Empresas, organizações não governamentais e sociedade se unem para acabar com os resíduos plásticos
Por Katia Simões
O cenário é alarmante para a produção de resíduos, em especial o plástico. De acordo com o estudo The Global Plastics Outlook: Policy Scenarios to 2060 (“A Perspectiva Global do Plástico: Cenários de Políticas para 2060”, em tradução livre), divulgado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em junho deste ano, a quantidade de material plástico produzida pode triplicar até 2060, com 50% dos resíduos descartados em aterros sanitários e menos de um quinto sendo reciclado no mundo. E quem acredita que a projeção está superestimada, basta colocar uma lente sobre a realidade atual para constatar que não.
Das 460 milhões de toneladas de plástico produzidas em 2019 no mundo, 353 milhões viraram resíduo – apenas 9% foram reciclados. Desse montante, 19% foram incinerados, 50% acabaram em aterros controlados e 22% foram abandonados em aterros ilegais. Ainda segundo a OCDE, entre 75 milhões e 199 milhões de toneladas de plástico foram parar nos oceanos.
A problemática do plástico vai em duas direções: seu amplo uso no setor varejista e de serviços e sua longa decomposição – uma garrafa pode demorar mais de 400 anos para se desintegrar. “O problema não é o plástico como material, mas como resíduo”, comenta Beatriz Luz, fundadora da Exchange 4Change Brasil e diretora do Hub de Economia Circular Brasil.
Para ela, a transformação desse cenário exige mudança do ecossistema “Não adianta ter uma embalagem biodegradável se a empresa não tem como destiná-la à compostagem, porque a proposta de valor não será alcançada”, diz. “É melhor que seja 100% reciclável e volte ao início da cadeia por meio de coleta seletiva.”
Segundo a Associação Brasileira da Indústria do Plástico, o índice de reciclagem mecânica do plástico pós-consumo no país foi de 23,1%, no último levantamento feito em 2020. Nas cooperativas de reciclagem, o material ainda tem baixo valor agregado. As recicladoras chegam a pagar R$ 7 pelo quilo do alumínio e cerca de R$ 1 o do plástico pós-consumo, exceção feita ao PET, mais valorizado. Na outra ponta, o Brasil está entre os maiores produtores de lixo plástico do mundo, com cerca de 11,3 milhões de toneladas por ano, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia, segundo o Fundo Mundial para a Natureza (WWF).
Todos os elos da cadeia precisam se engajar nessa mudança. Do lado da demanda, diversas companhias já entenderam o recado. No Brasil, a Unilever, por exemplo, aderiu ao Tratado Global do Plástico, que se concentra na reciclagem e redução do uso de plástico virgem. “Nos comprometemos a reduzir pela metade o uso de plástico virgem em nossas embalagens até 2025, o que significa deixar de colocar 100 mil toneladas do produto em circulação”, diz Zita Oliveira, gerente de sustentabilidade para a América Latina. Outra meta é garantir que todas as embalagens sejam totalmente reutilizáveis, recicláveis e compostáveis. A jornada começou há quatro anos. Entre 2018 e 2021, a empresa reduziu o uso de cerca de 18 mil toneladas de plástico virgem em suas embalagens. “Fomos pioneiros na adoção de resina plástica pós-consumo em larga escala, com 100% de uso nas marcas de produtos de limpeza e em boa parte de higiene pessoal.” O material já está presente nas tampas dos cremes de tratamento da TRESemmé e do desodorante Rexona roll-on.
Nós avaliamos quanto de plástico a empresa usa, e retiramos a quantidade equivalente para ser reciclado”
Para Marília Rocca, CEO do Hinode Group, é preciso desconstruir a ideia de que trabalhar com sustentabilidade é caro e isso passa pela mudança de mentalidade das lideranças. “Em 2020, contratamos uma consultoria para nos ajudar a criar uma jornada mais sustentável e adotamos uma calculadora de impacto ambiental”, afirma. “Passamos a ter uma visão multifacetada do negócio, a ter um olhar macro para preparar os lançamentos e redesenhar as linhas, analisando o que recicla e traz melhor rentabilidade nas cooperativas, oferece praticidade no transporte pós-consumo e provoca menos impacto.”
Com a mudança do tipo de plástico nas embalagens, redução do peso e mudança das válvulas, a Hinode registrou uma redução de 23% no peso do portfólio desenhado em 2021, que envolveu 56 itens. O custo do frete caiu 30% e houve um aumento de 36% no volume de carga de pallets de perfumaria e de 27% na de cuidados pessoais. Em 2023 serão redesenhados 83 SKUs de um portfólio de 320 itens.
Assim como a indústria de produtos de higiene e beleza, os segmentos de alimentação e bebidas têm buscado novas soluções, a fim de cumprir as metas. É um desafio grande para uma cadeia com alto consumo e descarte de plástico de uso único. O mercado de água mineral já deu a largada. É uma das novas fronteiras da substituição de embalagens. Só em 2020, o uso de produtos embalados em caixinha cresceu 20%. “No mundo temos 200 marcas no portfólio com esse perfil, no Brasil são quatro, com expectativa de expansão, uma vez que o consumidor brasileiro está bebendo 41% mais água que em 2017”, diz Danilo Zorzan, diretor de marketing da Tetra Pak Brasil. “Nossas embalagens cartonadas são compostas por materiais recicláveis, como papel obtido de florestas certificadas e plástico proveniente da cana-de-açúcar, com baixa pegada de carbono.”
A Ambev há 12 anos vem investindo em mudanças na marca Guaraná Antarctica. “Em 2020, 80% das garrafas eram produzidas a partir de material reciclado e em 2021, 100% foram produzidas com plástico não virgem”, diz Rodrigo Figueiredo, vice-presidente de Sustentabilidade. “Nas demais linhas de refrigerante, a média chega a 50% e a meta é eliminar a poluição plástica de todas as embalagens até 2025.”
Com a Aceleradora 100+, a companhia está escalando inovações de impacto. Em 2021, investiu na growPack, startup responsável por uma tecnologia regenerativa que possibilita o desenvolvimento de uma solução alternativa ao plástico e, mais recentemente, apostou em uma startup cuja técnica é capaz de separar a tinta do plástico pós-uso, garantindo a produção de uma resina mais pura.
Contudo, para que as empresas cumpram seus objetivos, é preciso estimular a outra ponta, a coleta de materiais já usados. Nessa seara, a Plastic Bank, organização de origem canadense e presente no Brasil desde 2019, trabalha para construir um ecossistema de reciclagem mais eficaz junto a comunidades costeiras vulneráveis. O objetivo é evitar que o plástico caia nos oceanos e, por isso, trabalha em um raio de 20 quilômetro da costa. “Atuamos em oito países, com altos índices de pobreza e de plástico nos oceanos”, diz a country manager, Helena Pavese. Ela conta que são mais de 4,2 mil catadores cadastrados, que já coletaram 3,1 milhões de quilos de plástico. Para isso, percebeu que precisa agregar mais valor ao cuidado com o resíduo.
Começou a haver gargalo de matéria-prima, o que prova que a realidade está mudando e que a economia circular é viável”
“No Brasil, contamos com 82 locais de coleta que trabalham com reciclagem em cinco estados, aos quais oferecemos treinamento, disponibilizamos um aplicativo de gestão de estoque, material de operação, como balanças e bags, além de um bônus de 7 centavos de dólar por quilo adquirido pelo catador, o que aumenta os ganhos em cerca de 40%”, afirma Pavese. Em junho, a organização inaugurou seu centro de coleta e reciclagem na comunidade da Rocinha, no Rio, depois de dois anos de negociação. Desde então, foram coletados mais de 12 mil quilos de plástico, o equivalente a 623 mil garrafas PETs que deixaram de ser lançadas no oceano.
Pavese destaca que depois de coletado, o plástico é reciclado, processado e transformado em matéria-prima sustentável, denominada “plástico social”. Da coleta ao destino final, todos os passos são registrados em uma plataforma blockchain para dar transparência nos números e facilitar verificação nos relatórios. A Plastic Bank também criou um serviço de compensação pelo uso do plástico, que funciona de maneira similar ao mercado de carbono. “Nós avaliamos a pegada plástica da empresa, ou seja, quanto de plástico usa, e com base nesse cálculo, retiramos a quantidade equivalente do meio ambiente para que seja reciclado”, diz Pavese. Um exemplo é o da Wella, fabricante de produtos para cabelos. Para cada embalagem vendida dos produtos da linha We Do, a Plastic Bank retira oito garrafas plásticas do meio ambiente.
Com o mesmo conceito, a eureciclo, certificadora de logística reversa de embalagens do país, criou um mecanismo de oferta e demanda de certificados de reciclagem rastreáveis. O objetivo, segundo Marcos Matos, diretor de marketing e vendas, é elevar as taxas de reciclagem e criar valor para todos os agentes da cadeia. “Ao direcionar para reciclagem resíduos equivalentes aos que produzem, em peso e material, as companhias remuneram cooperativas e operadores pelo serviço ambiental prestado e recebem os Certificados de Reciclagem como forma de comprovação legal”, afirma Matos.
Desde que iniciou as operações, em 2017, a eureciclo já compensou mais de 400 mil toneladas de resíduos pós-consumo, com remuneração de mais de R$ 23 milhões para as centrais de triagem. Hoje, são mais de 6 mil empresas certificadas, entre elas a BRF, cuja margarina Qualy, em conjunto com a eureciclo, compensou 4,2 mil toneladas de plástico nos últimos seis meses. “Foi uma das primeiras no país a contribuir com o desenvolvimento da cadeia de reciclagem do polipropileno e a única marca de margarina a compensar 100% de suas embalagens”, diz Matos.
Os benefícios do avanço desse movimento são enormes. Segundo cálculos utilizados pelo mercado para medir o impacto positivo do plástico reciclado pós-consumo, a cada tonelada produzida é possível reduzir 2.000 quilos de gases efeito estufa; 3.020 kilowatt-hora de consumo de energia elétrica; 7.800 litros de água em todo o processo, e 1.000 quilos de plástico na natureza.
“Precisamos parar de enterrar dinheiro nos lixões”, diz Moisés Weber, diretor da Plastiweber, empresa de soluções sustentáveis em plástico. A empresa, que nasceu há 25 anos como fabricante de filmes plásticos para a área agrícola, este ano provou que é possível reciclar embalagens flexíveis, até então descartadas. São produzidas 12.000 toneladas/ano de embalagens recicladas e a estimativa de faturamento em 2022 é de R$ 160 milhões, acima dos R$ 130 milhões registrados no ano passado. “Começamos na reciclagem quando sobrava sucata, de 2019 para cá, começou a haver gargalo de matéria-prima, o que prova que a realidade está começando a mudar e que a economia circular é viável.”
Correção: Diferente do que foi publicado anteriormente, o projeto da Plastic Bank é dar um bônus de 7 centavos de dólar por quilo adquirido pelo catador e não 1 centavo de dólar, como publicado antes.
Fonte: Valor Econômico