Por Daniele Madureira e Marcelo Pessini | Os estrangeiros estão dominando as vendas online no Brasil. Com a derrocada da Americanas, em recuperação judicial depois da fraude contábil de R$ 25 bilhões, os últimos meses têm sido de rearranjo no mapa do varejo eletrônico nacional.
Houve mudanças significativas em três grandes métricas que indicam o sucesso dos sites de compras: vendas brutas (GMV, na sigla em inglês), número de downloads do aplicativo e total de visitas à página (tráfego), segundo levantamento feito pela Folha.
A disputa ocorre no momento em que as vendas online das varejistas brasileiras estagnaram: alta de 0,7% em 2023 em comparação ao ano anterior, para R$ 286,5 bilhões, segundo cálculos da consultoria Varese Retail, com base em dados da NielsenIQ Ebit. Ninguém está mais disposto a “rasgar dinheiro” com fortes promoções e oferta indiscriminada de fretes grátis.
No momento em que cada clique importa, o mercado espera para breve a entrada no país da Temu. Chamada de “Amazon com esteroides”, o marketplace chinês ultrapassou a Shein e a Amazon e desde maio do ano passado tem sido o aplicativo de compras mais baixado do mundo.
Antes mesmo de estrear no Brasil, a chinesa já passou à frente de outros varejistas consolidados no país: o app “Temu: Compre como um bilionário” ocupa hoje o 65º lugar no ranking dos aplicativos de compras mais baixados, à frente da Marisa (66º), Mobly (68º), Zara (70º) e Pernambucanas (71º), de acordo com a ferramenta de pesquisas de mercado App Magic.
“Os dados já mostram esse interesse dos brasileiros em conhecer o novo marketplace”, diz Erich Casagrande, líder de marketing no Brasil da Semrush, plataforma de marketing digital. A Temu pertence ao gigante chinês PDD Holdings, que em 2023 faturou US$ 34,8 bilhões (R$ 180 bilhões).
A disputa entre os marketplaces asiáticos se acirra. Nos últimos 12 meses, a singapurense Shopee ultrapassou a chinesa Shein em número de downloads, tornando-se o segundo aplicativo mais baixado do país, só atrás do argentino Mercado Livre, segundo o AppMagic.
Em abril do ano passado, a Shein estava liderando o número de downloads no país, mas perdeu o posto em novembro. Entre abril de 2022 e março de 2023, o tráfego da Shein no Brasil triplicou. Mas nos 12 meses seguintes, houve uma queda de 20% nas visitas ao site, conforme levantamento da Semrush para a Folha.
Segundo Casagrande, a adesão em setembro ao programa do governo federal Remessa Conforme —que determinou Imposto de Importação de 60% para compras internacionais acima de US$ 50 (R$ 262) e 17% de ICMS— causou impacto nas vendas da Shein.
“Mesmo com a empresa absorvendo parte da alta dos custos, o consumidor sentiu a alta de preços”, diz.
Procurada, a Shein não quis comentar, mas divulgou nota em que critica o possível aumento da alíquota de ICMS de 17% para 25%, que incide sobre as compras feitas nos sites que aderiram ao Remessa Conforme. A medida estava sendo discutida pelos Estados, mas a decisão foi adiada.
A Shein está em um processo de nacionalização das suas operações, com a meta de atingir 85% das suas vendas a partir de sellers (lojistas que vendem seus produtos no marketplace) locais até o final de 2026, com a contratação de 2.000 fábricas no país.
O Mercado Livre –que acaba de anunciar o vultoso aporte de R$ 23 bilhões no Brasil neste ano, onde também vai contratar 6.500 pessoas para aumentar sua infraestrutura, base operacional e logística– continua como líder em vendas e retomou o primeiro lugar em downloads.
Mas em tráfego seu crescimento foi de apenas 1% entre março de 2023 e março deste ano, segundo a Semrush. No período, o indicador da Amazon avançou 3,2%, e o da Shopee 26,3%.
Em 2023, o site brasileiro da americana Amazon, que estava em quinto lugar entre os maiores marketplaces do país, passou ao terceiro lugar, com vendas estimadas em R$ 25 bilhões, segundo a consultoria Varese Retail.
No último dia 17, a Amazon divulgou pela primeira vez os seus investimentos no país desde que chegou, em 2011: R$ 33 bilhões, em infraestrutura e salários.
Já a Shopee passou à frente das brasileiras Casas Bahia e Americanas, para ocupar o quarto lugar em vendas online, segundo a Varese Retail. “O nosso Dia do Consumidor, em 15 de março, ultrapassou em vendas a Black Friday”, disse à Folha Felipe Piringer, diretor de marketing e estratégia da empresa no país.
O processo de “nacionalização” do gigante de Singapura já está mais adiantado que o da Shein: segundo a Shopee, 90% das suas vendas hoje no país são de sellers locais.
A empresa não abre investimentos ou receita, mas garante ter um terço dos consumidores brasileiros logados em seu site ou aplicativo todo mês.
A companhia acaba de inaugurar o seu 11º centro de distribuição (CD) no país, na região metropolitana de Porto Alegre, e de abrir mais um hub logístico, agora em Palmas. Em fevereiro, outro CD foi aberto em Goiânia.
Em hubs logísticos (que só fazem a separação da mercadoria) são 110 no Brasil até agora, com uma cobertura em 22 Estados.
“Depois que a gente entra com uma operação logística com o nosso hub, conseguimos melhorar muito a experiência do consumidor, com uma entrega mais rápida, e a partir daí aumentar a demanda na região”, diz Rafael Flores, diretor de expansão e malha logística da Shopee Brasil.
MODA É A NOVA FRONTEIRA DE DISPUTA ENTRE OS MARKETPLACES
As categorias de eletroeletrônicos e moda têm sido as mais buscadas da Shopee nos últimos meses. No caso do vestuário, é um indicativo do aumento da concorrência com a Shein, que ainda mantém o posto de aplicativo de moda mais baixado do país.
“Todo mundo olha mais para moda, um segmento do comércio online onde há mais chances de crescer, porque ainda é pouco explorado”, diz Luiz Guanais, analista de consumo e varejo do BTG Pactual.
Também o líder Mercado Livre vem se movimentando nesta direção. Este mês, lançou o curso “Você Vendeu”, focado no segmento de moda, na tentativa de aumentar os resultados dos vendedores da plataforma que atuam nesta categoria.
Guanais, no entanto, lembra que a Shein, cujas vendas no país são estimadas em mais de R$ 15 bilhões, é um marketplace vertical, ou seja, especializado.
“Já concorrentes como Shopee e a Temu são mais generalistas”, afirma Guanais, que destaca o poder de fogo da Temu, criada há menos de dois anos.
Eles têm recursos como compras em grupo e um forte time de influencers, os criadores de conteúdo. “São conhecidos por atingirem principalmente consumidores mais jovens, com uma estratégia de preços baixos e ferramentas de gamificação, que podem ter efeito viciante”, diz Guanais.
“O número de usuários ativos mensais no seu aplicativo nos Estados Unidos disparou 950% no quarto trimestre do ano passado, assim como as suas despesas com publicidade digital”, afirma.
Para se ter uma ideia, a Temu foi uma das principais anunciantes do Super Bowl, final da principal liga de futebol americano dos Estados Unidos.
TEMU JÁ DEU INÍCIO À CAPTAÇÃO DE CONSUMIDORES NO BRASIL
A Folha questionou a Temu sobre a sua chegada ao país, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A Temu já está fazendo um trabalho de captação de base, em busca de potenciais consumidores, diz Alberto Serrentino, sócio da consultoria Varese Retail. A reportagem confirmou o envio de email marketing a quem visita a versão em português da página da empresa, que já oferece a opção brasileira para tamanhos de sapatos e roupas, por exemplo, embora o envio para o Brasil ainda não aconteça.
Na América Latina, a Temu já opera no Chile, Colômbia, México, Peru, República Dominicana e Uruguai.
“A Temu é um negócio emergente em todo o mundo. Eles devem chegar ao Brasil neste ano de forma agressiva, uma vez que seguem a Shein pelo mundo com um modelo parecido, com destaque para a moda barata”, afirma Serrentino.
O avanço das plataformas estrangeiras de comércio eletrônico deve manter a competição acirrada neste ano, segundo o Goldman Sachs.
Para o banco, as varejistas brasileiras podem ser beneficiadas com o aumento da formalização dos sellers (lojistas que vendem seus produtos nos marketplaces, a quem pagam uma comissão) e os efeitos do programa Remessa Conforme, medidas que aumentaram os custos para os asiáticos.
“No entanto, a chegada da Temu e da plataforma de compras do TikTok, o TikTok Shop, devem manter a concorrência e o custo de aquisição de clientes alto para 2024”, afirma o relatório “Perspectivas: 10 temas para varejo e comércio eletrônico no Brasil em 2024”, assinado por Irma Sgarz, Felipe Rached e Gustavo Fratini.
De acordo com a Varese Retail, o Magalu também foi beneficiado pela perda de clientes da Americanas, ao passar da terceira para a segunda posição em faturamento bruto (GMV, na sigla em inglês). É a única brasileira no ranking dos cinco maiores marketplaces do país.
“Varejistas como Magalu e Casas Bahia continuam muito relevantes”, diz Serrentino. “Mas no Brasil, o consumo depende fundamentalmente de crédito, o que impacta a compra de itens de maior valor agregado, como eletrônicos.”
Os marketplaces nacionais veem parte do seu capital “empatado” nos CDs, com a formação de estoques. Já nos estrangeiros a maior parte ou todas as suas vendas vêm de produtos oferecidos pelos sellers, o que lhes proporciona maior capital de giro e menos risco.
Para o banco Goldman Sachs, o comércio eletrônico (incluindo varejistas brasileiras e estrangeiras) deve crescer 15% no país neste ano, um avanço frente à alta de 7% no ano passado. Com isso, as vendas online vão representar 14% do varejo brasileiro.
Fonte: Folha de S. Paulo