Rony Meisler, da Reserva: “A gente sempre esteve nesse negócio mais pelo tesão da estrada do que pela certeza do destino”
Foguete não dá ré. Esse é o mote que o Grupo Reserva adotou a partir de julho, quando as vendas — após o baque inicial por conta da pandemia — retomaram o patamar de 2019.
“Quem primeiro sai da crise ‘na cabeça’, primeiro sai da crise no negócio”, diz Rony Meisler, 38, CEO do Grupo, que inclui a marcas Reserva (cofundada por Rony em 2006), Reserva Mini, Ahlma, Eva e Oficina Reserva.
Nos últimos anos, esse foguete vem esquentando as turbinas. Na época da primeira Entrevista Draft com o Rony, em abril de 2016, o Grupo vinha de um faturamento de 250 milhões de reais no ano anterior. Em 2019, esse resultado já saltara para 400 milhões de reais.
Recentemente, gerou estrondo a notícia da aquisição do Grupo pela Arezzo&Co. O negócio, de 715 milhões de reais, ainda está em avaliação pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
A seguir, Rony fala sobre os bastidores da negociação, a reação do Grupo Reserva à Covid-19, seu engajamento junto ao tema do capitalismo consciente e as transformações que vêm desenhando o futuro do varejo.
Como a Reserva vem passando pela Covid? Mudou a forma de se relacionar com o time, o cliente…?
Quando acontece algo assim, toda empresa tem que entrar no “modo sobrevivência” e no “modo reinvenção”. Em primeiro lugar, óbvio, o modo sobrevivência. Fechamos o escritório, as lojas… A única unidade de negócios que ficou aberta naquele momento inicial foi o centro de distribuição, seguindo todos os protocolos
Criamos uma reunião diária de vendas, de uma hora, com todos os canais e todas as marcas. A gente precisava garantir a unidade da comunicação, compartilhar conhecimento rápido, ser muito objetivo. E também uma reunião de caixa diária: o caixa é o que mais dói em momentos como o que a gente viveu, de diminuição drástica e rápida de faturamento.
No momento inicial, boa parte das empresas começou a dar mais crédito para os clientes atacadistas, multimarcas, franquias… A gente tomou uma decisão diferente, resolvemos criar já um pacote de parcelamento muito longo.
Durante uma, duas semanas, conversamos com todos os clientes [B2B]. Temos 1 500 clientes multimarcas e 40 franquias. Se o cara estiver preocupado, sem saber se vai ter dinheiro para pagar a conta dali a 30, 60, 90 dias, ele não vai conseguir ser produtivo. Decidimos tirar da frente deles essa preocupação para que possam focar em vender
Nossos parceiros são pessoas de bem com as quais convivemos há muitos anos, então nos colocamos no lugar deles, sabendo a tranquilidade que seria se a gente também pudesse negociar com todos os nossos fornecedores. Porque não seria em 30 dias que esse problema [pandemia] ia ser resolvido.
E como vocês migraram desse “modo sobrevivência” para o “modo reinvenção”?
Nosso mindset sempre foi de resolver problema de todos os stakeholders ao redor da marca. Muitas dessas sementes da reinvenção foram plantadas ao longo da história. E quando veio o tsunami da Covid, essas sementes já eram árvores maiores.
Quando veio o tsunami da Covid, o playbook de todos os mercados era: queima estoque, faz caixa e senta em cima dele. E olhando para o nosso propósito (“cuidar, emocionar e surpreender pessoas”), a gente pensou: ok, esse é o “playbook sobrevivência”, mas não é o “playbook reinvenção”. Afinal, sobrevivência de quem?
A nossa rede de parceiros multimarcas, franquias, tinha acabado de receber o estoque da coleção de inverno, estavam com os boletos pra pagar. Tínhamos acabado de dar mais prazo, desconto, mas nunca seria na proporção de 50%, 70% na internet. A gente iria matar a cadeia se fizesse esses descontos. Posso fazer caixa no curto prazo, mas daqui a dois, três meses, todo mundo quebrou. Então, o que fazer?
A gente tinha, primeiro, uma cultura de ponta, de atendimento, de entrega de experiência ao consumidor muito forte, um time de vendas imbuído do propósito e apaixonado pela marca. E esse time estava em casa [por conta da Covid].
Além disso, tínhamos um sistema legado, o Now, que os times usavam no salão de vendas, na ociosidade. Ou seja, quando não estavam atendendo, iam para o celular ou o iPad da loja, ver o que podiam fazer para se relacionar com seus clientes..
O CRM clássico automatiza a relação do negócio com os seus clientes. O Now automatiza a relação dos times de vendas com os nossos clientes. Com base em track record comercial e no relacionamento do vendedor e da vendedora com seus clientes, ele propõe réguas de relacionamento automáticas e programáticas, dos nossos times com os nossos clientes, que podem ser por telefone, SMS, WhatsApp, email marketing…
Já tínhamos também um segundo sistema, um WMS [Warehouse Management System] próprio, para reposição automática nas lojas físicas. Em vez de manter o estoque na loja, eu mantenho no Centro de Distribuição e reponho para a loja com base nas vendas — o algoritmo garante que não sobre produto numa loja e falte na outra.
Então, [na pandemia] as lojas não só tinham os sistemas para operar como CD [Centro de Distribuição] avançado, mas principalmente, já tinham uma cultura de uso desse sistema.
Tínhamos 800 profissionais em suas casas. Decidimos: vamos plugar eles no Now o dia todo e manter uma estrutura de estoque dentro das lojas, seguindo os protocolos de segurança, para shipar e assim atender muito rapidamente o consumidor — tanto as franquias quanto as lojas próprias, e no meio do processo fizemos as multimarcas
O foco foi esse, no Now e no Last Mile. E decidimos não fazer desconto na mercadoria antes do prazo do desconto comum, que era depois do Dia dos Pais, em agosto — a gente estava em março.
A gente sabia que a “foto”, o mês seguinte, de quem estava fazendo desconto de 60%, 70% na internet, seria melhor do que a nossa. Mas o nosso “filme” dos próximos quatro, seis meses seria muito melhor do que a média de mercado.
Dito e feito. Pré-Covid, 25% da nossa venda era digital. Era a menor parte do faturamento — mas muito alto frente à média de mercado, de 5% a 7%.
Em abril, comparando com [o mesmo mês de] 2019, na venda business-to-consumer (lojas físicas mais internet), fizemos 35%. Em maio, 53%. Junho, 65%. Julho, quase 95%. Agosto, fizemos 97%. Em setembro, 120%. Outubro, quase 120%. E novembro, quase 130%.
Ou seja, a partir de julho trouxemos a venda para patamares iguais aos de 2019, usando a tecnologia. Pela força do uso, quanto mais você usa, mais ela melhora.
Como você comunica tomadas de decisão como essas ao time?
Gosto de usar figuras de linguagem, que expliquem as decisões que estamos tomando, para onde estamos indo. No período inicial em que decidimos não seguir o playbook, disse que a gente tinha decidido “pousar nosso avião no Rio Hudson” [referência ao pouso de emergência, em 2009, do piloto Chesley Sullenberger, vivido depois no cinema por Tom Hanks]. O playbook, a “torre de comando”, mandava a gente voltar para o aeroporto, mas a gente sabia que ia “dar ruim”.
Quando você conversa com mentores, gente há anos no mercado, quase todos lembram do confisco do dinheiro da Era Collor como a maior crise depois dessa. Mas todos fazem a ressalva de que era uma crise econômica que durou dois, três meses… Esta é uma crise sanitária. A consequência não é só as empresas quebrarem, mas as pessoas morrerem. Se Deus quiser, a gente nunca mais vai viver outra igual
Mas, economicamente, é inegável que depois de crises, oportunidades surgem. A partir de julho, a gente assumiu outra figura de linguagem: foguete não dá ré. Adotamos essa tagline para botar a galera de volta no trilho. A partir de agora não é mais “sobrevivência” ou “reinvenção” — agora é crescimento com base na reinvenção que a gente viveu
Sobre a fusão anunciada com a Arezzo: como e quando começaram as negociações?
Antes, só fazendo a ressalva formal: essa negociação ainda está sujeita à aprovação do Cade, não podemos ainda dá-lo como certo, então o que vou falar é no plano de ideias….
Conheço o Alexandre e o Anderson Birman [respectivamente CEO e fundador da Arezzo&Co] há mais de cinco anos, colegas absurdamente admiráveis de mercado com os quais sempre contei para mentoria, opinião.
No final de abril, o Alexandre me ligou com uma ideia tão simples quanto brilhante: Rony, todo mundo precisa se ajudar, por que a gente não faz um evento cross-sell de marketing entre Schutz e Reserva?
Estava chegando o Dia das Mães, evento de sazonalidade relevante para a Schutz, em seguida teria o Dia dos Namorados e o Dia dos Pais, relevante para a Reserva. Botamos os times juntos, deu match na hora, construímos um planejamento de lançamento inteligente. No Dia dos Namorados, as marcas “namoram” nas mídias sociais, uma “cantava “ a outra… Foi superbacana, inclusive o resultado comercial.
Um mês e pouco depois, um amigo em comum, do mercado de capitais, provocou as duas partes: a Arezzo&Co é uma companhia focada em calçados e acessórios, o Grupo Reserva é focado em vestuário e lifestyle… A complementaridade é quase lógica: por que não estudar a ideia de vocês se unirem para viverem esse novo mundo pós-Covid?
Tanto eu como o Alexandre gostamos da ideia, e ali começou uma conversa para para a construção desse negócio, que anunciamos no dia 23 de outubro. Foi assim. E dentro dessa lógica do “foguete não dar ré”, fez mais sentido ainda, porque certamente a parceria acelera a expansão das nossas marcas.
Já li declaração sua dizendo que tinha “pavor” da cultura das grandes organizações, e um receio de perder as rédeas se a Reserva crescesse demais. Você superou esse medo? Como cuidar para que a cultura da Reserva sobreviva e se expanda?
A sede da Arezzo&Co fica em Campo Bom (RS), desde desenvolvimento de produto até o digital. Acho que todo mundo deveria visitar Campo Bom. Eu sou um cara bem curioso, já tive oportunidade de conhecer muitas empresas no nosso país e mundo afora… E o que eu vi em Campo Bom é a coisa mais próxima da Inditex [dona da Zara] que eu já vi na vida.
Normalmente, o industrial no Brasil ou é muito bom de indústria, ou é muito bom de varejo e marca. A Arezzo&Co conseguiu construir uma cultura que mistura as duas coisas no estado da arte, a empresa tem uma cultura empreendedora muito forte. A viagem a Campo Bom foi um ponto de inflexão nessa conversa
Óbvio que as companhias permanecem separadas. Mas quando você casa, se um quer morar no campo e o outro na praia, vai dar ruim. Então, são culturas muito próximas de negócio, com conhecimentos e tecnologias complementares. Uma pode aprender e uma ensinar muito à outra.
No caso do Grupo Reserva, uma coisa é cultura, outra é tamanho. A Reserva sempre teve uma visão expansionista e de crescimento, a gente saiu de zero de faturamento em 2006 para um grupo de marcas com 400 milhões de reais de faturamento em 2019.
Agora: a cultura tem que ser preservada, 100%. Esse não é um negócio que pretende, com base em possíveis integrações, matar a cultura. Pelo contrário: a gente mantém os braços de negócio separados, até para que com base nessa plataforma operacional e cultural possamos expandir as nossas marcas e fomentar e possivelmente absorver novas marcas.
Óbvio que essa decisão envolve mais gente. Mas como foi decidir seguir com o negócio para você? Foi uma decisão difícil?
Cara, foram meses muito intensos, misturou o ambiente de pandemia com uma conversa tão próspera… Um negócio como esse é muito conversado, são centenas, talvez milhares de conversas, quando se considera todas as pessoas envolvidas. E essas conversas foram dando clareza de que poderia ser um negócio muito, muito legal.
A Reserva nasceu como um grupo de empreendedores com cabeça jovem, que queria fazer diferente num mercado super tradicional — e entregar de uma forma também diferente no que diz respeito à lógica de consciência nos negócios. Acho que fomos bem sucedidos.
Mas sempre que me perguntavam aonde a gente queria chegar, qual seria o tamanho da empresa… Cara, eu não tinha a menor noção. E sinceramente? Até hoje não tenho. A gente sempre esteve nesse negócio mais pelo tesão da estrada do que pela certeza do destino. Se “soubéssemos” aonde queríamos chegar, o tamanho, a quantidade de lojas…, eu teria errado lá atrás
O tesão da estrada é uma lógica muito empreendedora. E a gente quer construir com a Arezzo um negócio que faz total sentido: quando todo mundo esperava que fosse um destino, que o nosso destino fosse uma “nova estrada”.
Isso me anima demais. Porque é uma nova estrada gigante. O mercado da moda nacional foi muito machucado nos últimos anos. Vamos fazer a nossa parte para construir a melhor e maior house of brands brasileira, porque a gente acredita que temos a melhor “house of people” do Brasil, um grupo de pessoas muito especial.
Você continua engajado junto ao Instituto Capitalismo Consciente? E como você vê a adoção das bandeiras do movimento no país?
Continuo. Não fundei o movimento no Brasil, foi um grupo de pessoas maravilhosas; recebi o convite para assumir a presidência em 2016 e terminei esse ciclo no começo de 2020, passei o bastão para o Hugo Bethlem. Tivemos esse ciclo e acho que conseguimos divulgar os conceitos do movimento. Continuo fazendo parte como conselheiro emérito, de maneira bastante atuante.
O movimento prega que a iniciativa privada também tem responsabilidade sobre a sociedade, e que quando entrega socioambientalmente, ela por consequência também vende mais. O consumidor prestigia, volta mais vezes. Ele quer, por meio de suas escolhas de consumo, fazer sua parte na construção de um ambiente de cidade e país melhor
Alguns meses atrás, já na pandemia, o [Instituto] Capitalismo Consciente, com o Sistema B, lançou no meio da pandemia um manifesto super relevante, chamado Imperative 21. Para 2021, a mudança é imperativa. O capitalismo do Friedman não deu certo, está comprovado. E um capitalismo mais inclusivo, socioambientalmente, dá certo, está comprovado também.
Durante a quarentena, vimos um movimento absurdamente emocionante de filantropia e inclusão socioambiental vindo da iniciativa privada. A doação de 1 bilhão de reais do Itaú para o combate da Covid, com comitê independente para tomada de decisão, é um negócio lindo, sem precedente na história do nosso país.
Se por um lado a iniciativa privada está mais consciente, por outro o consumidor também compreendeu que se não fizermos a nossa parte, vai dar ruim. Tenho certeza absoluta de que o mundo vai para um lugar de maior consciência, tanto no que diz respeito a práticas socioambientais na iniciativa privada quanto ao desejo de consumo da sociedade civil.
Agora, é importante que se diga: não existe o “novo normal”. Normal é o bom e velho normal. O que existe é uma nova consciência. Quando essa maluquice [da pandemia] acabar, temos que arregaçar as nossas manguinhas e não esquecer pelo que a gente passou, para ir lá e construir com base na nova consciência
Há muito a ser feito, mas será o começo de um novo mundo se trabalharmos para executar. Temos que pegar essas ideias que nasceram na pandemia e executá-las a longo prazo.
Em outubro, vocês promoveram um festival online chamado “O que o futuro (do varejo) nos reserva?”. Te devolvo a pergunta: o que o futuro do varejo nos reserva?
Quem se tornou omnichannel não foi a loja, não foi a marca — foi o cliente. O cliente está em todos os lugares. E tem uma visão da marca que tem que ser comum em todos os lugares onde o cliente está: o estoque. Ou seja, eu posso comprar pelo aplicativo ou na loja de Ipanema um produto que está na minha loja dos Jardins ou no Centro de Distribuição.
O consumidor não deve nem perceber que usou o estoque de uma loja ou outra. O trabalho da marcas é participar de cada etapa dessa jornada com o menor nível de fricção. Essa é uma visão que ficou muito clara nessa semana de conversas [do evento].
Outra visão é a seguinte: já falaram que a internet vai matar a loja física, que os shoppings, as lojas de rua vão morrer… Mas acho que o bicho mais resiliente do varejo é a loja física. Porque agora a loja física virou protagonista
A loja física não vai morrer. Ela vai ganhar protagonismo, passa a ser um ponto de encontro, um lugar de experiência de marca, onde a marca vai, em todas as possíveis dimensões, fazer com que o consumidor e a consumidora vivam o universo dela.
E aí, uma coisa muito legal é a valorização do profissional de vendas. O vendedor e a vendedora no nosso país têm vergonha de dizer que é vendedor: diz que trabalha para a marca. Por quê? Porque era só transacional. Quando o cliente entrava na loja, o tratamento era: encher o mínimo possível o saco dele.
Com o coronavírus, o que aconteceu? O WhatsApp bombou [como ferramenta de vendas], por quê? Porque a maior parte de nós ou não gostava ou não sabia comprar na internet. E o caminho mais fácil para ensinar um consumidor a navegar no site de uma marca era pelo WhatsApp. Bombou porque as pessoas precisavam de ajuda humana para comprar no site.
Então houve essa ressignificação do profissional de vendas. Não é um “atendente”: é um consultor ou consultora de vendas, que vai cumprir um papel quase de concierge para resolver o seu problema: vai te dar uma consultoria de estilo, entender quais presentes você quer botar debaixo da sua árvore [de Natal], vai te entregar onde quer que você esteja…
Essa importância da loja física e essa ressignificação do profissional de vendas me emocionam. Porque são coisas em que a gente sempre apostou, e está claro que esse é o novo lugar dessas duas entidades tão relevantes para o varejo.
Fonte: Projeto Draft