de venezuelanos?”
João Marques, sócio-fundador da consultoria Emdocs e criador do Programa de Apoio para a Recolocação de Refugiados (PARR), observa que há diversas empresas promovendo ações para auxiliar essas pessoas. Mas que, dada a polêmica em torno do tema, boa parte delas prefere manter-se no anonimato. “O que mais escuto é porque queremos ajudar os venezuelanos quando temos 13 milhões de desempregados no país”, afirma. À parte desses questionamentos, ele destaca que, nos últimos dois meses, o PARR conseguiu oportunidades de trabalho para cem venezuelanos no País. A plataforma tem hoje 2 mil refugiados cadastrados, sendo que 10% deles são da Venezuela. Marques acrescenta que os primeiros venezuelanos que desembarcaram no Brasil não tinham grande qualificação profissional. O agravamento da crise no país, no entanto, está atraindo pessoas mais capacitadas. “Muitos deles têm formação diferenciada, em engenharia, especialmente de óleo e gás, pela tradição do país.”
Depois de gastar suas últimas economias em uma passagem aérea para São Paulo e passar por diversas dificuldades como trabalhos em condições análogas à escravidão, Granadillo foi um dos venezuelanos que conseguiram emprego por meio do PARR. Em março, ele foi contratado pela farmacêutica americana Pfizer como operador de produção. Com a vida mais estável, foi possível trazer toda a família para o Brasil, inclusive o cachorro que havia ficado em Valencia. “Hoje tenho minha família, saúde, o que comer e me tratam como um brasileiro”, afirma. “Mas sei que meus amigos de infância, meus vizinhos e seus filhos seguem sem comida e que minha cidade está destruída. Não consigo ficar 100% bem.”
Sem sinais de melhoras no médio e longo prazos na Venezuela, a projeção é de que o Brasil siga atraindo mais refugiados. E, nesse contexto, outras iniciativas estão procurando fornecer melhores condições tanto para essas pessoas como para as cidades que as recebem. A Ericsson, por exemplo, investiu cerca de R$ 1 milhão na criação de um laboratório para a oferta de cursos de inclusão digital para os refugiados, equipado com computadores e tablets, entre outros recursos. Instalado em Pacaraima, o projeto é uma parceria com a Universidade Federal de Roraima. Divididas em dois módulos, um básico e outro avançado, com duração de 4 meses, as primeiras aulas tiveram início neste mês. A ideia é treinar 250 pessoas nesse semestre.
“Tomamos conhecimento do que estava acontecendo por lá e entendemos que tínhamos que ajudar, de alguma forma”, diz Eduardo Ricotta, presidente da Ericsson no Brasil. “Essas pessoas estão deixando toda as suas vidas para trás e não têm um destino certo.” Os próximos passos envolvem a conexão do laboratório com outras iniciativas semelhantes da Ericsson no País, como na favela da Rocinha e no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro. A ideia também passas pela oferta de cursos adicionais, a distância. A fabricante sueca também foi uma das parceiras da Telefônica Vivo na implementação de redes 3G e 4G em Pacaraima. A ideia da iniciativa é aprimorar a precária estrutura local e, por consequência, a oferta de serviços públicos, entre eles, o registro de venezuelanos que chegam ao município.
A rede francesa Carrefour é mais uma companhia a desenvolver projetos na área. A varejista tem 150 refugiados no seu quadro, sendo seis venezuelanos. “Diferentemente de outras nacionalidades, a chegada dos venezuelanos ao País é recente”, diz Karina Chaves, gerente de diversidade do Carrefour. O grupo também apoia um programa de capacitação para mulheres em situação de refúgio desenvolvido pela Agência da ONU para Refugiados e a ONU Mulheres. Além de recursos financeiros, a parceria envolve questões como a participação de voluntários da equipe da rede nas aulas e o auxílio no desenvolvimento dos conteúdos ministrados. A cada turma formada, a empresa abre a possibilidade de novas contratações. “O varejo é um negócio relacionado diretamente ao cliente. Quanto mais diversa for a equipe, melhor será a nossa percepção desse público e mais amplo será o nosso horizonte.”
Ao lado do acolhimento que recebeu de boa parte dos brasileiros que cruzaram o seu caminho, Granadillo ressalta que o conhecimento mais profundo de suas próprias capacidades foi a maior lição diante das dificuldades que enfrentou nos últimos dois anos. E é essa mentalidade que guia seus próximos planos, entre os quais, a vontade de validar seu diploma no País e a possibilidade de empreender por aqui. “Na Venezuela, tinha melhores condições, mas também muito medo”, diz. “Hoje, minha vida é mais difícil do que aquilo que nos bons tempos. Mas aprendi a ter coragem. E a seguir em frente.”
Fonte: IstoÉ Dinheiro