Por Sérgio Ripardo
Com R$ 2,5 bilhões de crédito a receber da Americanas (AMER3), o Banco Safra questiona na Justiça alguns pontos do plano de recuperação judicial apresentado pela varejista e abriu litígio no caso, colocando em risco a expectativa da empresa de ver o plano homologado no início de 2024.
A ação do Safra para alterar o plano e o acordo fechado pela Americanas com Bradesco (BBDC4), Itaú (ITUB4), Santander (SANB11) e BTG Pactual (BPAC11) foi protocolada na Justiça do Rio de Janeiro no começo da tarde desta segunda-feira (4). A Bloomberg Línea teve acesso ao documento.
Na petição, o Safra pede a exclusão de 20 cláusulas do plano de recuperação judicial (PRJ) e do PSA (Plan Support Agreement), que está anexo no PRJ e foi anunciado no dia 17 de novembro, representando o apoio dos quatro bancos credores às condições propostas pela Americanas para pagar sua dívida total de R$ 42,5 bilhões. O movimento do Safra de entrar na Justiça vai na contramão dos quatro bancos que assinaram o acordo no mês passado.
“O objetivo [do PSA] é claro: empreender de forma açodada, ao encerrar das luzes de 2023, uma verdadeira ‘corrida’ para a aprovação ‘à fórceps’ do PRJ dentro do presente exercício fiscal em busca de benefícios tributários exclusivos para as recuperandas e as instituições financeiras coniventes com a fraude”, cita a petição assinada pelos escritórios Asseff Zonenschein e Vasconcelos Hecker Advogados.
Em nota, a Americanas disse confiar na aprovação do PRJ, que quatro bancos que assinaram o PSA não viram irregularidades nos termos, que o Safra participou das negociações e age por “interesses particulares, sem quaisquer concessões” (leia mais abaixo).
Desde o anúncio do acordo com os quatro bancos credores no dia 27 de novembro, as ações da Americanas acumulam uma queda de 10%, até a última sexta-feira (1º). Nesta segunda-feira (4), o papel caía 1,08% para R$ 0,92 por volta das 15h50.
Na petição a que Bloomberg Línea teve acesso, a defesa do Safra lista as supostas irregularidades do PRJ. Uma delas é a data-base da apuração dos créditos (12 de janeiro de 2022, segundo a lista de credores elaborada pela Americanas, e não 19 de janeiro, como consta no PRJ). O Safra cobra a apresentação de uma nova lista de credores pelo administrador da recuperação judicial considerando a data de 19 de janeiro, “a fim de apurar o adequado quórum de instalação e votação do PRJ”.
Caso não consiga votar o plano no próximo dia 19, uma segunda convocação dos credores está marcada para o próximo dia 22 de janeiro do ano que vem.
“Não se pode admitir a realização de uma AGC desse porte, com a atuação de dois administradores judiciais, sem que a nova lista atualizada de créditos defina a instalação e votação de um PRJ. É o mínimo que se espera”, diz a petição da defesa do Safra.
Em outro ponto, intitulado “a segunda tentativa de fraude”, a petição cita a “imposição ao compromisso de não litigar (a fraude tem preço?)”. O Safra considera que essa condição presente no acordo proposto pela Americanas “viola o direito constitucional” e que o “acesso ao Judiciário e o direito de ação são inegociáveis”.
Algumas questões levantadas pelo Safra já tinham sido levantadas por analistas do mercado financeiro que cobrem a Americanas. No último dia 16 de novembro, em teleconferência para comentar os balanços revistos de 2022 e 2021, profissionais do mercado já indagavam os executivos da Americanas sobre a necessidade de republicar as demonstrações financeiras de anos anteriores para melhor dimensionar o impacto da fraude contábil.
‘Forma perversa’
O PSA anunciado no dia 17 de novembro, que teve o apoio do Bradesco, Itaú, Santander e BTG Pactual, tem a premissa dessa condição de os credores desistirem de ações judiciais, uma prática que acompanhou o processo de recuperação judicial desde o dia em que as “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões vieram a público em fato relevante divulgado na noite de 11 de janeiro.
No dia 15 de janeiro, Bloomberg Línea noticiou com exclusividade, por exemplo, a tentativa do BTG de anular na Justiça a proteção judicial solicitada pela Americanas a fim de evitar o bloqueio de valores.
“O PRJ vai muito além dos atributos negociais e macula a manifestação de vontade dos credores de forma perversa”, observa a petição do Safra.
O banco diz, no documento, ser um dos preceitos básicos da recuperação judicial que as empresas que se utilizam do instituto seja um “livro aberto” para a fiscalização do administrador judicial, credores e justiça, sendo a simetria de informações e transparência um dos requisitos básicos na condução do procedimento.
No último dia 16 de novembro, a Americanas reconheceu que o valor da fraude (R$ 25,3 bilhões) foi maior do que o inicialmente divulgado (R$ 20 bilhões). Uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) criada no Congresso Nacional terminou sem apontar possíveis culpados pela fraude.
Caso de falência
A varejista, que tem como acionistas de referência o trio de bilionários da 3G Capital, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, admitiu durante a apresentação das demonstrações financeiras que ainda há auditorias em andamento, como a que investiga as contas da fintech AME, uma peça fundamental nas operações fraudulentas denunciadas, já que envolviam transações entre o braço digital da companhia e sua contabilidade consolidada.
O Safra também questionou, na petição, o que chamou de “terceira tentativa de fraude: a impossibilidade de retorno ao status quo ante”, em referência ao fato de que, após a homologação do PRJ, alguns credores não teriam a opção de retroação dos efeitos em caso de falência, o que caracterizaria, segundo o banco, a ilegalidade do plano.
“Dispõe o art. 59 da LRF [Lei de Recuperação Judicial] que o plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido. Já o art. 61, §2º da LRF determina que, decretada a falência, os credores terão reconstituídos seus direitos e garantias nas condições originalmente contratadas deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticados no âmbito da recuperação judicial”, citam o advogados do Safra na petição.
Diferença entre banco e asset
O banco contesta ainda um quarto ponto, que chama de “a quarta tentativa de fraude: tratamento diferenciado entre os credores de uma mesma classe”. A defesa questiona a diferenciação entre os credores financeiros (bancos e assets).
“Os credores quirografários ‘bancos’ para receberem o mesmo valor de recuperação que os demais credores quirografários (as ‘assets’, por exemplo) são ‘obrigados’ a conceder novas fianças para a Americanas, para garantia de dívidas fiscais da companhia. Se não conceder receberão menos que os demais credores quirografários (tratamento diferenciado de credores da mesma classe)”, observa o Safra na petição.
Na argumentação dos advogados, há um “nítido benefício” aos credores do mercado de capitais de centenas de milhões para o recebimento de valores, enquanto há uma “oneração desarrazoada e indevida” aos credores “banco” de centenas de milhões, “sem qualquer espécie de justificativa legalmente admissível”.
No tópico “quinta tentativa de fraude: direito de voto dos debenturistas: disposição do PRJ contraditória e ilegal”, o Safra alega que o PRJ tenta burlar o procedimento administrativo judicial com o procedimento de individualização dos debenturistas não encerrada. Para o Safra, a consequência desse suposto “abuso” seria a interferência direta na composição da lista de credores e no exercício de votos destes credores e, por consequência, no resultado da AGC.
“Embora o Banco Safra não figure na condição de debenturista, há claro interesse na elaboração de uma lista de credores adequada e correta, uma vez que impacta diretamente os contornos da AGC para a instalação e votação da PRJ”, escrevem os advogados.
Americanas comenta
Após a divulgação do ingresso da ação do Safra, a Americanas divulgou, na noite de ontem (4), uma nota lamentando o fato, expressando confiança na aprovação do PRJ e defendendo os termos do plano.
“O plano apresentado é resultado dos esforços da Americanas, dos acionistas de referência e dos credores e reúne as melhores condições para que companhia preserve a importante atividade econômica que representa. Não por outros motivos os maiores credores da companhia firmaram um acordo apoiando o plano e reconhecendo a legalidade de todas as suas disposições”, citou a varejista.
A companhia também lembrou movimento jurídico anterior do Safra. “É importante lembrar que o banco Safra foi justamente quem impediu o pagamento imediato pleiteado pela companhia de 100% dos credores das classes I e IV, que contemplam as dívidas trabalhistas e de pequenas e microempresas”, mencionou.
A Americanas informou ainda que a fraude contábil continua sob investigação das autoridades e por comitê independente. “O plano prevê expressamente a possibilidade de responsabilização de todo e qualquer administrador que venha a ser apontado como autor da fraude nas citadas investigações”, observou a nota.
A varejista vinculou a contestação do Safra a “interesses particulares, sem quaisquer concessões”, considerando o movimento como natural em processo de RJ.
“Apesar de ter participado, com os demais bancos, de todas as negociações que levaram à construção do consenso em torno do Plano de Recuperação Judicial, o Safra mostra que sua intenção, desde o início, não era de negociar, mas apenas satisfazer os seus interesses particulares, sem quaisquer concessões, como é natural num processo de Recuperação Judicial”, diz a nota.
Um advogado, sem vínculo com o caso, ouvido pela reportagem sob a condição de anonimato, disse à Bloomberg Línea que a estratégia do Safra é comum quando o credor dissidente tenta pressionar para reduzir danos nas negociações, mas que nem sempre é bem-sucedida quando esse credor está em minoria. Segundo esse profissional do direito, a justiça tende a ignorar esse tipo de demanda quando há intenção velada de atrasar o processo de RJ em prol de um único credor.
Na segunda-feira, o juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, negou uma outra ação do Safra que tentava barrar a convocação da AGC, mantendo a data de 19 de dezembro para a realização da assembleia da Americanas. O magistrado entendeu que o Safra não tinha o direito de fazer esse pedido por não ser um debenturista da companhia.
Fonte: Bloomberg Linea