Por Alberto Serrentino
O ano de 2020 foi marcado pela Covid-19 e seu impacto sanitário, humanitário e econômico. Do ponto de vista dos negócios, o desafio foi enfrentar uma crise sem referências, com a necessidade de tomada de decisões em ambiente de elevada incerteza, com informações limitadas, com severas restrições operacionais e sem aprendizados do passado que pudessem orientar as ações. Líderes de negócio tiveram que responder de forma rápida, com aprendizado diário e muita colaboração. As economias sofreram de maneira generalizada, mas também houve uma aceleração na transformação digital dos negócios sem precedentes.
Crises não têm impacto homogêneo entre setores, mercados e empresas – nas muitas crises enfrentadas pela economia e o varejo no Brasil, encontram-se empresas que sucumbiram, encolheram, sobreviveram e prosperaram. Na duríssima crise de 2015 e 2016 – anos nos quais o varejo brasileiro caiu 4,3% e 6,2% respectivamente – empresas como Magazine Luiza, Renner, RD, Boticário e Arezzo saíram fortalecidas, com ganhos em termos de receita, resultados e participação de mercado.
As medidas de enfrentamento das consequências econômicas da Covid-19 no Brasil atuaram em três grandes frentes: preservação do emprego formal (MP 936), liquidez às empresas (crédito via bancos públicos, linhas garantidas via bancos privados e BNDES) e transferência de renda (o Auxílio Emergencial). As medidas mitigaram o impacto da pandemia e evitaram uma crise econômica e social ainda pior da que se abateu sobre o País. O emprego formal no Brasil terminou o ano em patamares similares aos do final do ano passado; e o Auxílio Emergencial distribuiu o equivalente a quase nove vezes o montante do Bolsa Família em 2019, com alcance de mais de 40% dos domicílios brasileiros (chegando a quase 60% nas regiões Norte e Nordeste).
Apesar disso, a economia sofreu, o que era inevitável. O PIB foi negativo e o mercado de trabalho informal sofreu, levando a taxa de desemprego do Brasil dos já elevados 11% para 14,6%.
No ano de 2020, o varejo brasileiro teve desempenho em formato de “V”. O ano começou de maneira positiva no primeiro bimestre e até a metade de março, mergulhou após a chegada da pandemia até abril, começou gradualmente a recuperação a partir de maio, com números positivos entre junho e outubro e estagnação no final do ano, após a redução do Auxílio Emergencial. Entretanto, as diferenças setoriais são consideráveis: o setor de materiais de construção teve o melhor ano da história; informática, telefonia, eletroeletrônicos, produtos digitais, móveis e decoração tiveram ano positivo; supermercados tiveram ano muito positivo, pela migração do consumo fora do lar para consumo em casa; farmácias tiveram crescimento moderado; categorias discricionárias e muito afetadas pelas restrições, como vestuário, calçados e cosméticos tiveram um ano difícil e o segmento de food service um ano muito ruim.
Dentro dos setores, houve novamente empresas se destacando e apresentando ganhos de participação de mercado.
Recorde de IPOs – em levantamento realizado pela Varese Retail, identificamos 44 aberturas de capital de empresas de varejo no Brasil entre 1940 e 2019. Os anos com maior número de operações neste período foram 2011 e 2017, ambos com 4 aberturas. No final de 2019, o Brasil contava com 30 empresas de varejo listadas. No ano de 2020, favorecido pelo menor patamar de juros da história e câmbio desvalorizado, houve 8 IPOs de empresas de varejo no Brasil – Grupo Soma, Quero-Quero, d1000, Pague Menos, Petz, Grupo Mateus, Track & Field e Enjoei. Há outras 16 empresas com planos anunciados para 2021, o que mostra o apetite por investimentos de risco e otimismo com as perspectivas de médio e longo prazo de empresas de varejo no Brasil.
Aceleração na transformação digital do varejo – a pandemia deixará muitos sofrimento e dados muito cruéis do ponto de vista humanitário e sanitário. De outro lado, deixará um legado em termos de maturidade digital de consumidores e empresas e de salto na transformação digital do varejo. As menções a um avanço de alguns anos em alguns meses são condizentes com a velocidade na qual os negócios evoluíram.
Do lado da demanda houve incorporação de novos consumidores digitais, aumento de frequência, diversificação de categorias – com destaque para o varejo alimentar e mudanças em jornadas de compras.
A transformação digital não é uma agenda de vendas online ou tecnologia. É essencialmente uma transformação cultural e organizacional, pela qual a empresa muda a maneira como organiza pessoas, processos e usa tecnologia para mudar a relação com o cliente. Neste sentido, 2020 trouxe mudanças relevantes:
· Salto nos elementos de cultura digital – maior orientação a clientes e dados, velocidade, agilidade, colaboração, quebra de silos funcionais e de dados, maior abertura à experimentação e erro;
· Crescimento exponencial em vendas digitais – as empresas diversificaram canais e modalidades de venda, integraram canais físicos e digitais e tiveram taxas de crescimento que variaram entre 100% e 500% nas vendas digitais;
· Disseminação e expansão de marketplaces, plataformas e ecossistemas, que se tornam protagonistas e passam e ter domínio crescente sobre o mundo digital;
· Empresas tradicionais começaram finalmente a se movimentar como start-ups e nativas digitais.
Novo papel da loja – a loja física tem e terá papel estratégico e relevante para negócios de varejo, desde que seja reinterpretada. A loja não pode mais ser vista e tratada como ponto de venda e centro de resultados diretos. A loja do futuro deve ser centrada no cliente e orientada por dados. Ela cumpre papel ampliado na conquista, manutenção e ativação de clientes; como ponto de captura de dados; como hub logístico e de serviços.
O que a pandemia trouxe como aprendizado irreversível é que não é mais o cliente que vai à loja, é a loja que vai ao cliente. As restrições impostas por quarentena, limitações a circulação, fluxo e interação com produtos e pessoas nas lojas levaram a maior pro atividade, maior uso de dados, mudança no papel das equipes de lojas, incorporação de novas ferramentas e empoderamento das lojas e equipes pelos dados e digitalização de processos.
As empresas descobriram que as jornadas de clientes começam muito antes deles estarem nas lojas e que a interação deve considerar ativação, pré-venda e pós-venda, com crescente personalização.
Durante a pandemia houve forte desenvolvimento de canais de venda, ativação e relacionamento com clientes baseados em integração de cadastros de clientes, CRM e ecommerce com ferramentas de comunicação como WhatsApp e redes sociais, criando novas modalidades de venda.
Colaboradores se tornaram gestores de relacionamento, e influenciadores em redes sociais, transformando o tempo em que não estão atendendo em oportunidade para interação digital com clientes ou atuação em redes sociais.
Livestreaming e liveshopping – a China vem desenvolvendo o livestreaming como plataforma de vendas há alguns anos, mas houve explosão durante a pandemia. O mundo se inspirou na experiência chinesa e disseminou a prática, que vem se difundindo no Brasil. A convergência entre conteúdo, mídia, entretenimento e compras, baseada em plataformas digitais e com uso de micro influenciadores ou os próprios colaboradores da empresa, será uma nova fronteira na digitalização do varejo. O Alibaba tem o Taobao Live e AliExpress Connect como plataformas de seu ecossistema voltadas ao livestreaming. A Douyin (TikTok) entrou no serviço, assim como o Google com sua plataforma Shoploop nos EUA e Amazon com amazonlive. No Brasil, empresas como B2W, C&A, Renner e Grand Cru implantaram iniciativas para liveshopping.
Marketplaces, plataformas e ecossistemas – os marketplaces vêm progressivamente aumentando seu domínio no comércio eletrônico global e tornando-se um dos pilares para evolução de modelos de negócio que se tornam plataformas e ecossistemas. Os exemplos mais maduros estão na China, onde ecossistemas como Alibaba, Tencent, Jd.com e Suning escalaram modelos de negócio baseados em grandes bases de clientes e dados com elevada recorrência, tecnologia e logística proprietárias, integrando varejo, ecommerce, marketplaces, serviços, mídia, entretenimento e pagamentos, com crescimento exponencial baseado em ativos de terceiros e aquisições/ investimentos estratégicos. O modelo tem similaridades no domínio da Amazon nos EUA.
No Brasil, empresas com operações de marketplaces responderam por 78% das vendas online no 1º semestre de 2020. Nos próximos anos haverá expansão de modelos generalistas multicategoria – como Mercado Livre, Magazine Luiza, B2W e Amazon, e modelos verticais especializados – como poderão desenvolver GPA, Carrefour, C&A, Renner, Riachuelo, Arezzo, Cobasi, Centauro, Ri-Happy, Petz e Boticário.
ESG – os efeitos da Covid-19 também provocaram uma aceleração e maior atenção para as questões ligadas a ESG – a responsabilidade ambiental, social e com boas práticas de governança – nas empresas. Consumidores estão mais sensíveis e vigilantes e a visão orientada a partes interessadas (stakeholders) vem pautando de maneira crescente as escolhas e ações de líderes e empresas. Negócios que conciliam a busca por resultados, retorno e geração de valor econômico para seus acionistas com transparência, colaboração e impacto positivo para o ambiente que os cerca terão capacidade de se adaptar e preferência a longo prazo por parte de clientes e parceiros.
O ano de 2021 será desafiador, com incerteza e instabilidade. O ciclo da pandemia; a velocidade e êxito das vacinas; a possível progressiva retomada de atividades ligadas a turismo, cultura, eventos e esporte; a retomada em investimentos; a capacidade fiscal do Governo para medidas adicionais e as medidas de estímulo econômico e liquidez a serem implementadas nos EUA, Europa, Japão e China serão determinantes para a retomada consistente do varejo como um todo. Certamente haverá aumento de frequência e permanência em lojas, com a volta de visitas motivadas por descoberta, experimentação, socialização e lazer. Mas os novos hábitos adquiridos, de maior uso de canais digitais, maior frequência e diversificação de categorias em compras digitais e maior penetração digital no varejo não retrocederão.
As empresas e líderes precisam interpretar o comportamento futuro a partir da experiência acumulada em 2020 e de uma evolução cultural e organizacional. A transformação digital do varejo teve um impulso em sua trajetória e novos modelos de negócio desafiarão as empresas em sua estratégia. De outro lado, questões ligadas a inclusão, diversidade e meio ambiente ganham status estratégico e tornam-se pautas de conselhos, assim como a transformação digital. Os desafios para líderes de varejo ganham novos contornos e redefinem agendas e prioridades.
Alberto Serrentino – fundador da Varese Retail. Consultor, palestrante internacional, autor, conselheiro de empresas e vice presidente da SBVC
Fonte: LinkedIn