Cliente ou vendedor? A barreira entre esses papéis parece mais uma a ser derrubada nesse período de pandemia do novo coronavírus, que empurrou as empresas – sobretudo as de varejo – à uma corrida sem precedentes para aumentar a presença no comércio eletrônico e tentar segurar as vendas.
Se o primeiro movimento foi concentrado em desenvolver – ou reforçar – plataformas que permitissem aos vendedores das lojas físicas ou de venda direta trabalhar remotamente, agora, o objetivo é tornar essa rede ainda mais abrangente, transformando clientes (ou como as empresas gostam de dizer, os “lovers” das marcas) em vendedores.
A Quem Disse, Berenice?, marca de maquiagens do Grupo Boticário, acaba de dar um passo nesse sentido, com o lançamento do “Chega+”, que chama as clientes para serem revendedoras dos produtos da marca – dando a elas uma comissão de 10% sobre suas transações. A novidade foi antecipada com exclusividade ao Do Zero ao Topo — marca de empreendedorismo e gestão do InfoMoney.
É um processo similar ao já utilizado com o time de venda direta do Grupo Boticário, mas aperfeiçoado e ampliado à uma nova realidade. “A ideia é dar às nossas consumidoras, que têm uma rede legal de contatos, com vários amigos, a possibilidade de ter uma renda extra nesse período de crise. Ao mesmo tempo, claro, aumentamos a nossa própria abrangência no mercado”, diz Renata Gomide, head de marketing da Quem Disse, Berenice?.
Quando a venda é concluída a companhia identifica sua origem e repassa a comissão à vendedora – além de se responsabilizar pela entrega do produto diretamente ao comprador, como faria em seu e-commerce normalmente.
Tendência de consumo
Não se trata, portanto, apenas de vendas – embora, evidentemente, a venda seja o objetivo principal. É também uma forma prática, explica Renata, de adotar uma postura mais alinhada às novas tendências de consumo. “As indicações feitas por pessoas do nosso convívio têm um impacto cada vez maior nas decisões de compra”, diz Renata. “É crucial ampliarmos as possibilidades para mostrar a marca por meio desse tipo de relacionamento.”
Usar as redes sociais para vender produtos (o chamado social selling) não é exatamente novidade. Mas colocar os próprios clientes (e não os influencers, sempre pagos para divulgar produtos) como agente dessas vendas dá à estratégia um novo status. “Já tínhamos a ideia de fazer isso há algum tempo, mas a pandemia acelerou tudo. Ela nos desafiou a buscar novidades e implantá-la rapidamente”, afirma Renata.
Em poucos dias no ar, o programa da Quem Disse, Berenice? já cadastrou mais de 200 clientes como revendedoras. Ainda não há resultados de vendas, mas a estimativa é que essa forma de comércio represente, em breve, 20% de todas as vendas de afiliados (que considera também as vendas diretas). A ação pode ser expandida também para outras marcas do Grupo Boticário (O Boticário e Eudora).
Investir em iniciativas assim faz todo o sentido para o atual momento, em que o comércio online expandiu e transformou-se, em muitos casos, na principal fonte de receitas das companhias. Na Rakuten Advertising (que desenvolveu a plataforma para o Grupo Boticário), a demanda de clientes por soluções tecnológicas para e-commerce aumentaram de forma vertiginosa nos últimos meses.
“Desde o início da pandemia, mais de quatro milhões de novos usuários começaram a comprar online e as empresas, obviamente, querem atrair essas pessoas”, diz Luiz Tanisho, vice-presidente das operações da Rakuten Advertising no Brasil. “Percebemos que era hora de trazer para o Brasil algumas soluções que já estavam começando a ser oferecidas lá fora e colocar consumidor para vender produtos da marca é uma delas.”
No mundo, a plataforma de social selling da Rakuten que permite a diferentes clientes operar com uma rede de afiliados comissionados (sejam somente vendedores, influencers ou mesmo consumidores) soma mais de 150 mil cadastrados – incluindo muitos clientes da rede de moda inglesa H&M – umas das pioneiras em dar robustez à força de vendas com suas próprias consumidoras.
No Brasil, além de Quem Disse, Berenice?, a Rakuten Advertising, somente nos últimos meses, também implementou soluções para as varejistas de moda Hering e Marisa. “As possibilidades para o varejo online são imensas e ainda há muito a ser explorado”, diz Tanisho.
Na Hering, que começou a promover novas ferramentas para dar um gás ao social selling – inicialmente com colaboradores da rede e franqueados – e, agora, também com clientes, são duas mil pessoas cadastradas. As vendas por meio do canal já representam 10% da operação de e-commerce da rede.
Na Marisa, o “Sou Sócia”, lançado em maio, atraiu mais de 13 mil clientes – que passaram a revender os produtos disponíveis no canal online da marca.
“Moda” durante a crise ou estratégia duradoura?
Ainda é cedo para concluir se a estratégia de encorpar a força de vendas com os próprios clientes trará resultados concretos em receita. É certo, no entanto, que trata-se de uma ferramenta eficaz para avançar no comércio on-line e, sobretudo, estreitar o relacionamento com os consumidores. E, nesse sentido, trata-se de um caminho sem volta.
“Tudo isso faz parte de uma forte tendência do varejo que é transformar as empresas em plataformas abertas e colaborativas, nas quais você cresce não somente com base no seu esforço e nos seus ativos, mas também pela capacidade que tem de engajar terceiros”, diz Alberto Serrentino, fundador e sócio da Via Varese Retail, consultoria especializada em consumo e varejo.
Há, evidentemente, alguns desafios e pontos a serem aprimorados para que todas as iniciativas possam mostrar o máximo de seu potencial. Um dos dilemas refere-se ao velho conflito entre os diferentes canais de venda — sejam lojas físicas ou sites.
As empresas, cada vez mais, costumam dizer que “o conflito de canais é coisa ultrapassada”, já que, afinal, é preciso entender que o concorrente está fora da empresa e não dentro (a lógica é que se o consumidor não estivesse comprando com o cliente/vendedor no online da “marca x”, estaria comprando com o cliente/vendedor no online da “marca y”). Mas é inegável que colocar mais vendedores no palco, num momento em que vender está tão difícil, pode gerar incômodo entre os que estão na luta pelo consumidor há mais tempo.
“Para seguir seus processos de transformação com sucesso, as empresas precisarão, também reformular as maneiras que recompensam e remuneram os times de vendedores”, diz Serrentino. “Buscar novos clientes é crucial. Mas a evolução precisa vir acompanhada de novos indicadores e novas formas de entender o que é resultado.”
As estratégias digitais do Magazine Luiza
Destaque no mercado pela forma que vem se adaptando as transformações digitais e pelas ações durante a pandemia, a Magalu é uma das companhias que vêm conseguindo evoluir em seu e-commerce ao mesmo tempo que reformula estratégias para os novos tempos.
A empresa também abriu recentemente sua plataforma para permitir que clientes se tornem vendedores da marca, mas as estratégias para impulssionar sua presença no digital vai além. A ideia é permitir que, futuramente, os pequenos comerciantes que têm produtos no marketplace na marca, possam também oferecer um portfólio nas lojas físicas do Magazine Luiza. Em paralelo, também criou em parceria com o Sebrae para digitalizar e capacitar pequenos negócios.
“Levamos alguns anos para digitalizar o Magalu, e fomos bem sucedidos. Agora queremos digitalizar o Brasil, sobretudo os pequenos empreendedores, um propósito ambicioso que ganha ainda mais relevância num momento como este”, afirmou Frederico Trajano, CEO do Magalu, ao divulgar a parceria.
Seja por meio de vendedores, funcionários, pequenos comerciantes ou clientes, a corrida das varejistas para abocanhar uma parte cada vez maior do e-commerce brasileiro ainda está só no começo.
Fonte: Infomoney