Uma parte maior de seus gastos discricionários vem sendo destinada a experiências que não puderam ter no início da pandemia da covid-19, como viajar e comer fora
Por Andrew Edgecliffe-Johnson e Ben Glickman
Uma fritadeira elétrica de US$ 149 por US$ 110; uma cama elástica com desconto de 10%; e um pijama infantil com desenhos de estrelas de US$ 12 por US$ 9: os cartazes de “oferta” em vermelho não eram difíceis de encontrar nesta semana no Walmart Supercenter mais próximo da sede da rede varejista, em Bentonville, no Arkansas.
A pouco mais de um quilômetro da praça da pequena cidade onde Sam Walton abriu sua primeira loja de artigos de baixo preço em 1950 e começou a construir o maior império do varejo no mundo, os descontos são bem reveladores da situação enfrentada pelo setor varejista nos Estados Unidos, às voltas com dificuldades sem precedentes para tentar prever tanto a oferta quanto a demanda.
Nesta semana, a empresa de US$ 350 bilhões emitiu seu segundo comunicado de alerta sobre os lucros em pouco mais de dois meses, avisando os investidores de que o aumento da inflação, em particular a dos alimentos e a dos combustíveis, estava afetando as condições dos consumidores para arcar com outras mercadorias.
O crescimento do Walmart foi construído em cima da feroz competitividade de preço e das tentadoras promoções que chama de “rollbacks”. Agora, porém, a rede vem precisando recorrer a mais descontos do que planejava, em particular para fazer circular os estoques de roupas. Nesta semana, na loja de South Walton Boulevard, balões de amarelo-vivo indicando “liquidação” pairavam sobre camisetas a US$ 4 e blusas de moletom com a estampa Bentonville Tigers a US$ 11.
O comunicado do Walmart afetou suas ações e as de rivais como Amazon e Home Depot, e está longe de ter sido o único a alertar para mudanças repentinas nos gastos dos consumidores e para os estragos que estão provocando nos estoques.
A Target avisou em maio que precisaria oferecer descontos em produtos e cancelar encomendas para limpar o excesso de estoque em diversas categorias, como as de televisores e de móveis para áreas externas. A Bed Bath & Beyond, a Macy’s e a Gap admitiram problemas semelhantes de estoque nos últimos meses.
Segundo as redes varejistas, não se trata apenas de que os consumidores estão preocupados com o fato de que contam com menos dinheiro para gastar depois de abastecerem suas geladeiras e carros: uma parte maior de seus gastos discricionários vem sendo destinada a experiências que não puderam ter no início da pandemia da covid-19, como viajar e comer fora, em vez de a roupas, móveis ou eletrodomésticos.
A imprevisibilidade da demanda, em especial a de consumidores com menos dinheiro disponível, é apenas parte do desafio. Muitas empresas haviam reforçado os estoques no início do ano, por temerem uma repetição dos atrasos na cadeia de suprimentos que as assolaram na última temporada de compras de fins de ano.
Na semana passada, por exemplo, a Mattel, fabricante das bonecas Barbie e dos carrinhos Hot Wheels, informou que seus estoques aumentaram 43% na comparação anual, enquanto a rival Hasbro também tinha níveis de estoque atipicamente altos, preparando-se para a alta temporada dos fabricantes de brinquedos.
“Os importadores não confiam mais nas cadeias de suprimentos”, explicou Zvi Schreiber, executivo-chefe da Freightos, um serviço de reservas logísticas. “Os varejistas não querem correr nenhum risco. Se eles podem arcar com o estoque, eles estão estocando, preparando-se agora para a temporada de compras.”
O grande volume de remessas pendentes nos portos dos EUA e da China atrasaram os embarques para muitos varejistas no outono americano em 2021, o que resultou no aumento dos custos de frete e em situações de falta de alguns produtos. As remessas que foram chegando com atraso se transformaram em estoques em excesso, dos quais os varejistas tiveram que se livrar a preços mais baratos na primavera ou deixar armazenados para revender em dezembro.
Os fretes de transporte marítimo caíram em relação ao pico de 2021, mas ainda estão muito acima dos níveis anteriores ao impacto da pandemia. Na semana passada, o envio de um contêiner padrão de 40 pés da Ásia para a Costa Oeste dos EUA custava em média US$ 6.593, de acordo com Freightos. É quase 70% a menos do que há 12 meses, mas ainda mais de quatro vezes acima do que os importadores pagavam em 2019.
Poucos varejistas apostam que o congestionamento acabará tão cedo, já que a escassez de mão de obra tem perpetuado os atrasos, os sindicatos continuam em negociações com os portos da Califórnia e as inquietações trabalhistas ameaçam provocar interrupções nos fluxos de caminhões e trens.
Por sua vez, os varejistas que trazem produtos muito antes da temporada de compras do fim de ano precisam lidar com as poucas opções de armazenamento disponíveis e com preços bem caros. Na semana passada, a Prologis, empresa de locação de armazéns, informou que sua taxa média de ocupação aumentou de 96% para 97,6% e que os aluguéis de armazéns recém-arrendados nos EUA aumentaram 54% em relação a 12 meses atrás.
Agora, os comunicados de alerta do Walmart e de outros varejistas levantam dúvidas sobre o quanto do que está nesses armazéns será vendido conforme o planejado.
A previsão de como será demanda para a temporada de fim de ano está em constante mudança, segundo Vaughn Moore, executivo-chefe da empresa de logística AIT, observando que dois de seus grandes clientes de varejo reduziram as projeções de vendas.
“O problema é que, à medida que entramos na temporada de festas de fim de ano, eles estão ficando com o tipo de estoque errado no depósito”, disse Moore, prevendo que serão necessários cortes de preços para “queimar” o estoque antigo e abrir espaço para novas mercadorias.
Os consumidores enviam sinais desencontrados sobre seu desejo de consumo. Em junho, o índice de confiança do consumidor da Universidade de Michigan atingiu o nível mais baixo em seus 70 anos de história, enquanto, nesta semana, a Best Buy informou que os gastos com bens eletrônicos de consumo “moderaram-se ainda mais” em comparação a maio.
No entanto, resultados fortes de empresas como Harley-Davidson e LVMH, proprietárias das marcas de luxo Louis Vuitton e Tiffany, indicam que as vendas de produtos de alto padrão permanecem altas.
Esses sinais ambíguos intensificam ainda mais do que o normal os holofotes sobre a próxima temporada de compras de volta às aulas nos EUA. O desempenho poderá trazer uma imagem mais clara de como os consumidores se comportarão no período ainda mais forte de compras, o da temporada das festas de fim de ano.
Pesquisas da Federação Nacional de Varejo (NRF, na sigla em inglês) dos EUA sinalizam que a família média gastará 2% a mais do que em 2021 em cadernos, lápis e outros materiais escolares, mas que o volume total gasto nos varejistas cairá um pouco em relação ao ano passado, de US$ 37,1 bilhões para US$ 36,9 bilhões, mesmo antes de ajustes pela inflação.
Nesse contexto, promoções como as pastas a US$ 0,50, nas prateleiras das seções de volta às aulas do Walmart, podem ser menos relevantes para determinar se os varejistas conseguirão enfrentar o desafio dos estoques neste ano do que saber se a inflação começará a cair, observou Ethan Chernofsky, vice-presidente de marketing da firma de dados sobre locação Placer.ai.
No entanto, a combinação atual, de inflação próxima ao máximo histórico e de desemprego, ao mínimo histórico, é algo que deixa até varejistas do naipe do Walmart sem uma cartilha na qual se basear, disse Stephanie Cegielski, vice-presidente de análises da associação setorial de shopping centers ICSC.
“A dificuldade para todos neste momento”, disse ela, é que “nunca vimos nada parecido”.
Fonte: Valor Econômico